6.Sereia maculada
Encarar os problemas e as sensações após uma violência é quase tão difícil quanto sobreviver a ela. Alétheia sabia disso bem demais. Quando abriu a porta para Shanks, não foi por conforto ou segurança, mas por exaustão. Ela o observou por um instante antes de dar alguns passos para trás, criando uma distância clara entre eles. Não era medo do pirata em si, mas a necessidade de manter controle sobre a situação, sobre si mesma.
Eles se conheciam há pouco tempo, e a relação entre os dois, se é que podia ser chamada de "relação", era frágil, baseada mais em curiosidade do que em qualquer vínculo verdadeiro. Shanks percebeu o limite que ela havia estabelecido, respeitando-o. Ele entrou, mas sem a confiança que normalmente ostentava em qualquer lugar que fosse. Aqui, na casa dela, ele era um estranho.
— Eu vim porque... — começou ele, quebrando o silêncio pesado. — Ninguém te viu hoje. Fiquei preocupado. — As palavras saíram com um peso que ele não costumava usar.
Alétheia o ouviu, mas não respondeu de imediato. Ainda estava abalada pelas horas anteriores, e a dor emocional a consumia. Ela apertou os braços ao redor de si, criando uma barreira invisível, como se quisesse proteger o que restava de sua dignidade.
— Não deveria ter vindo — murmurou, a voz trêmula e fria ao mesmo tempo. — Isso não tem nada a ver com você.
Era verdade. Ele era só um visitante em Tortuga, um pirata que aparecera em sua vida por acaso, e agora estava ali, invadindo um momento em que ela se sentia mais vulnerável do que nunca. Mas, ao mesmo tempo, havia algo no olhar de Shanks que a confundia. Não era só curiosidade, era mais do que isso. Ela evitava olhar diretamente para ele, porque sabia que, se o fizesse, talvez ele visse o que ela estava tentando esconder.
— Talvez não tenha — Shanks respondeu, respeitando o distanciamento que ela impunha. - Mas isso não significa que eu vou virar as costas agora.
Alétheia respirou fundo, tentando controlar o turbilhão dentro de si. Sua mente voltava constantemente ao que havia acontecido na adega, aos toques asquerosos de Joshamee, às lembranças de outros momentos em sua vida que a deixaram marcada de maneiras que ninguém poderia ver. Ela odiava a sensação de impotência que a consumia agora, odiava como as memórias de sua linhagem suja, como filha de Dione e Salazar Swan, a perseguiam.
Ela deu um passo para o lado, caminhando lentamente pela sala, sem saber ao certo o que fazer com a presença de Shanks. Era desconcertante tê-lo ali, insistindo em sua preocupação, quando ela mal o conhecia. Porém, algo dentro dela a impedia de expulsá-lo completamente.
— Eu estou... — ela começou, mas as palavras se perderam em sua garganta. Estava bem? Não. Não estava. Mas não conseguia dizer isso. Não para ele, um homem que mal sabia o que acontecia em seu interior.
— Olha, eu não vou fingir que entendo o que você está passando — disse Shanks, num tom mais suave do que ela esperava. — Nem quero invadir o seu espaço. Mas se precisar de alguém pra conversar... estou aqui. — A sinceridade em sua voz surpreendeu Alétheia. Ela não estava acostumada com homens oferecendo ajuda sem uma agenda oculta.
Ela parou, finalmente erguendo os olhos para ele. A intensidade no olhar de Shanks era difícil de ignorar. Havia algo ali que ia além de pura curiosidade, mas ela ainda estava relutante em confiar. Ainda estava ferida demais para acreditar que alguém poderia se importar sem esperar algo em troca.
— Por que você se importa? — perguntou ela, a pergunta escapando de seus lábios antes que pudesse controlá-la.
Shanks pareceu pegar a pergunta de surpresa, mas não demorou muito para responder. — Eu não sei. Talvez porque vi algo em você... que me fez pensar que não deveria estar passando por isso sozinha. — Ele deu um leve sorriso, tentando aliviar a tensão, mas percebeu que o humor não cabia ali.
Alétheia cruzou os braços, mantendo a barreira que a separava dele. — Eu estou sozinha há muito tempo. Não preciso que alguém venha me salvar, Shanks. Isso... não funciona assim.
Ele assentiu, aceitando as palavras dela, mas não recuou. — Eu sei. E não estou aqui pra salvar ninguém. Só estou aqui. — A simplicidade da frase, sem grandes promessas, sem expectativas, fez algo dentro de Alétheia hesitar.
Ela olhou para a porta por onde ele havia entrado, considerando brevemente mandá-lo embora. Mas a verdade era que, apesar da dor, da confusão, havia algo em sua presença que trazia uma calma silenciosa. E, naquele momento, talvez fosse disso que ela mais precisava.
— Não quero falar sobre o que aconteceu — disse ela, firmemente, quebrando o silêncio. — Mas... você pode ficar. Só por um tempo. — Ela se odiou um pouco por dizer isso, por permitir que ele permanecesse. Mas, ao mesmo tempo, parte dela queria provar para si mesma que podia deixar alguém entrar, mesmo que fosse só por um momento.
Shanks assentiu, percebendo que, para ela, aquilo era uma concessão maior do que qualquer palavra poderia demonstrar. Ele não pressionaria mais, pelo menos não naquele momento.
Eles permaneceram em silêncio, mas agora o ambiente parecia um pouco menos sufocante. Alétheia, embora ainda machucada e desconfiada, permitiu-se sentir, mesmo que por um breve segundo, que talvez não estivesse tão sozinha quanto pensava.
As horas que Shanks passou ao lado de Alétheia foram marcadas por um silêncio pesado, quase sufocante. Ele a observava de soslaio, tentando encontrar algo que dissesse ou fizesse para aliviar o ambiente. Sua mente, porém, estava a mil. A ideia de voltar à taverna, de encontrar Joshamee e quebrá-lo em mil pedaços, ou até matá-lo, era uma tentação que pairava em sua mente. Mas Shanks sabia que não podia agir impulsivamente. Havia muito em jogo - não apenas o respeito que tinha por ela, mas também a necessidade de lidar com a situação com cautela.
Ele respirou fundo, cruzando os braços enquanto olhava para o chão. Ver Alétheia, uma mulher que desde o início o intrigara, naquele estado frágil e arruinado, o incomodava profundamente. Mesmo que eles mal se conhecessem, havia algo nela que o puxava, um magnetismo que ele não conseguia explicar. O tempo que passaram juntos, por mais curto que fosse, já havia sido o suficiente para ele se interessar profundamente. Não era só pela beleza exótica dela ou pelas histórias sobre sua origem; era algo mais... algo que ele ainda não conseguia definir.
Com o tempo, o silêncio entre eles não era mais desconfortável, mas carregado de uma compreensão mútua - ela sabia que ele estava ali, e ele entendia que não deveria pressioná-la. Shanks só não sabia por quanto tempo poderia segurar a raiva fervendo dentro de si.
Quando Alétheia finalmente cedeu ao cansaço, seus olhos se fecharam e Shanks soube que aquele era o momento certo para agir. Com uma delicadeza que contrastava com sua natureza bruta, ele a ergueu nos braços, embora a ausência do braço esquerdo dificultasse a tarefa. Ainda assim, ele foi ágil e cuidadoso, movendo-se pelo pequeno espaço até o quarto que deduziu ser o dela.
Ao colocá-la gentilmente sobre a cama, ele puxou o fino lençol branco para cobri-la, observando o rosto sereno que, mesmo em descanso, parecia carregado de dor. Foi então que notou mais detalhes: finas marcas ao redor dos olhos, como se algo a tivesse arranhado profundamente, e o pulso direito com um vergão roxo, denunciando o aperto violento que havia sofrido.
A raiva o consumiu.
Shanks sentiu os músculos de sua mandíbula se contraírem enquanto rangia os dentes, lutando contra o desejo de voltar à taverna e acabar com Joshamee. Ele queria fazer aquele homem pagar por cada marca no corpo dela, por cada lágrima que Alétheia havia derramado. O lado sombrio do Yonkou, o que raramente emergia, agora gritava por justiça, clamava por sangue.
Ele se afastou da cama antes que sua raiva tomasse conta. Sabia que precisava se conter, mas não conseguia afastar o desejo impulsivo de agir que queimava em seu peito.
Shanks cruzou os braços, observando a situação diante dele. Joshamee, com as mãos quebradas, gemia de dor, o medo estampado em seu rosto. Benn e Yasopp pareciam satisfeitos com o trabalho até ali, mas o resto da tripulação ainda tinha sede de vingança.
— Desde quando ficaram tão sanguinários assim? — Shanks perguntou, arqueando uma sobrancelha, sua voz carregada de uma leve ironia enquanto via algo reluzir na camisa meio rasgada do taberneiro. Ele se aproximou do homem e puxou a peça calmamente.
— Ei! — Joshamee reclamou. — Isso é meu.
Shanks apenas sorriu de forma ácida antes de arrancar a corrente do pescoço dele e jogar o objeto para cima antes de o recolher e colocar no bolso.
— No fim das contas somos apenas malditos piratas. —O ruivo ironizou levando os companheiros da tripulação a rirem da provocação, mas o olhar de Limejuice, que sugerira deformar as mãos de Joshamee permanentemente, permanecia sério.
— Capitão, esse tipo de escória merece um castigo que ele jamais esquecerá — respondeu Limejuice. — Não se trata só de vingança, mas de garantir que ele nunca mais machuque outra pessoa. Há um método de cicatrização que deforma os ossos, ele nunca mais terá mãos normais, eu voto nessa opção!
A verdade era que a tripulação sabia o quanto Shanks havia se envolvido com Alétheia, e isso parecia acender um desejo de proteger, até mais do que o próprio Yonkou queria admitir. Shanks, porém, respirou fundo, olhando novamente para Joshamee, que agora parecia muito mais um rato acuado do que o valentão que havia causado tanto sofrimento.
— O suficiente já foi feito — Shanks declarou, sua voz firme. — Eu não quero que isso vire um espetáculo de sangue.
A tripulação murmurou, mas ninguém questionou. O respeito que tinham por Shanks era inquestionável, e apesar de seus próprios instintos, sabiam que o capitão estava tomando a decisão certa.
— Deixem-no sentir dor por alguns dias, mas nada que o mate. — Shanks deu as costas, já se sentindo mais calmo. — E depois, o larguem em algum lugar onde ninguém o encontre por um bom tempo.
Mesmo sem violência desmedida, o pirata sabia que a mensagem seria clara. Joshamee nunca mais ousaria tocar em Alétheia ou em qualquer outra mulher novamente.
[...]
Ela nunca imaginou que sentiria falta, estava tão acostumada a estar sozinha que ao recordar de todo o ocorrido detestou o sentimento de solidão dentro da própria casa.
A sereia agora um pouco mais revigorada, se levantou conferiu as marcas que ainda haviam em seu pulso. Sabia que Joshamee só havia conseguido chegar tão longe por causa daquela maldita concha, algo que até então ela não tinha conhecimento, afinal de contar o taverneiro nunca demonstrou a ter. Do contrário, teria planejado uma forma de roubá-lo e agora estava ali amargando a situação, havia sido tocada, mais uma vez contra vontade.
"Quantas da minha espécie já passaram por isso?" Sorriu ácido "Se bem que sendo homem, a própria espécie já é um ato de violência."
Se encolheu novamente tentando afastar os anseios e temores da própria carne. Se os bêbados não tivessem ameaçado depenar o bar, teria realmente sido estuprada, mas isso não muda o fato de que ele chegou perto, tão perto que foi capaz de recordar de quando isso realmente aconteceu.
A memória das mãos de Joshamee, a força bruta e a ausência de controle, fez com que uma onda de náusea subisse em sua garganta.
O pensamento de que tudo poderia ter sido evitado a corroía. Se soubesse da existência da concha, teria agido antes, tomado de volta o que lhe pertencia e talvez escapado daquele destino. Mas agora, ali, na solidão da sua própria casa, não havia volta.
"Quantas foram reduzidas à mesma impotência?" pensou, com um sorriso amargo.
A injustiça de tudo a consumia. Ser uma sereia híbrida, nascida da violência e criada no caos, sempre foi um fardo. Ela sabia que, aos olhos de muitos, sua existência já era uma afronta, e sua vulnerabilidade, um alvo fácil. Joshamee não havia sido o primeiro a usá-la, mas o fato desestabilizava de uma maneira que ela não esperava.
A lembrança do passado, da primeira vez que realmente ocorreu, invadiu sua mente, trazendo à tona o trauma antigo. Seus olhos se fecharam involuntariamente, como se o simples ato de reviver aquilo fosse doloroso demais— e era. Ela se abraçou, tentando bloquear a onda de desespero que se aproximava.
"Eu sou mais forte do que isso", murmurou para si mesma, uma mentira reconfortante que usava para se manter em pé.
O desejo de vingança crescia lentamente dentro dela, como uma maré implacável. Joshamee não sairia impune dessa vez. Algo dentro de Alétheia havia mudado, algo quebrado e ao mesmo tempo fortalecido. Ela estava cansada de ser a vítima de uma terra que não deveria sequer existir.
Dione significa espirito das águas, o céu e as águas.
Salazar significa sal e flor. Remete ao renascimento e representa a natureza em sua forma mais bela e efêmera
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