2.Sereia sem nome

Dois dias haviam se passado desde o encontro enigmático de Shanks com a mulher na praia. Embora ele não deixasse transparecer facilmente, Benn Beckman, seu primeiro comandante e confidente de longa data, notou que algo pesava nos pensamentos do capitão. Era raro ver Shanks distraído por esses motivos, ainda mais durante uma estadia como aquela em Tortuga, um lugar perfeito para deixar as preocupações de lado. O ruivo, entretanto, se pegava, vez ou outra, lembrando daqueles olhos brilhantes e do jeito que ela desapareceu entre as sombras.

Capitão, nosso convidado chega amanhã à tarde. Devo mover o navio? — Benn perguntou, quebrando a linha de pensamento de Shanks.

Hum? — Shanks murmurou, ainda distante. — Não. E nosso estoque? Como está?

A tripulação bebeu tudo. — Lucky Roo respondeu de boca cheia, segurando um enorme pedaço de carne em uma mão e uma garrafa de cachaça na outra. — Esses caras são poços sem fundo!

Shanks balançou a cabeça e soltou uma risada. — Caramba, seus malditos! Vamos reabastecer.

Com isso, Shanks se levantou, sua presença imponente atraindo a atenção da tripulação. Eles estavam acostumados com o comportamento descontraído do capitão, mas havia uma energia diferente nele agora. Ele se dirigiu à cidade com um pequeno grupo, prontos para buscar bebidas e talvez se perderem em outra noite de diversão.

☠☠☠

A taberna em que decidiram parar era uma das mais agitadas e grandiosas de Tortuga, com uma fachada simples, mas recheada de vozes altas, gargalhadas e o som inconfundível de canecas de rum sendo batidas nas mesas. Shanks entrou com passos confiantes, o chapéu de palha parcialmente ocultando seu sorriso descontraído, enquanto seus olhos vagavam pelo ambiente à procura de algo, ou alguém, que ele mesmo não tinha certeza.

Capitão, aqui tem de tudo, desde rum até aquele licor estranho que o Yasopp gosta! — Lucky comentou, apontando para os barris empilhados no fundo da taberna.

Shanks assentiu, acenando para o taverneiro se aproximar, mas foi nesse exato momento que seus olhos captaram algo familiar. Movendo-se com graça e precisão nos fundos da taberna, entre barris e caixas, estava ela.

A mulher de dois dias atrás.

Ela não o viu de imediato, ocupada com seu trabalho, carregando garrafas de vinho e rum para reabastecer o balcão. Seu cabelo, agora preso em um coque improvisado, ainda brilhava em um tom vívido de verde-água, e sua pele parda mais escura que a dele reluzia levemente com o suor do esforço. Seu vestido simples contrastava com a lembrança da figura deslumbrante à beira do mar, mas isso apenas aumentava o fascínio de Shanks.

Seus lábios, os mesmos que ele imaginara serem macios como seda, agora estavam ligeiramente franzidos em concentração enquanto ela trabalhava, completamente alheia à sua presença.

Shanks caminhou até ela sem pressa, seus passos leves, mas sua aura inconfundível. Quando ela finalmente percebeu que alguém se aproximava, ergueu o olhar, e por um instante, o mundo pareceu parar de novo. Seus olhos se arregalaram ao reconhecer o ruivo à sua frente, e por um momento, nenhum dos dois disse uma palavra.

Então é aqui que a sereia trabalha? — Shanks quebrou o silêncio, um sorriso provocador surgindo no canto de seus lábios.

A mulher piscou, surpresa e talvez um pouco irritada. — Sereia? Eu não sei do que você está falando.

Você parecia uma, na praia. Mas agora... vejo que é bem mais intrigante de perto. — A voz de Shanks era suave, mas havia algo nas palavras dele que a fez ruborizar levemente, embora tentasse manter a compostura.

Eu sou apenas uma ajudante aqui, nada mais. Se está atrás de bebida, fique à vontade. — Ela disse, tentando retomar o controle da situação e disfarçar.

Shanks, no entanto, não estava pronto para deixá-la escapar tão fácil dessa vez. — Bebida eu vou levar, mas acho que temos uma conversa inacabada... da outra noite.

A tripulação observava os movimentos do capitão com olhares atentos e risadinhas abafadas. Eles conheciam bem Shanks, e a situação diante deles era uma que o pirata havia vivido incontáveis vezes antes.

Parece que ele encontrou uma sereia. — Yasopp ironizou, um sorriso zombeteiro nos lábios enquanto cruzava os braços.

Do jeito que ele está sedento, tenho pena dessa mulher. — Lucky Roo continuou a provocação, rindo enquanto mordia outro pedaço de carne.

Benn, sempre o mais sensato, respirou fundo, balançando a cabeça com um leve suspiro de exasperação. — Deixem de ser uns vagabundos e comecem a separar o que vamos levar. — Sua voz carregava um tom autoritário, mas mesmo ele não conseguia esconder o leve sorriso no canto dos lábios. Eles conheciam bem o capitão, sabiam que o jeito despojado e brincalhão de Shanks muitas vezes mascarava sua intensidade.

Enquanto isso, nos fundos da taberna rústica, a tensão entre Shanks e a mulher era palpável. Ela o encarava com uma mistura de frustração e curiosidade, o corpo tenso, enquanto o rubor de suas bochechas denunciava o embaraço que tentava esconder.

Acho que não temos nada para conversar. A não ser o fato de você ser um pervertido. — Ela disse, tentando manter o tom firme, mas o leve tremor em sua voz a traía. As bochechas ainda estavam coradas, o que só fez Shanks rir.

Pervertido? — A voz do ruivo soou carregada de sarcasmo, com um toque provocador. Ele se aproximou mais, seus olhos fixos nos dela, intensos e penetrantes. — Nem deu tempo de ver alguma coisa. — Shanks ironizou, um sorriso travesso dançando em seus lábios enquanto a olhava de cima a baixo, mas sem ultrapassar a linha do desrespeito, ainda mantendo seu charme perigoso.

Ela sentiu os pelos de seus braços se arrepiarem com a aproximação do pirata, o coração acelerado enquanto o encarava. Ele era charmoso, ela não podia negar, mas também carregava consigo uma aura de perigo e sedução que a deixava em alerta. Tudo nele, desde o jeito descontraído até o brilho malicioso nos olhos, gritava que ele não valia nada — pelo menos, não no sentido tradicional.

Você é o tipo de homem que sabe que não presta, não é? — Ela murmurou, os olhos faiscando desafiadoramente.

Shanks soltou outra risada, inclinando-se um pouco mais perto, sua presença quente e imponente. — E ainda assim, aqui estamos nós, conversando.

O ar parecia denso, quase palpável, como se a atmosfera ao redor deles tivesse se tornado mais pesada. Os olhos dela permaneciam fixos nos de Shanks, um silêncio tenso pairando entre ambos, e cada segundo que passava parecia se arrastar como horas. Mas o som repentino de um estrondo quebrou o encanto, desviando a atenção da mulher para o balcão. Lá estava Joshamee, o chefe da taberna, um homem de personalidade difícil e gosto igualmente intragável.

Ei, Pérola! — Ele gritou, sua voz grave ecoando pela sala enquanto cruzava os braços musculosos sobre o peito largo. — Você tem mesas a servir, se quiser pagar sua dívida, gracinha.

Ela revirou os olhos com impaciência, mantendo a compostura apesar da irritação que sentia. — Estou indo, Joshamee. Estou atendendo um possível cliente! — Desconversou, tentando se livrar da situação. No entanto, o enorme homem ergueu-se de seu lugar e se aproximou. Seus cabelos pretos, trançados com contas coloridas, balançavam a cada passo. Seus olhos escuros como o fundo do oceano fitaram Shanks com desconfiança, sem reconhecê-lo à primeira vista.

Ele parece interessado em outro tipo de bebida. — A sagacidade na voz de Joshamee era quase indecorosa, e Pérola respirou fundo, segurando a irritação.

Não faça um escarceu, Joshamee. — Tentou contornar a situação, mas o riso grave do taverneiro a fez estremecer.

Relaxa, querida Pérola. — Ele disse, chamando-a pelo apelido de forma condescendente antes de se virar para o ruivo. — E você, pirata, o bordel é daquele lado da calçada. A Pérola costuma ser bem cara, se é que me entende.

Joshamee apoiou uma mão pesada no ombro de Shanks, o tom de voz carregado de ironia enquanto ofendia a mulher sutilmente. Shanks, no entanto, apenas sorriu, sem perder a calma habitual. Era um sorriso afiado, carregado de algo que Pérola não conseguiu identificar de imediato. E então, inexplicavelmente, ela deu um passo para trás. Algo naqueles olhos do ruivo a fez sentir uma onda de alerta percorrer seu corpo.

Por que recuou? Ela, uma mulher que enfrentava situações difíceis diariamente, sentiu algo naquele sorriso. Não era medo, mas uma intuição que a instigava a ficar atenta.

Shanks fechou os olhos por um breve momento, respirando com calma, antes de desviar o olhar para Beckman, que estava a uma distância observando tudo com sua típica tranquilidade. Quando o ruivo voltou a fitar Joshamee, algo em seu olhar havia mudado, algo que fez o taverneiro hesitar. Um segundo depois, a dor repentina no pulso fez o homem recuar rapidamente, com o braço queimando e latejando. Ele olhou para baixo e viu uma faca cravada com precisão no seu pulso, lançada de forma tão sutil e rápida que parecia impossível.

Shanks manteve a expressão serena, como se nada tivesse acontecido, enquanto o taverneiro puxava a mão com pressa, claramente abalado. Era como se o ataque de Benn tivesse sido apenas mais uma parte da conversa.

Como a sua bela funcionária estava dizendo antes, — Shanks disse, com um sorriso tranquilo que não combinava com a tensão do momento — eu estou interessado em muitos tipos de bebidas.

Ele lançou um olhar direto para a mulher, seus olhos brilhando com uma intensidade que a fez prender a respiração.

E as mais caras são exatamente aquelas que eu gosto de beber. — Completou, sua voz baixa, quase sedutora.

Pérola, apesar da situação embaraçosa, manteve um sorriso de canto, quase imperceptível, mas o suficiente para que o ruivo o notasse. Joshamee, derrotado e frustrado, se afastou sem dizer mais nada, compreendendo que não havia espaço para confronto ali, pelo menos por enquanto.

Quando o homem finalmente saiu de vista, Shanks voltou a encará-la, seus olhos escurecendo levemente com curiosidade e desejo. — E então, onde estávamos... Sereia?

Ela respirou fundo, tentando manter o controle, e encarou o ruivo sem hesitar.

Na parte em que você me mostra que tem dinheiro o suficiente para pagar por toda essa bebida, inclusive aquelas que seu bando de arruaceiros já começou a consumir. — Sua voz era firme, mas carregada de sarcasmo. Ela inclinou a cabeça para a direita, desafiando-o, e Shanks, sempre brincalhão, acompanhou o movimento antes de explodir em uma gargalhada.

Caramba, mas já começaram sem mim? — Ele disse, virando-se para ela novamente com um sorriso despreocupado, que a fez revirar os olhos.

Quantas peças de bronze isso vai me custar? — Perguntou, enquanto ela lhe dava as costas, caminhando até o fundo da taberna, onde ficava a escada que levava ao porão de vinhos e runs.

Duzentas peças, além de outras mil berries. — Ela respondeu, sem se virar. Shanks aproveitou o momento para observá-la mais atentamente, seu olhar viajando pelos contornos de seu corpo, que, apesar de coberto pelo vestido, espartilho e anágua, ainda exalava a mesma beleza que o encantara naquela noite na praia.

Ele se aproximou silenciosamente, o sorriso malicioso crescendo em seus lábios. — E se eu lhe der uma peça de ouro? — Perguntou, sua voz tão próxima que ela pôde sentir o cheiro de rum e maresia fresca misturados à presença dominante do pirata.

Seu corpo reagiu instintivamente à proximidade, a respiração ficando pesada por um breve momento. Mas Pérola se forçou a não se abater.

Nesse caso, terá direito a uma das melhores bebidas da casa. — Respondeu, sua voz calma, mas sua postura tensa.

Shanks, no entanto, não estava interessado apenas nas bebidas. Seu olhar percorria o corpo dela com malícia, e a maneira como ele a fitava parecia despi-la por completo, mesmo que ela estivesse coberta.

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O rosto de Shanks ardia do lado direito, a marca fresca do tapa pulsando levemente enquanto ele massageava a área com um sorriso no rosto, antes de se sentar ao lado dos companheiros, ainda rindo por dentro da situação.

Pelo visto, perdeu a manha, capitão. — Yasopp gargalhou, seu riso ecoando entre o grupo, enquanto os outros trocavam olhares de diversão. Shanks, sem perder a compostura, apenas levantou a garrafa de rum e tomou um longo gole, deixando o líquido descer pela garganta e apagando a dor no rosto.

"Essa mulher é realmente interessante," ele pensou consigo mesmo, o toque do tapa ainda ardendo em sua pele, mas de alguma forma aumentando sua curiosidade. Era raro encontrar alguém que o enfrentasse assim, e a imagem dela, de olhos brilhantes e expressão desafiadora, não saía da sua cabeça.

Benn, sempre observador, notou o olhar distante e pensativo do amigo e sorriu de canto. Ele sabia que aquilo estava longe de terminar, e algo lhe dizia que ainda veriam muito mais daquela "sereia" e do impacto que ela teria em seu capitão.

O silêncio entre eles foi interrompido por Lucky, que se inclinou para frente com um pedaço de carne nas mãos.

Quer dizer então que, além de ser dura na queda, a moça também sabe dar um belo tapa, hein? — Ele provocou, recebendo mais risadas do grupo.

Shanks apenas sacudiu a cabeça e riu, já imaginando o que mais poderia acontecer.

Após a farra, quando a maior parte do bando já havia saído carregando os barris comprados, Shanks se levantou lentamente e foi até a mesa. Com um sorriso despreocupado, ele deixou os berries correspondentes ao valor da comanda sobre o balcão, sem dizer uma palavra. Joshamee, o taverneiro, que antes estava cheio de sagacidade, apenas assentiu em silêncio, observando o pirata ruivo com olhos atentos. O contraste entre aquele sorriso genuíno e a ameaça velada de horas atrás o deixou cauteloso.

Antes de se afastar, Shanks retirou um pequeno embrulho de pano surrado e deslizou-o suavemente na direção de Joshamee.

Isso aqui é para aquela sereia que me atendeu, — disse ele, a voz calma, mas carregada de intenção. — E saberei se ela não receber.

O taverneiro fez menção de pegar o embrulho, mas Shanks, com um movimento ágil, colocou a mão sobre o pacote, impedindo-o. O gesto, apesar de sereno, exalava uma autoridade inquestionável.

Isso quer dizer que é apenas para ela ver. — Ele afirmou, olhando o homem diretamente nos olhos, sua presença intimidante e segura. Joshamee, com o olhar fixo na única mão do ruivo, entendeu bem a mensagem.

Shanks se afastou com a mesma tranquilidade que tinha ao chegar, como se o ambiente pesado de ameaças e tensão nunca tivesse existido.

Até breve, suas bebidas são uma delícia! — Ele falou, sorrindo amplamente enquanto se dirigia para a saída da taberna.

Joshamee ficou observando o ruivo se distanciar, convicto de que aquelas palavras não estavam se referindo ao rum excelente nem aos barris de vinho envelhecido. 

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