Capítulo 14

Nem assistir televisão enquanto a Bia e o Lourenço arrumavam a bagunça da sala, nem o banho morno antes de deitar, foram suficientes para apagar o fogo das filhas. Foi preciso ler os dois livrinhos de histórias que elas tinham ganhado até elas se entregarem ao sono.

Não querendo cometer o mesmo erro com o pijama infantil da noite anterior, a Bia não trocou a legging e a camiseta larga, só para o caso de voltar a ter companhia no seu refúgio, e fechou a porta atrás de si sem fazer barulho.

A porta do quarto do Lourenço estava fechada, um feixe de luz escapando pela fresta perto do chão. Ele tinha dito que tinha uns e-mails para responder, e a Bia passou com passos leves, para não atrapalhá-lo. A porta da Mariana também estava fechada, e a luz apagada.

Ela e o Fred não deviam estar nem perto de acabar de conferir os documentos da clínica, mas com um par de olhos treinados como ajuda, ele não ia precisar varar a madrugada trabalhando. Outro motivo para a Bia se sentir grata pela presença da ex-cunhada. Talvez, elas nunca fossem ser amigas e trocar confidências, e o olhar de suspeita que ela tinha lhe lançado ao ver o seu Juarez, mostrava que a Bia ainda estava longe de ganhar a confiança da irmã do Lourenço, mas elas estavam se esforçando. O que era só o que a Bia podia exigir, tanto da Mariana, quanto de si mesma.

Ela desceu as escadas, sendo recebida pelo clarão das luzinhas da árvore de Natal iluminando suavemente a sala decorada, seus olhos passeando pelos outros enfeites espalhados pelos móveis. Por alguns segundos, passado e presente se misturaram, e apesar de os dois ambientes não terem nada em comum, foi como se ela estivesse descendo as escadas da casa dos pais, jovem e sem nenhum problema grave nos ombros, entrando na sala decorada pela mãe. Só para ser atingida, um segundo depois, pela realidade brutal de que ela nunca mais iria entrar numa sala, ou qualquer outro lugar, decorado pelas mãos da mãe.

O fôlego faltou e a Bia abraçou o tablet com força, se deixando cair sentada no último degrau. Ela fechou os olhos e tentou fazer o ar entrar nos pulmões no ritmo que a doutora Clarisse tinha ensinado. As palavras da psicóloga ecoaram dentro da sua cabeça: Aceita a dor. Ela faz parte de você. É sinal de que você viveu uma boa experiência. O que é muito mais que tantas outras pessoas podem dizer. Seja a dona da sua dor.

Ser dono de algo significava que era você quem controlava aquela coisa, e não o contrário, e a Bia estava tão longe de ser dona da sua dor quanto de chegar ao cume do Monte Everest. Saber que outras pessoas não tiveram a mesma sorte que ela, como o Lourenço e a vaga lembrança de sentar com a mãe e as irmãs para fazer enfeites de papel, não a consolava, pelo contrário. Ela se sentia pior pela injustiça do mundo que nos dava um nada de tempo com as pessoas que amávamos. Aliás, para que amar se sempre terminava do mesmo jeito, com dor e sofrimento e lágrimas?

Nada fica escuro para sempre, Bia. Foca nas coisas boas, liga o positivo, deixa a luz entrar. Por mais longa que seja a noite, o sol sempre volta a brilhar.

Positivo. Ela podia fazer aquilo. E ela nem precisava ir longe. Aquela noite mesmo, estava cheia de pequenos positivos, a Mariana ajudando a desembalar as caixas e cantarolando baixinho e distraidamente uma música de Natal enquanto a Bia espalhava os enfeites pela casa; as gargalhadas das meninas enfeitando o ar ao serem levantadas pelo Fred e pelo Lourenço para alcançarem os galhos mais altos da árvore; a implicância bem-humorada entre os dois, o irmão dizendo que ser tio de verdade era muito melhor que ser tio postiço e ouvir de volta que receber afeto espontâneo era melhor que por obrigação.

Aos poucos, a luz foi entrando pelas rachaduras e espantando a escuridão. Quando a Bia voltou a abrir os olhos, ela viu a sua sala e, ainda que a sua vida estivesse longe de ser o que ela gostaria que fosse, ela não podia deixar de ser grata pelo que lhe restava. E o irmão tinha razão, se era verdade a tal história que os mortos viam o que os vivos faziam, sua mãe estaria radiante em saber que os enfeites dela tinham trazido um pouco de alegria para a casa da filha naquela noite.

A Bia passou pela cozinha e levou um copo de água para o seu cantinho, a espreguiçadeira ainda quente do sol que tinha tomado à tarde. Depois de beber um gole, ela colocou o copo, junto do tablet, na mesinha do seu lado. Tinha sido um dia tão longo, com tantos acontecimentos, que ela nem sabia porque tinha se dado ao trabalho de achar que ia conseguir ler. Impossível se concentrar em alguma outra coisa que não fosse as milhões de informações que ela tinha para dissecar. Começando pela tatuagem do Lourenço. Um sorriso involuntário e bobo esticou seus lábios. Como ela não se lembrou da tatuagem do Lourenço? Quer melhor positivo que aquele?

Pouco mais de vinte e quatro horas depois de chegar, ele já tinha causado tantas mudanças impactantes na sua casa, a maior, sem dúvida, conquistar a confiança da filha. Na hora de colocar a estrela no topo da árvore, ao ver o Fred com a Amanda nos ombros, a Alícia não hesitou um segundo em correr com os braços estendidos para ele. Se alguém lhe dissesse, uma semana atrás, que aquilo iria acontecer, a Bia teria respondido com uma gargalhada.

— Do que você tá rindo? — O Lourenço interrompeu seus pensamentos, se aproximando com o mesmo short do dia anterior, mas com uma camiseta branca.

— Como é que você sabe que eu tô rindo? Tá escuro.

— Não tá tão escuro assim.

E não devia estar mesmo, porque ela pôde vê-lo rolar os olhos ao se esparramar na espreguiçadeira ao seu lado.

— Eu estava pensando como, em menos de um dia, as meninas já estão comendo na palma da sua mão.

Ele soltou uma risada.

— Ah, Bia! Será que não é o contrário? Eu que tô comendo na palma das mãos delas?

— É verdade. — A Bia balançou a cabeça com tanta força, que seu coque apertado ameaçou se soltar. — Você precisa aprender a dizer não, Lourenço.

— Como você consegue? Elas me olham com aquelas carinhas de anjo e eu... sem chance.

Era tão bom ver como ele não fazia distinção entre as duas meninas. Seria natural que ele se mostrasse mais interessado na Alícia, mas ele dividia a atenção igualmente entre as duas.

— Espera você ver uma delas fazendo birra, pra você ver a carinha de anjo.

— Se a birra delas é bonitinha igual a sua, eu não acho que eu vou mudar de ideia.

A Bia quase mostrou a língua, mas como aquilo só ia reforçar a tese de que ela era uma criança disfarçada de adulta, ela se segurou.

— Mudando de assunto. — Ele se virou de lado na espreguiçadeira, ficando de frente para ela. — Hoje, quando eu falei pra moça da loja que você era médica, eu me toquei que eu não sei no que você se especializou. Não vai me dizer que eu acertei e você é ortopedista.

— Nem perto. Eu sou pediatra.

— Claro que você é pediatra. Agora que você disse, eu não consigo te ver fazendo outra coisa. — Ele apoiou o cotovelo no encosto e a cabeça na mão. — Pode me mandar pra aquele lugar se você não quiser responder, mas por que você não tá trabalhando? Ou você tá de férias?

— Férias de quase dois anos. — A Bia desviou o olhar para o céu de poucas estrelas fortes o suficiente para não serem ofuscadas pelas luzes da cidade. Não era seu assunto preferido, mas ela não queria mandar o Lourenço para lugar nenhum e ela podia contar tudo para ele, sem medo de ser julgada. — Com a quantidade de remédio que eu passei a tomar depois do acidente dos meus pais, eu precisei dar um tempo. Até hoje eu não me senti segura o suficiente pra voltar a atender, mas o que eu falei pro seu Juarez, é verdade. Eu tô pensando em voltar pro Galpão.

— Galpão? — Ele se inclinou para a frente. — O que é esse Galpão? O seu Juarez disse que você ia me explicar.

— O Galpão é um centro de acolhimento pra moradores de rua, no centro da cidade, que a gente conheceu através do seu Juarez. Tem todo um suporte pra eles, inclusive atendimento médico e ajuda pras crianças se matricularem na escola, ou pros adultos se reintegrarem ao mercado do trabalho, que eu tenho pesar em dizer que a maioria não aproveita porque prefere continuar na rua. O seu Juarez mesmo, admitiu que precisou quase morrer jogado numa esquina pra perceber que não podia fazer aquilo pra sempre.

— E você trabalhava lá?

— Eu era voluntária lá — a Bia o corrigiu e pegou o copo, bebendo o resto da água antes que ficasse morna. — Quando eu me formei, a Amanda ainda era pequenininha e eu preferi ficar com ela, um tempo. Mas eu comecei a ficar inquieta. Não que ela e a Alícia não me ocupassem, mas eu estudei tanto. Eu queria trabalhar, colocar em prática o que eu tinha aprendido, só que quando eu toquei no assunto com o Diego, ele me surpreendeu, sendo contra.

Mesmo na penumbra, a Bia não perdeu a maneira como o Lourenço trancou o maxilar e apertou os lábios. Ela entendia a revolta dele, foi a mesma que tomou conta dela na conversa com então marido, que melhor que ninguém tinha acompanhado de perto seu esforço para estudar e cuidar da Alícia, depois grávida e, por fim, no último período da faculdade mais complicado que alguém já tinha tido, fazendo residência com uma filha recém-nascida em casa. E tudo para quê? Para guardar o diploma numa gaveta?

— Ele me pediu pra esperar — a Bia continuou. — Disse que ganhava o suficiente pra nós dois e que eu devia ser grata por ter a sorte que tantas outras mulheres queriam ter de poder ficar em casa com os filhos. Só que dinheiro nunca foi a motivação principal pra eu querer ser médica. Nem eu era uma idiota, eu não estava pensando em me enfurnar num consultório o dia inteiro. E justamente por eu ter a sorte de poder pagar uma boa babá, eu podia tentar conciliar os dois. Por fim, nós chegamos num acordo e eu trabalhava no Galpão duas manhãs por semana.

— Eu nunca fui de dar ibope pra revista de fofoca, mas quando eu via alguma notícia sobre vocês em algum site confiável, eu lia. Era minha maneira de ter notícias da Alícia. — Ele deu de ombros, se desculpando, mas quem era a Bia, e suas buscas no Google, para reprová-lo? Ele continuou. — Eu não me lembro de nunca ter lido nada sobre o que você fazia.

— Porque parte do meu acordo com o Diego incluiu ele não usar o meu trabalho voluntário para se promover. E eu nunca fui interessante pra imprensa, a não ser como mulher dele. Graças a Deus por isso. Eu tentava me manter, e as meninas também, o mais afastada dos holofotes possível.

— E agora você tá se sentindo segura pra voltar a trabalhar?

— Completamente? Ainda não. — A Bia esfregou a mão no peito, em cima do coração apertado. — Mas eu tô num limbo, e eu preciso sair daqui, de uma maneira ou de outra. Eu fiz um acordo comigo mesma, se eu conseguir ficar sem os remédios até o dia da audiência, eu vou voltar pro Galpão, nem que seja uma manhã por semana. Ou em horário integral se eu perder as meninas, ou eu vou ficar louca nessa casa vazia.

— Você não vai perder as meninas. — Ele estendeu a mão e tocou seu braço de leve, antes de se retrair. — E você tá conseguindo ficar sem os remédios.

— Mas não tá sendo nem um pouco fácil. — Ela soltou um suspiro que saiu do fundo da sua alma.

— Eu notei que você não come muito.

— Por incrível que pareça, eu tô comendo melhor que há duas semanas. E as minhas mãos estão tremendo um pouco menos. — A Bia levantou as duas mãos, mostrando a quase firmeza delas. — E as dores de cabeça diminuíram também. Mas eu ainda tenho momentos ruins. — Como o que ela tinha acabado de passar na sala, mas melhor não mencionar o incidente. — A doutora Clarisse disse que é assim, devagar, e que, talvez, eu nunca vou parar de sentir falta dos remédios, mas que vai ficando mais fácil resistir.

— Me fala mais sobre o Galpão — ele pediu, deitando o braço no encosto, e a cabeça por cima do braço. — Como era trabalhar lá?

A Bia desviou o olhar para o céu de novo.

— O meu pai me deixou, eu e o Fred, muito bem amparados financeiramente, mas mesmo que eu precisasse trabalhar pra sustentar essa casa, eu ainda ia arrumar umas horinhas pro Galpão, porque... Eu não sei, Lourenço, é triste e difícil e, na maioria das vezes, cruel, mas me completa de uma maneira que eu não sei explicar. No começo, eu ficava revoltada de ver os pais se recusando a deixar os filhos estudarem, mas a diretora do galpão disse que, quando eles ameaçaram tomar as crianças dos pais que não matriculassem os filhos na escola, foi pior. Eles pararam de levar os filhos lá, e a diretora voltou atrás. É melhor as crianças terem pouco, que nada.

A Bia fez uma pausa, mas o Lourenço continuou em silêncio, e ela continuou a falar.

— Eu demorei a me acostumar com o choque de voltar pra casa e ver as meninas limpinhas, saudáveis e bem alimentadas, e a sensação de que o que eu fazia era pouco, que eu podia fazer mais, nunca passava. É por isso que eu quero voltar, porque eu posso não ter uma vida perfeita, mas tem sempre alguém pior. Eu sinto que é minha obrigação não deixar os meus problemas regerem as minhas decisões. Ou pelo menos, tentar.

O silêncio continuou a se estender no espaço entre eles, e a Bia colocou os pés para fora da espreguiçadeira, se inclinando na direção do Lourenço. Ele estava de olhos fechados, a respiração tranquila levantando e abaixando o peito musculoso coberto pela camiseta justa.

A sua vida era tão interessante que até colocava os outros para dormir. Uma risadinha arranhou sua garganta, e ela se ajoelhou no chão com a intenção de acordá-lo, mas parou para observar as feições suavizadas pelo sono, fazendo com que ele parecesse vulnerável e mais jovem. Quase o mesmo Lourenço com quem ela tinha namorado.

Ele era tão bonito! Devia ser proibido alguém fazer o peito dos outros doerem por conta de um atributo que eles ganhavam de mão beijada. Até a cicatriz, que alguns podiam considerar uma falha, acrescentava personalidade e sensualidade ao resto do rosto imperfeitamente perfeito.

Como se não tivesse recebido o recado que dez anos tinham se passado, sua mão se levantou e ela traçou, de leve, a cicatriz com a ponta do dedo, como tinha feito um sem conta de vezes antes. E não satisfeita, desceu levemente pela bochecha áspera.

Quantos 'estragos' aquela barba por fazer já tinha feito na sua pele, e aquela boca então... A Bia contornou o lábio inferior, mais carnudo que o superior. Se ele tinha o mesmo cheiro, será que também tinha o mesmo gosto?

O Lourenço puxou os lábios para dentro e esfregou algumas vezes, e ela afastou a mão, caindo na real.

Meu Deus! Quem se aproveitava de alguém dormindo para tocar nele sem permissão? Alguém horrível e desprezível e sórdida. Era o que ela era! Num movimento decidido, a Bia levou a mão até o ombro do homem apagado na sua frente e o sacudiu algumas vezes.

— Lourenço! Acorda!

Nada.

— Lourenço! — Ela repetiu a sacudidela com mais força, fazendo com que ele gemesse baixinho e se mexesse. — Você dormiu, por que você não vai pra cama?

— Só se você for comigo — ele murmurou, de olhos fechados, segurando a mão da Bia e levando até os lábios, depositando um beijo na palma aberta.

Uma faísca subiu pelo seu braço acordando partes do seu corpo que há muito tempo estavam dormindo. E por um simples beijo na palma da mão. O choque a levou a puxar o braço e o movimento brusco fez o Lourenço abrir, e arregalar, os olhos.

— Merda! — Ele jogou as pernas para o lado em que ela estava, e a Bia se lançou para trás, voltando a sentar na sua cadeira, a mão que ele tinha beijado fechada em punho por cima do coração disparado, com a outra por cima, como se a estivesse protegendo. — Desculpa, Biatriz. Eu estava meio dormindo. Claro que eu não quis dizer isso.

Ele estendeu a mão na direção dela que, num movimento puramente instintivo, se afastou, e ele desistiu de tocá-la, deixando o braço cair.

Claro que ele não quis dizer aquilo. Que homem em sã consciência ia querê-la na cama dele?

— Desculpa — ele repetiu. — A última coisa que eu quero é fazer você se sentir desconfortável perto de mim. Me desculpa, por favor?

— Claro. — Ela achou sua voz por entre a garganta apertada. — Não tem problema nenhum. Você não me fez sentir desconfortável. Tá tudo bem.

Parecendo não acreditar, mas aceitando a resposta, ele se levantou, a obrigando a inclinar o pescoço para trás para olhá-lo.

— É melhor eu ir pra ca... dormir. — Ele coçou a cicatriz algumas vezes. — Você vai também? Não comigo! Eu só tô oferecendo a minha companhia até lá em cima e você vai pro seu quarto e eu pro meu... — Ele soprou um suspiro frustrado. — Você me entendeu.

— Eu vou ficar mais um pouco. Boa noite.

Com um simples 'boa noite' de resposta, ele deu as costas e foi embora.

Só quando o Lourenço sumiu porta adentro, a Bia afastou os braços do corpo e abriu a mão, quase esperando ver algum tipo de marca no pedacinho de pele que ainda formigava pelo beijo.

E graças a tudo o quanto era sagrado, ele tinha ido embora antes que ela fizesse alguma bobagem enorme e irremediável, como aceitar o convite dele...


***

Boa noite, meninas.  

Só deixando um obrigada por todos os votos e comentários. É a melhor parte de postar uma história, essa interação, ir sabendo em tempo real o que vocês estão achando. Estou amando escrever esse livro pra vocês.

No próximo capítulo vamos reencontrar um dos nossos não tão queridos personagens. Será que é ele ou ela?

Espero vocês semana que vem, bjs ❤️❤️❤️






Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top