Capítulo 1

O apartamento ficava no segundo andar, mas os degraus se estendiam infinitos na frente da Bia. O lado ruim de ter superado seu trauma de elevadores era que ser obrigada a encarar qualquer lancezinho de escada era parecido com ter um ataque severo de asma, os pulmões em fogo, além de os músculos das pernas reclamarem do esforço intenso, mas o prédio antigo não tinha elevador, então, enfrentar a escadaria era sua única opção.

Talvez fosse hora de voltar a praticar exercícios. Ela acrescentou outro item à sua lista de coisas para cuidar depois. Depois que a sua vida voltasse ao normal.

Depois que ela redescobrisse o que era "normal".

Era a segunda vez que ela subia aquelas mesmas escadas. Na sua outra visita, no que parecia mais uma outra vida, ela tinha encarado a subida com entusiasmo por estar indo conhecer a irmã mais velha do Lourenço e descido, algum tempo depois, desolada pelo desastre que tinha sido o almoço.

Agora, ela precisava do oposto. Se o seu caminho de volta não fosse feito num estado de espírito diferente daquela angústia que a rasgava por dentro, ela estaria realmente perdida, com todas as suas, já escassas, opções, quase que esgotadas por completo.

Ela precisou de uma pequena pausa no primeiro andar e aproveitou para fazer o exercício de respiração que a doutora Clarisse tinha lhe ensinado. Ela repetiu até sentir as batidas do coração desacelerando do ritmo intenso que tinha menos a ver com o esforço físico do que com a tarefa que tinha pela frente.

Ela iria fazer o seu melhor para convencer o Lourenço a ajudá-la, e era cedo para perder as esperanças. Ele estava ali, não estava? Menos de vinte e quatro horas depois de receber seu telefonema, ele tinha pulado dentro de um avião para vir encontrá-la, e aquilo era um bom sinal.

Houve uma época em que a Bia não acreditava em destino ou presságios. Agora, ela andava tão ávida por bons sinais que se agarrava a qualquer um como um náufrago na última boia salva vidas do navio afundando, e quando as coisas não davam certo — e como as coisas andavam não dando certo ultimamente! — a sensação era a mesma de estar se afogando, deslizando para o fundo do mar sem conseguir respirar, sem forças para tentar voltar à superfície por conta própria.

Mas ela não ia pensar em fracasso ainda. Seus receios eram prematuros e ela deixaria para se desesperar depois que o Lourenço dissesse não.

Se o Lourenço dissesse não.

E mesmo que ele se negasse, ela iria continuar lutando. Seria um pouco mais difícil, mas não impossível.

O som da porta se abrindo no andar de cima funcionou como um botão de ligar, e ela voltou a se movimentar, colocando o pé no degrau seguinte com o estômago se enchendo de borboletas.

A sensação foi tão estranha, que sua mão voou para cima da barriga num gesto inconsciente, como se fosse o bastante para acalmar o redemoinho. Se alguém lhe perguntasse, ela teria dito que suas borboletas estavam mortas há tempos, junto com a ingenuidade da menina de dez anos antes.

Ela precisava ser cautelosa e mandou as borboletas voltarem a dormir. O homem que a esperava no fim daquelas escadas tinha mentido e a enganado, não uma, mas duas vezes. E, se era um exagero dizer que tudo de errado que tinha acontecido na sua vida era culpa dele, velhos medos e ansiedades não a deixavam esquecer que o primeiro elo da corrente de acontecimentos que a colocavam ali, naquele momento, foi a manhã de domingo em que ele foi preso e seu mundo foi chacoalhado, nunca mais voltando a ser o mesmo.

Com um arrepio de antecipação escorregando pela espinha, ela colocou o pé no último degrau e fez outra pausa, encarando o Lourenço, cinco longos anos depois da última vez. Ele a esperava encostado com um ombro no batente da porta, as mãos nos bolsos e um sorriso no rosto.

Quantas vezes alguma versão daquela cena tinha acontecido enquanto eles namoravam? Tantas que ela não saberia dizer.

A Bia tinha se preparado mentalmente para aquele encontro, e não era como se ela não soubesse o que ia ver, ainda assim o choque a atingiu como um raio. Ele era muito mais do que a sua memória tinha guardado e as fotos da tela do computador mostravam.

Durante os anos, ela tinha sucumbido à tentação, aqui e ali, de pesquisar por ele no Google. Mera curiosidade de saber como o pai da sua filha estava se saindo na terceira chance que a vida lhe dava. A quantidade de resultados foi aumentando na mesma proporção que o sucesso dele como empresário da noite de Porto Alegre se solidificava.

Atualmente, ele era dono de dois bares e um restaurante, e a última pesquisa da Bia, há apenas alguns dias, tinha revelado um número impressionante de fotos dele, sempre com uma mulher diferente pendurada no braço.

Velhos hábitos, difíceis de serem quebrados.

O que naquele caso era um benefício. Se ele estivesse casado, ela não teria tido coragem de perturbá-lo e correr o risco de causar problemas entre ele e a esposa.

Ou teria.

Ela estava ali pela Alícia e se o assunto era uma das filhas, ela se transformava na famosa mamãe leoa.

— Que é isso, Biatriz com 'i'? Desde quando dois andares te deixam cansada? — A voz profunda e divertida a tirou do seu transe e ela se obrigou a andar na direção dele.

— É a velhice chegando — ela brincou, só que não. Apesar de nem ter chegado aos trinta, era comum se sentir mais cansada que uma velha de cem.

Ele estava diferente e, ao mesmo tempo, não tinha mudado. Uma versão lapidada do seu Lourenço.

Não que ele tivesse sido seu algum dia.

Enfim...

Ele continuava emanando masculinidade sem esforço. A calça cinza escura e a camisa azul clara, mesmo amarrotadas, gritavam dinheiro e elegância e pareciam ter sido feitas sob medida para o corpo que continuava tão musculoso como antes. Talvez, menos um pouco? Como se ao invés de ir à academia cinco dias por semana, agora, ele fosse só três? Pelas mangas dobradas, partes de novas tatuagens provocavam a imaginação sem se revelarem por inteiro. O cabelo estava aparado dos lados e mais comprido na parte de cima, caindo um pouco na testa, suavizando as linhas retas e fortes do rosto decidido.

Mas o sorriso continuava o mesmo. E os olhos de chocolate derretido, também, só que eles ganharam a companhia daquelas ruguinhas que as pessoas que se despediam da juventude com muitas risadas não conseguiam evitar.

Os últimos anos tinham sido bons para ele. Ao contrário dela.

Se ele ficou chocado com sua aparência, disfarçou bem. Ou, quem sabe, ela tivesse feito um trabalho melhor do que pensava ao esconder a magreza excessiva com o vestido largo e comprido, as olheiras com maquiagem e a falta de brilho e vida dos cabelos com o coque tão apertado que seu couro cabeludo iria se lembrar dele por, pelo menos, dois dias.

A palavra que vinha na sua cabeça ao se olhar no espelho de manhã era sempre a mesma, acabada. E por mais que ela estivesse lutando para mudar, o dia seguinte trazia a mesma imagem e a mesma palavra.

A Bia estendeu a mão direita para o Lourenço porque era como ela tinha ensaiado o reencontro na sua cabeça, uma reunião de negócios onde ela iria expor seus argumentos na esperança de fechar um contrato.

Apesar da incansável repetição da doutora Clarisse de que criar expectativas para o comportamento das outras pessoas era uma receita infalível para se decepcionar quando elas não se comportavam como o esperado, a Bia não conseguia evitar. Planejar e tentar seguir seus planos à risca eram sua maneira de se sentir no controle, de desviar dos icebergs e não deixar sua vida virar um Titanic.

Quando o Lourenço não se comportou como ela esperava, não foi decepção que ele causou. Com um puxão na sua mão, ele abriu os braços e a apertou com força contra ele. A Bia se abandonou no calor do corpo firme e sólido aninhando o seu e respirou fundo. 

O cheiro dele era o mesmo.

Como ele tinha o mesmo cheiro depois de tanto tempo?

E como ela podia se lembrar com tanta clareza do cheiro dele?

Sua intenção de ser cuidadosa desapareceu pelo ar. Foi como estar voltando para casa depois de um longo dia, tirar os sapatos apertados e calçar seu chinelo mais confortável. O alívio e a sensação de segurança foram esmagadores e provocaram um jorro de lágrimas inesperado e, definitivamente não planejado, descendo pelo seu rosto, enquanto seu corpo era sacudido por soluços doloridos.

Ele a puxou para dentro do apartamento e fechou a porta.

O Lourenço não tentou consolá-la com frases feitas, pelo que a Bia ficou grata, porque, como ele poderia saber que ia passar ou ficar tudo bem?

Ao invés disso, ele apenas murmurou e murmurou e murmurou a única promessa que ela precisava ouvir:

— Eu vou te ajudar. Não interessa do que você precisa, eu vou te ajudar.

Aos poucos, o doce som daquelas palavras, junto com as batidas firmes do coração perto do seu ouvido, afastou a nuvem negra e ela se acalmou. E deu um passo para trás, saindo dos braços dele.

— Desculpa. — Ela levantou a mão esfregando a bagunça de rímel com corretivo na camisa na sua frente, bem em cima de onde a tatuagem com o nome da mãe dele devia estar. — Eu sujei sua camisa toda.

— Foda-se a minha camisa!

Ele falou de um jeito tão dele, tão diferente do tom de voz calmo e cuidadoso que as pessoas tinham passado a usar a sua volta, que uma risada escapuliu pelos seus lábios.

Como a dança das borboletas, foi tão inesperado e alienígena que ela quase olhou em volta, para ver se tinha outra mulher ali, mas eles estavam sozinhos e a Bia mordeu os lábios porque ela não estava ali para rir de nada.

— Vem. — O Lourenço segurou sua mão e a levou pelo pequeno corredor.

Com a outra mão, a Bia remexeu dentro da bolsa atrás de um lenço de papel. Se a camisa dele estava naquele estado, imagina seu rosto?

A decadência da sua vida podia ser medida pela quantidade de pacotinhos de lenços de papel que ela tinha espalhados pela casa, dentro de cada bolsa e no porta-luvas do carro. Infelizmente, a crise de choro que tinha lhe pego de surpresa nos braços do Lourenço, não era um acontecimento isolado. Nos últimos tempos, elas vinham ocorrendo com mais frequência que a Bia estava pronta para admitir. Provocadas por detalhes bobos, quando ela menos esperava.

Na semana anterior, ela tinha deixado a Alícia e a Amanda sozinhas na sala do cinema só porque um dos personagens do filme falou uma frase que a fez lembrar do pai. A Bia correu para o banheiro para não se despedaçar na frente das filhas que já estavam enfrentando mais problemas que duas menininhas mereciam.

Dentro do banheiro, ela conseguiu não perder totalmente a compostura se concentrando na sua respiração, puxando e soltando o ar devagar, e se controlou antes que o rosto ficasse muito vermelho. Ela voltou para o cinema com o coração na boca de medo de não encontrar as meninas onde ela tinha deixado, porque só uma mãe desnaturada, que merecia ter as filhas roubadas, largava duas crianças sozinhas no meio de tantos estranhos.

Elas estavam lá, felizmente. Cada uma com seu balde de pipoca no colo, sem dar indícios de que sequer tinham percebido a ausência da mãe. A Bia retomou seu lugar e, quando o público explodiu em risadas, ela se juntou a eles sem ter ideia do que poderia ser tão engraçado. Seguindo a correnteza, fazendo o que era esperado, tentando ser mais uma na multidão.

O Lourenço a levou até o sofá e só a soltou depois que ela se sentou. Ela limpou o rosto o melhor que pôde enquanto observava a mesinha de centro na frente deles, coberta por uma toalha florida, acomodando um mini café da manhã.

— Eu tinha pensado em chamar você pra tomar um café, mas você disse que queria um lugar mais reservado pra conversar, e eu passei na padaria. — Ele pegou uma garrafinha de água mineral de cima da mesa, abriu e entregou para a Bia que aceitou e agradeceu, antes de tomar um longo gole. — Desculpa, mas café foi a única coisa que eu não consegui fazer. Por algum motivo, não tem gás.

Falando de velhos hábitos...

Seu coração falhou uma batida ao ver entre os pratos de croissants, pães de queijo, presunto e junto com os potinhos de requeijão e manteiga, a fatia generosa de bolo de chocolate. Ele sempre comprava bolo de chocolate para ela.

Pena que seu estômago deu uma reviravolta de náusea. Ela andava tendo dificuldades em se alimentar e não teria tomado café de qualquer maneira, já que cafeína era uma das coisas que ela tentava evitar. Uma xícara de chá e uma torrada foi o que ela se obrigou a comer antes de sair de casa e seria o suficiente para mantê-la boa parte do dia.

— Obrigada, eu já tomei café, mas, por favor, termina o seu. — Ela apontou o prato com um sanduíche de croissant com presunto, pela metade.

— Aceita um suco, então? — Sem esperar resposta, ele serviu um copo de suco de laranja de caixinha. — Pra me fazer companhia?

Não foi só na aparência que ele tinha se aperfeiçoado, ele também estava falando diferente. O sotaque carioca carregado tinha se suavizado, o vocabulário estava mais formal, sem as gírias que eram características dele, antes.

A Bia trocou a garrafinha de água pelo copo que ele lhe deu. Seu estômago provavelmente não aceitaria nem o suco, mas ela não quis fazer desfeita.

— Como foi sua viagem? — ela perguntou, observando o rosto cansado. Ela estava com pressa e aflita para ir logo ao assunto, mas sua boa educação exigia que ela esperasse ele terminar de comer antes de trazer a artilharia pesada. — Você deve ter madrugado pra já estar aqui.

— Foi boa, obrigado. Eu peguei o primeiro avião. — Ele segurou o prato e deu uma mordida no sanduíche.

— Vocês não quiseram vender o apartamento?

Enquanto ele mastigava, a Bia correu os olhos pela sala. A mobília de madeira escura, que ela sabia ser da época dos pais dele, era a mesma, mas quando na sua outra visita elas estavam cobertas por enfeites e porta-retratos, naquele dia estavam enfeitadas apenas por uma triste e grossa camada de poeira.

— A gente quase vendeu algumas vezes. — Ele tomou um gole de suco. — Quando eu fui preso, a Mariana chegou a fazer algumas avaliações. Pra poder pagar o meu advogado. Graças a você e ao seu pai, não foi preciso. — Ele estendeu a mão e deu um pequeno aperto carinhoso no braço dela. — Depois que elas decidiram ficar de vez em Porto, elas pensaram de novo em vender, mas o tio Rodolfo... eu te falei dele, você lembra?

— O irmão da sua mãe?

— Isso. Ele aconselhou a deixar o apartamento quieto. Eu podia querer ficar aqui, ou as meninas podiam querer voltar a morar no Rio, e se a gente não estava precisando do dinheiro pra que se desfazer da única lembrança que a gente tem dos nossos pais?

— Vocês fizeram bem em seguir o conselho do seu tio. Tem certas coisas que valem mais que qualquer dinheiro pode pagar. Vocês nem alugam pra temporada? — ela perguntou, mas percebeu que ele tinha dado outra mordida do sanduíche e continuou falando, dando tempo a ele de mastigar. — Nessa época de fim de ano, eu sei que a procura é grande. Mesmo que vocês não precisem do dinheiro, pelo menos o apartamento não fica fechado por muito tempo?

Deveria ser estranho estar ali com o Lourenço, como dois velhos amigos falando de amenidades, mas, na verdade, era estranho como não era estranho de jeito nenhum. A Bia tinha esperado civilidade e educação, mas estava sendo pega de surpresa com a familiaridade e facilidade de estar ali do lado dele, parecendo que, ao invés de anos, eles não se vissem há alguns dias.

O tempo tinha mesmo aquele efeito mágico de funcionar como uma lixa, aparando arestas e suavizando extremos. O Lourenço tinha traído sua confiança e feito com que ela passasse por momentos devastadores, mas também tinha sido com ele que a Bia tinha vivido algumas das melhores experiências da sua vida. Ela sempre tinha admirado a praticidade e objetividade com que ele encarava a vida e era bom ver que ele ainda era dono da mesma segurança inerente e que aquela parte do relacionamento deles não tinha se perdido, até porque eles tinham uma filha, um vínculo permanente, que exigiria muitas conversas futuras.

Ele também não parecia constrangido, pelo contrário, estava à vontade, determinado e tranquilo.

— A gente alugou algumas vezes. Até a Mariana descobrir os quadros faltando. — Ele apontou dois quadrados mais claros na parede acima do móvel onde antes ficava a televisão. — Depois disso, ela não quis mais saber de gente estranha aqui dentro. O apartamento não fica fechado muito tempo, as meninas vêm sempre que podem, e alguns amigos, também. Ele só tá com esse jeito de casa de terror porque não deu tempo de ligar pra moça que vem limpar, desculpa.

— Não tem problema. E você? Não vem pra cá sempre que pode?

Ele soltou um longo suspiro.

— Eu prefiro viajar pra outros lugares. Nem todas as minhas lembranças de Copacabana são boas.

— Mais um motivo pra te agradecer em dobro por você ter vindo me encontrar.

— Bia, você não precisa me agradecer. Por nada. Nunca. — Ele limpou a boca com um guardanapo de papel e colocou o pratinho vazio em cima da mesa. Dobrando um dos joelhos em cima do sofá, ele se virou para ela. — Agora me diz, o que você quer de mim?

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