5.Lágrimas se transformam em ouro

Reza a lenda que o choro de uma sereia, quando proveniente de dor profunda e desesperança, era algo raro e precioso. As lágrimas que caíam agora, se transformavam em pérolas cintilantes ao tocar o chão de madeira, criando um pequeno tesouro amaldiçoado a seus pés. Eram pérolas, as mais belas que poderiam ser vistas, mas também um reflexo do sofrimento intenso que ela carregava em sua alma.



As tábuas de madeira da adega estavam frias sob o corpo de Alétheia, mas a dor que sentia vinha de um lugar muito mais profundo. O ar ali dentro era abafado, e os pedaços de tecido rasgado que ela segurava com força entre os dedos pareciam o último resquício de sua dignidade. A cada ofegar, a sensação de ser sufocada pelo próprio desespero se intensificava. As lágrimas corriam silenciosas pelo rosto pálido, mas não eram simples lágrimas humanas.

Joshamee, ferido pelas unhas dela, havia fugido, provavelmente temendo os homens que ainda frequentavam a taberna e que logo sentiriam falta de mais bebida. Mas não sem antes deixar sua marca, não sem antes arrancar de Alétheia algo que ela jamais poderia recuperar.

Ela se encolhia, o corpo dolorido, a mente nublada pelo trauma e pela vergonha. Como uma sereia cativa, presa em um mundo de monstros disfarçados de homens, ela sentia que nunca mais voltaria a ser a mesma. O som das pérolas rolando pelo chão era quase surreal, contrastando com a violência da cena anterior. Cada uma brilhava intensamente, como se zombasse de seu sofrimento.

Alétheia fechou os olhos, buscando refúgio nas profundezas de sua mente, onde o oceano, seu verdadeiro lar, a chamava de volta. Mas ela sabia que não podia escapar. Estava presa naquele corpo humano, presa em uma terra cheia de crueldade e que infelizmente lhe pertencia.

Ali, sozinha naquela adega, suas lágrimas se transformaram em ouro, mas cada joia era uma cicatriz invisível, a respiração pesada fez com que ergue-se o semblante. Ela pegou uma das partes do tecido rasgado e envolveu as pérolas criando um saquinho de contas.




Alétheia entrou em casa cambaleante, sentindo cada parte do corpo doer como se estivesse sido perfurada por espinhos. A madeira do chão rangia sob seus pés enquanto ela se arrastava até o quarto, o peso do pequeno saquinho de pérolas em suas mãos parecendo insuportável. Ao abrir o armário, escondeu aquele tesouro maldito, como se pudesse enterrar o próprio trauma junto com ele. Porém, ela sabia que as marcas profundas daquele dia continuariam gravadas em sua alma, tão visíveis quanto as pérolas.

Ao entrar no banheiro, a sensação de sufocamento se intensificou. Era como se as paredes estivessem se fechando ao redor dela. Ela arrancou os farrapos que restavam de sua roupa e os atirou no chão, o desespero transbordando enquanto ela se lançava sob a água fria. As mãos, trêmulas, esfregavam a pele com tanta força que começaram a deixá-la vermelha e sensível. Não importava o quanto lavasse, a sensação de sujeira permanecia, cravada em sua carne e em sua mente.

As lágrimas se misturavam à água, mas agora já não se transformavam em pérolas. Eram lágrimas comuns, carregadas de uma dor comum a tantas outras mulheres que viveram aquilo antes dela. Por um momento, Alétheia desejou desaparecer nas profundezas do oceano, longe de tudo e todos, para que as ondas pudessem levá-la de volta ao seu mundo. Em outro instante, o desejo de vingança queimava em seu peito como uma chama que ela tentava apagar em vão. Queria que Joshamee pagasse, que sentisse cada dor que ela sentiu, mas, acima de tudo, queria se reencontrar.

Quando a água finalmente parou, Alétheia se sentou no chão frio do banheiro, exausta. Não havia força suficiente no mundo para fazê-la se levantar naquele momento. Ali, em meio ao silêncio e à escuridão de sua própria mente, ela se permitiu desabar. Era a primeira vez desde o ataque que conseguia chorar sem se sentir fraca, como se as lágrimas que escorriam agora fossem a última forma de expurgar o veneno que corria por suas veias.

E assim, naquele dia, a sereia maculada não foi vista em lugar nenhum.


Shanks estava sentado à mesa de seu navio, com uma garrafa de rum a sua frente, ponderando sobre o que fazer a seguir. Ele tinha decretado que partiriam em dois dias, e sua tripulação já estava se preparando para a jornada, mas uma sensação incômoda o impelia a voltar à cidade. A ideia de ver Alétheia novamente, de conhecê-la mais a fundo, o deixava inquieto. O capitão raramente se deixava consumir por pensamentos assim, mas ela, com seu jeito misterioso e olhar intenso, havia mexido com ele de uma forma que poucas pessoas conseguiam.

Quando finalmente decidiu voltar à taberna, Shanks esperava reencontrá-la. No entanto, ao chegar, foi surpreendido pela ausência da mulher. O ambiente estava diferente, como se faltasse algo, e, ao perguntar sobre Alétheia, ninguém soube dar respostas concretas. A inquietação no peito do pirata só aumentava. As mesas estavam cheias de bêbados e piratas, como sempre, mas a usual animação do lugar não alcançava Shanks, que observava cada detalhe com olhos atentos.

Foi quando ele notou Joshamee, o taberneiro, passando por ele com um semblante fechado. Havia um arranhão fresco em seu rosto, uma marca que não tinha visto nas vezes anteriores. Shanks imediatamente soube que aquilo não era coincidência. Aquele arranhão, a expressão desconfortável de Joshamee, o silêncio sobre o paradeiro dela... Tudo isso apontava para algo que ele preferia não ter que considerar.

O ruivo se levantou devagar, indo em direção ao taberneiro com a calma que precede uma tempestade.

E então, Josha, onde está minha sereia? — Shanks perguntou, a voz baixa, mas carregada de uma seriedade que fez o taberneiro engolir seco.

Eu... não sei do que está falando — Joshamee tentou disfarçar, mas o nervosismo em sua voz entregava o que as palavras negavam, algo em Shanks provocava arrepios de pavor.

O ruivo estreitou os olhos, e o sorriso usual de seu rosto se desfez, dando lugar a uma expressão sombria.

Não brinque comigo — ele se inclinou, baixando ainda mais o tom de voz. — Eu sei que você sabe onde ela está.

Joshamee recuou, mas o pirata não o deixou escapar. Com um movimento rápido, Shanks agarrou o taberneiro pelo colarinho, puxando-o para mais perto. A força no gesto e a ameaça implícita na voz do ruivo deixaram claro que ele não estava disposto a ouvir mentiras e os outros se afastaram assim como Benn ficou mais sério e com a arma na mão.

O arranhão no seu rosto diz muito mais do que suas palavras — Shanks sussurrou, seus olhos cravados nos de Joshamee. — Agora, fale.

O taberneiro hesitou por um momento, mas o olhar penetrante de Shanks o fez ceder. Sabia que não havia como enganar um Yonkou por muito tempo.

Ela foi embora... se escondeu. Depois do... — ele se calou, mas Shanks apertou ainda mais o colarinho, forçando-o a continuar. — Depois que... eu a machuquei... Ela sumiu!

O sangue de Shanks ferveu instantaneamente. Ele soltou o taberneiro com força, quase jogando o homem no chão, o desgosto visível em sua expressão. A ideia de alguém ter machucado Alétheia o enchia de raiva.

Onde ela está? — Shanks perguntou novamente, mais ameaçador agora.

Joshamee, apontou em direção à cidade.

Deve ter voltado pra casa dela... não tenho certeza...

— Torça para que ela esteja inteira, pois, farei a você duplamente o que fez com ela. —  A voz tão densa que o taberneiro simplesmente prendeu a respiração e Shanks não esperou mais. Saiu da taberna com passos largos e firmes. Havia algo que precisava resolver, e ele não partiria de Tortuga sem antes se certificar de que ela estava bem.


Shanks continuava firme, a mão cerrada em punho enquanto batia na porta com insistência. Sua paciência, normalmente uma de suas características mais marcantes, estava no limite. Ele sabia que Alétheia estava ali, podia sentir sua presença de alguma forma, mas a ausência de resposta o preocupava mais do que ele gostaria de admitir.

Sereia, eu não vou sair dessa porta até você a abrir — ele repetiu, a voz baixa, mas carregada de determinação.

Dentro da casa, Alétheia ouvia as batidas e as palavras do ruivo, mas não conseguia se mover imediatamente. Seu corpo estava exausto, e a dor física e emocional era quase insuportável. As escamas em sua pele, que costumava esconder tão bem, agora estavam mais visíveis, brilhando em tons holográficos à luz fraca do banheiro. Era uma lembrança constante de sua verdadeira natureza, um segredo que carregava com amargura.

Ela suspirou, olhando para os fios verde-água de seu cabelo, que pareciam ter perdido seu brilho habitual. Sabia muito bem quem era, quem foram seus pais. Alétheia era filha de Dione, uma sereia que havia sofrido nas mãos de Salazar Swan, o impetuoso fundador de Tortuga. Sua existência era o resultado de um ato de violência, uma lembrança viva de um império sujo e corrupto. Desde pequena, a posse de sua própria vida nunca lhe pertenceu totalmente; ela sempre foi vista como algo a ser conquistado ou controlado.

Joshamee não foi o primeiro a tentar reivindicar esse poder sobre ela, mas foi o primeiro a quebrá-la completamente. O ataque brutal que ela havia sofrido trouxe à tona memórias enterradas, cruéis e dolorosas, que a fizeram se sentir tão impotente quanto na infância. Alétheia sentiu a raiva e o desgosto crescerem em seu peito enquanto refletia sobre sua linhagem, sobre as marcas invisíveis que carregava.

Ela respirou fundo, tentando se recompor. Sabia que Shanks estava do lado de fora e que ele não iria embora até que ela o enfrentasse. Mas, antes de abrir aquela porta, precisava de um momento para recuperar um pouco de sua força. Alétheia se levantou da banheira, seu corpo ainda tremendo, e caminhou até o quarto. Procurou por uma roupa confortável, algo que pudesse lhe proporcionar um mínimo de segurança e conforto. Vestida, ela desceu para o andar inferior.

Chegando ao pé da escada, parou por um momento em frente à porta. Suas mãos tremiam levemente, mas não por medo de Shanks. Era o peso da dor recente que fazia seu corpo reagir dessa forma. Com uma última respiração profunda, ela finalmente abriu a porta, deparando-se com o olhar preocupado do Yonkou.

O que você quer, Shanks? — A voz saiu firme, apesar de tudo, mas havia uma dor silenciosa em seus olhos que ele não podia ignorar.

Shanks, por um momento, não soube o que dizer. Ele estava ali porque sentia a necessidade de vê-la, mas agora que a via de perto, quebrada e vulnerável, percebeu que havia mais camadas naquela mulher do que ele havia imaginado.

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