capítulo quarenta e quatro

Nikolai não sentou comigo no voo de volta. Mas ele me deu um paletó — que imaginei que fosse seu — de cor bege, para me proteger do frio. Segurei firmemente aquela peça de roupa ao redor do meu corpo, como se a minha vida dependesse disso.

Voltei sentada ao lado da minha mãe, mas dormi a maior parte do tempo. Como todas às vezes em que eu abria os olhos ela estava acordada, supus que minha mãe fez o oposto de mim. Talvez fosse algum instinto de mãe. Ficar acordada depois de um evento traumático para garantir que sua filha estava bem. Desejei que, quando ela finalmente conseguisse dormir, nenhum pesadelo tomasse seu sono.

Com São Francisco livre do Comerciante de Almas — ou melhor, meu pai — eu teria liberdade para ir aonde quisesse sem seguranças. Contudo, depois da reunião na mansão dos Tarasova que aconteceu assim que chegamos para atualizar a situação da guerra entre máfias, tudo que eu queria era tomar um banho relaxante e dormir. Por horas.

E foi o que eu fiz. Levei minha mãe para meu apartamento em São Francisco e Nikolai insistiu que um segurança ficasse na entrada, apenas para emergências ou se precisássemos de algo. Eu estava exausta demais para discutir — física, mental e emocionalmente —, e acabei concordando sem ele precisar pedir duas vezes.

Meu apartamento era pequeno — eu nunca deixei que Nikolai me comprasse um maior. Gostava de pensar que tudo que eu tinha fora mérito meu, do meu trabalho e das minhas conquistas. Claro, agora eu estava de volta à estaca zero, sem nenhum emprego. Para piorar, eu envolvida até demais numa guerra entre a máfia do meu ex-namorado e do meu pai. Uma bela reviravolta de eventos na pacata história de Elaine Róson, eu diria.

Eu afirmara para mim mesma que ajudaria a acabar com o Comerciante de Almas inúmeras vezes, mas ainda não me convencera disso. Que utilidade eu tinha além de ser filha dele e não poder ser ferida? O que eu podia fazer? Não era como se pintar e tocar instrumentos fosse algo de útil. Não era como se eu pudesse chegar diante do meu pai com um desenho e dizer "ei, olha que desenho lindo" e ele simplesmente decidir se entregar. Além disso, eu não entendia de estratégias de guerra, não sabia lutar, nem tinha dinheiro.

Quer dizer, eu tinha. Da minha obra que fora comprada por uma fortuna: "A Salvação e a Maldição". A obra que eu vira no jatinho particular de Dimitri antes de tudo acontecer. Não entendia muito bem o que aquilo significava. Então ele fora o comprador anônimo? Eu certamente o confrontaria sobre isso. Mais tarde.

Nikolai, Dimitri, meu pai, máfia, guerra, eu mesma... Tudo isso estava me dando uma baita dor de cabeça, nem sabia se eu podia falar com uma terapeuta sobre isso sem colocá-la em risco.

Era final da tarde quando eu e a minha mãe chegamos no meu apartamento. Eu mostrei-lhe o local inteiro e cada uma seguiu para um banheiro em silêncio. Nem soube quanto tempo eu fiquei debaixo do chuveiro. Quase uma hora, provavelmente. E passei sabonete tantas vezes que provavelmente arrancara uma camada da minha pele. Mas valeu a pena. Deixei a água quente lavar as emoções que eu sentia e que consumiam meu peito pouco a pouco. Em vez de me afogar na mágoa, tristeza, raiva e confusão, me deixei afogar pelas gotas frenéticas que caíam em cascata uma após a outra, limpando cada canto do meu corpo.

Não me dei ao trabalho de me vestir ou de secar o cabelo. Apenas coloquei um roupão, fui para a cozinha tomar um copo d'água — onde encontrei minha mãe saboreando uma maçã e observando a vista de São Francisco pela janela — e fui dormir. Dormi na sala mesmo, já que minha mãe ficaria no meu quarto.

Meu sono foi agitado. Tive vários sonhos. Sonhei com os olhos de Michael me encarando e sua voz fantasmagórica dizendo que alguém levara sua alma. Sonhei com a senhora Shopperau e Declan Shopperau, o casal de milionários donos de uma fábrica de sabonetes — que, na verdade, era um disfarce para o tráfico de drogas que eles controlavam — que foram assassinados na festa de noivado. Sonhei com as risadas diabólicas de Grey, e gritei quando suas mãos apertaram meus pulsos, envolvendo-os numa corda apertada. Então, por fim, sonhei com meu pai. Sonhei que ele quebrara as pernas de Dimitri, forçando-o a se ajoelhar, e depois arranhara o canto do meu olho, para eu ter uma cicatriz igual a dele.

Acordei suando frio.

Estava... de dia?

— Você dormiu o resto da tarde toda, depois de noite e até agora. Já é meio-dia. — explicou minha mãe, como se lesse meus pensamentos. Estava sentada numa poltrona do outro lado da mesinha de centro, bebericando uma xícara do que imaginei que fosse chá. — Deixei uma xícara para você, se quiser.

Me sentei, ainda meio zonza.

— Estou com fome, na verdade. — murmurei. — Você comeu? Se não me engano não tinha... — um bocejo. — Não tinha muita comida na cozinha. Eu costumava passar a maior parte do tempo fora.

— Não estava com fome com acordei. — ela me ofereceu um sorriso. — Mas agora estou.

Decidimos pedir burritos de um restaurante no fim da rua. Costumava ser a comida favorita da minha avó — mãe do meu pai mafioso —, e ela sempre o fazia quando a visitávamos, então eu e minha mãe acabamos nos apaixonamos pelo prato.

No tempo em que esperávamos pelo almoço, verifiquei meu celular. Tinha tantas mensagens e ligações perdidas que fiquei surpresa pelo meu aparelho não ter explodido. Algumas eram de Naira, minha melhor amiga que estava preocupada por eu não ter dado sinal de vida durante aqueles dias. Outras eram de Kessie e Henry, perguntando como eu estava e se precisava de algo. Nikolai mandara uma mensagem perguntando o mesmo, mas apenas uma vez. Apenas uma era de Celine, a chefe de segurança me avisara sobre a troca de guardas na entrada de casa. Nenhuma de Dimitri.

Quando a comida chegou, eu e minha mãe sentamos no balcão da cozinha para comer. Chegava a relembrar os velhos tempos. As velhas refeições em família antes dos negócios ilícitos do meu pai nos separarem. Parecia ter acontecido há milênios, e ao mesmo tempo ontem. Era uma sensação estranha, ter sua vida e tudo que você conhecia tão alterado de repente. Tudo que eu tentara fazer desde a festa de noivado fora processar a situação, mas sempre outra coisa acontecia que me deixava ainda mais abalada.

Talvez a vida fosse sobre isso. Ainda mais na máfia. Uma montanha-russa de emoções. Mas nunca paz. E, se fosse de fato uma montanha-russa, eu certamente era aquela pessoa no fundo, gritando, vomitando e pensando "dá tempo de voltar?".

Comentei sobre a minha teoria da montanha-russa para minha mãe durante o almoço. Ela fez uma careta quando mencionei o vômito, já que estávamos almoçando, e disse que se imaginava como a pessoa que ficava imóvel, sem conseguir gritar e segurava com firmeza na barra protetora. Não pude deixar de concordar.

— Você vai voltar? — indagou minha mãe, enquanto lavávamos os pratos. — Para aquela mansão? Para ajudar aquela família?

— Não posso ficar parada sem fazer nada, mãe. — murmurei, tentando ser compreensiva. Ela era orgulhosa demais para dizer, mas estava estampado em seu rosto o quanto se preocupava e não queria que eu me envolvesse mais nessa guerra entre máfias. — Talvez, antes... eles tivessem uma desculpa para me afastar. Mas agora, o papai sendo quem ele é... — suspirei e ela assentiu.

— Acha que ele é sua responsabilidade? — apenas dei de ombros — Nada do que ele fez... faz é nossa culpa. Não temos responsabilidade com as ações dele.

— Eu sei. Mas não posso continuar minha vida sabendo que uma guerra está acontecendo e que as pessoas que eu me importo correm perigo diariamente. Eu posso ser bem inútil comparado a eles, mas sou a filha dele. Tenho uma vantagem que ninguém mais tem.

— Você diz, poder entrar no território dele e não ser ferida pelos capangas?

Foi a minha vez de assentir. Minha mãe estava compreendendo a situação mais rápido do que eu esperava.

— Por enquanto, não se preocupe. Você ouviu o Dimitri na reunião. São Francisco está segura. Eles vão tirar um tempo para cuidar da cidade e fortalecê-la para evitar novos ataques. Vão ficar na defesa, por agora. Analisando o que podem fazer e não fazer para ganhar essa guerra. Que aliados buscar, quais lugares fortalecer. Vão se reerguer para o que virá.

— Você confia neles? — uma pergunta honesta, seus olhos cheios de aflição. — Confia que isso que estão fazendo... será útil?

— Com a minha vida. — disse eu, sem hesitar. Minha mãe fez que sim com a cabeça, pensativa. Para assegurá-la daquilo, coloquei a mão em seu ombro. — Prometo que se eu for fazer qualquer coisa, avisarei você primeiro.

— Não os conheço, mas tenho fé em você.

Ela não fazia ideia do quanto aquilo significava para mim. Eu podia sentir, gradualmente, aquele nó que amarrava meu coração toda vez que eu estava com a minha mãe se desfazer.

Não pude responder, porém, porque a campainha tocou. E um sorriso largo surgiu no meu rosto, sabendo exatamente o que era.

— Eu estava tão preocupada! — exclamou ela, me envolvendo num abraço leve. — Nikolai me disse que o avião de vocês foi interceptado pelos mesmos malucos da festa de noivado!

Mentir. Precisava continuar mentindo para ela. E odiava isso.

— É, mas está tudo bem agora. — falei sorrindo. Eu sentira tanta falta de Naira que chegava a doer em meu peito. Minha melhor amiga. Não. Minha irmã. Ela estivera lá quando ninguém mais esteve.

— Mas você está segura?

— Estou. Tem até um segurança lá fora.

— Que bom. — pude ver a emoção pelas lágrimas que se formaram em seus olhos. Ela estava realmente tão preocupada quanto a minha mãe. Talvez até mais, porque não sabia da situação real. — Eu não sei o que faria se perdesse você.

— Você não vai se livrar de mim tão fácil. — enxuguei a lágrima que escorreu pelo seu rosto e a abracei novamente, ambas rindo. — Quer conhecer minha mãe?

— Claro que eu quero!

Minha mãe e Naira se deram automaticamente bem. Quando vi, Naira já estava falando que queria fazer vestidos para ela, e pedindo que cantasse algo. Em algum momento, elas perceberam que ambas tinham a duologia "Mamma Mia" como seus filmes favoritos, e minha melhor amiga insistiu para assistirmos juntas, nós três. Não tinha como recusar.

Contudo, antes, fomos ao mercado para reabaster a minha geladeria e quando voltamos Naira implorou para fazer pipoca para nós. Ao terminarmos, nos aninhamos no sofá, eu entre as duas, dividindo um cobertor com a minha amiga. De acordo com que o filme passava, eu me via mais distraída, presa numa teia de preocupações, pensamentos e decisões. Naira percebeu.

— Eu sei muito bem quando você não está prestando atenção num filme. — ela sussurrou para mim, baixinho para que minha mão não escutasse. Balancei a cabeça, tentando disfarçar aquilo com um sorriso.

— Odeio como você me conhece tão bem. — falei, jogando um pouco de pipoca do meu pote nela.

— Antes que você faça uma bagunça... — ela revidou, atirando uma pitada da sua pipoca em mim. — Vai me dizer o que está te incomodando? Tem algo a ver com a aliança de Nikolai que sumiu do seu dedo?

Olhei para minha mãe rapidamente para garantir que ela não estava ouvindo.

— Não tem nada me incomodando.

— Tem sim. Seja o que for, você sabe que pode me contar, Elaine. — a sinceridade em sua voz e a forma que sua mão tocou a minha atingiu meu coração.

— Não é nada que eu não possa lidar sozinha. — mentira. Mas dessa vez, uma mentira que eu contava para mim mesma.

— O lance é que você não precisa. Você não está sozinha. Você tem a mim.

— E você tem a mim.

— Exato. — ela sorriu. — Sou eu e você contra o mundo. Sempre.

Respirei fundo. Eu podia... podia ser honesta com Naira. Ou pelo menos, em parte.

— Aqueles malucos atrás de mim e de Nikolai... Realmente mexeu comigo. Eu pedi um tempo para ele, foi isso. — forcei um sorriso triste, não sabendo mais por quanto tempo conseguiria conter as lágrimas. — E estou com medo. E eu me sinto tão impotente. O tempo todo. E eu odeio isso. Eu deveria ser mais forte do que isso.

— Ah, Elaine... — para me consolar, Naira puxou a minha cabeça para me aconchegar em seu ombro, e fez carinho no meu cabelo da mesma forma que eu fazia quando ela chorava pela perda dos pais e da bebezinha recém-nascida. Aquilo foi meu estopim. Desabei em lágrimas em seus braços. Minha mãe percebeu e senti suas mãos frias e magras tocarem na minha perna.

Me deixei liberar tudo que eu sentia através daquelas lágrimas. Todas as emoções acumuladas desde a festa de noivado e que eu tão desesperadamente precisava deixar ir.

— Desculpem, eu estou estragando o filme. — choraminguei.

— Claro que não, querida. — disse a minha mãe. Naira concordou.

— Elaine, o que eu posso te dizer é que se Nikolai é o cara certo, vocês vão se resolver. Eu tenho certeza. Eu vejo como vocês olham um para o outro. E, mesmo se não der certo, sei que tem muitos caras por aí que terão a sorte em namorar você. Mas pode avisar para eles que seu coração já tem dono, e sou eu. — não pude deixar de rir chorosa com a fala de Naira. — Vai dar tudo certo. Eu tenho certeza.

— Obrigada, Nay.

Minha mãe e Naira me deixaram eu me acalmar um pouco antes de retornarmos ao filme. Dessa vez, eu prestei atenção.

eaii gente tudo bem??

esse foi um capítulo mais calminho, masss como estamos na reta final, eu não posso prometer tranquilidade por muito tempo

aliás, feliz véspera da véspera de natal :)) como vcs vão passar o natal??

bjss e até o próximo capítulo!!

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