capítulo quarenta
Minha mãe gritou e eu nos puxei para debaixo da mesa.
O tiro atingira o vidro da janela do minúsculo apartamento da minha mãe e, enquanto eu a segurava em meus braços trêmulos, Dimitri ficou ajoelhado debaixo da janela e usou o buraco para atirar de volta.
Maldito. Maldito, maldito, maldito. Seja lá quem estivesse vigiando a minha mãe avisara meu pai sobre a nossa visita, e ele provavelmente supôs que eu a levaria comigo. Ele estava certo, claro, mas não queria que soubesse. Não era para ser assim. Eu não queria que a minha mãe vivenciasse perigo — pelo contrário, faria de tudo para evitar que isso acontecesse —, mas meu pai aparentemente tinha outros planos.
— O que está acontecendo? — murmurou minha mãe, tremendo em meus braços. A apertei com mais força, da mesma forma como ela fazia quando eu era criança e algo me deixara assustada, com medo.
Um tiroteio começou entre Dimitri e quem quer que estivesse lá fora.
— É só um homem! — exclamou Dimitri para nós, suas mãos firmes não hesitando duas vezes ao segurar aquela pistola na direção do capanga do Comerciante de Almas. Do capanga do meu pai. — Precisam sair e correr para o carro antes que mais cheguem!
— Mãe, tem alguma outra saída? — a perguntei, e ela assentiu freneticamente, engolindo seu medo. Minha mãe era orgulhosa, sempre foi. Não deixaria o que sentia de ruim transparecer, para proteger não apenas o seu ego, mas a mim. Para que eu não ficasse assustada. Contudo, naquela situação, os papéis deveriam estar invertidos. Eu que era responsável por ela, eu que deveria protegê-la. E, mesmo assim, minha mãe escondeu o temor que sentia com uma máscara sóbria na face, e olhos arregalados.
— T-tem uma escada de emergência lá atrás. — tartamudeou ela, sua voz falhando, um contraste com seu rosto sério.
— Vão! — gritou Dimitri, se abaixando toda vez que o capanga disparava. Eu estava prestes a refutar, dizer que não poderia deixá-lo ali, mas o seu olhar se encontrando com o meu dizia tudo. Vocês precisam ir, era o que aquele olhar dizia, precisa tirar sua mãe daqui, eu consigo segurar as pontas.
Ele conseguia. Eu sabia que conseguia. E que, nesse momento, ficar ali seria inútil e perigoso. Eu precisava sair, manter minha mãe segura e depois encontrar uma maneira de ajudar Dimitri. Os outros que nos esperavam lá fora certamente teriam uma solução. Eu só torcia para que o fato deles estarem ali não fosse suficiente para dar ao meu pai uma autorização para nos atacar.
— Vão logo! — escutei Dimitri berrar no instante em que uma bala atingiu um vaso de flores da minha mãe, espatifando-o em milhões de pedacinhos. Ele não precisou me pedir duas vezes, pois segurei firmemente no braço da minha mãe e comecei a nos arrastar na direção oposta do tiroteio.
— Vamos. — falei para ela, no tempo em que o líder da máfia Tarasova partia para o ataque. Para nos dar tempo para fugir, ele saiu do apartamento pela porta da frente, atirando e caminhando na direção do capanga que começara tudo aquilo.
O apartamento da minha mãe era realmente pequeno, então não demoramos a chegar na área de serviço, que ficava numa parte aberta. Minha mãe apontou para o lado direito, para onde estavam as tais escadas de emergência e começamos a descer correndo, sem olhar para trás. Minha mão segurava tão firmemente no pulso da minha mãe que eu imaginei que fosse deixar marca. Não soube dizer o que era mais veloz, o som das balas, nossos passos, ou as batidas do meu coração.
Enquanto descíamos, era possível observar das janelas e varandas os vizinhos aterrorizados que se chocavam com a cena. Partiu meu coração quando eu vi uma jovem mais nova que eu abraçando uma menininha, ambas escondidas atrás de um sofá. Era esse tipo de coisa que tanto eu, quanto os Tarasova queríamos evitar. Que os civis fossem envolvidos. Que houvesse tiroteios e lutas perto deles. Aquilo não era certo. Essa guerra não tinha nada a ver com eles. Mas o Comerciante de Almas não se importava. Meu pai não se importava. Ele até mesmo sequestrava pessoas e os traficava como se fossem mercadorias. Eu sentia nojo daquilo. Nojo de carregar os mesmos genes que ele.
De repente, um senhor desesperado passou correndo por nós, me empurrando e me fazendo cair de joelho no chão. Fiz careta quando uma onda de dor vinda do joelho esquerdo me atingiu. Provavelmente estava ralando e sangrando, mas aquele não era o momento de se preocupar com isso — ainda mais sendo um ferimento tão banal. Levantei no mesmo segundo e continuei.
No minuto em que chegamos ao final das escadas, os homens de Dimitri nos puxaram para perto deles, para dentro de um carro blindado com janelas cobertas por películas escuras. Precisei de alguns instantes para recuperar o fôlego e processar que estávamos bem, sem nenhum ferimento — quer dizer, sem contar meu joelho. A adrenalina ainda percorria minhas veias e não desapareceria tão facilmente. De forma alguma soltei o braço da minha mãe. Mas também não tive coragem de olhar para ela. Mirei o lado de fora, para onde os homens estavam, cercando o carro, e abri um pouco a janela para escutar o que acontecia.
Escutei o som de soco. Os tiros pararam. Depois, escutei o som de alguém sendo arrastado para perto de onde estávamos.
— Eu não direi nada! — escutei gritar. Alguém que eu não conhecia. O capanga do meu pai. Mais um soco.
— Cale-se ou eu arranco sua língua aqui mesmo.
Uma voz fria como a morte. Dimitri. Seguida por silêncio.
— Coloquem-no no outro carro. O levaremos para algum lugar escondido. Já estou indo. — continuou Dimitri. Outras pessoas obedeceram, porque escutei passos e alguém sendo arrastado para longe.
Batidinhas na janela me fizeram saltar de susto. Meu coração batia tão rápido que poderia muito bem escapar pela boca a qualquer momento.
Abri a janela.
Dimitri se inclinou na abertura ali para conseguirmos nos ver. Uma seriedade sombria tomava conta de sua face; uma pitada de ódio presente ali. Não precisei olhar para a sua mão para saber que tinha sangue ali.
— Estão bem? — indagou ele, preocupado. Minha mãe não conseguiu responder. Estava atônita demais. Assim como eu quando descobri tudo.
— Estamos bem. — murmurei. — E você?
Ele apenas deu de ombros. Eu sabia que aquilo deteriorava Dimitri de dentro para fora. Ele não gostava de ser violento. Era necessário.
— Sinto muito que tenham invadido sua casa, eu... — pude reparar no ódio em sua voz quando ele falou com a minha mãe. Ódio de si mesmo. Culpa. Ele sentia muita culpa. — Eu não deveria ter deixado isso acontecer. E vou garantir que nada assim nunca mais aconteça.
— Não é sua culpa, Dimitri.
— Vou levá-lo para fazer algumas perguntas. — disse ele, ignorando meu comentário. Tradução: eu vou socá-lo até que fale algo de útil. — Vocês se importam de ir para o aeroporto na frente? Eu prefiro... — sua voz falhou. — Prefiro fazer isso sozinho. Mas as manterei informadas.
— Sem problemas. Acha que... — suspirei. Não queria nem pensar naquilo — Acha que meu pai conseguirá uma autorização para começar uma guerra? Já que o seu capanga te viu aqui...
— Se ele tiver avisado então... — Dimitri expirou profundamente, ambos sabíamos o que aquilo significava. — Volto logo.
Assim, seguimos de volta para a instalação no aeroporto particular.
Não soltei o braço da minha mãe em nenhum momento.
.
Dimitri não voltou logo.
Quando chegamos, fui cuidar para que minha mãe estivesse bem. Fiz a ela um pouco de chá e a ajudei a se acalmar com exercícios de respiração que eu havia aprendido na época em que fazia terapia — honestamente, estava seriamente pensando em voltar, mas não vinha ao caso. Apesar disso, não consegui fazer minha mãe relaxar os ombros ou tirar aquela expressão assustada e abismada do rosto. Mesmo que seu orgulho não a deixasse admitir e a fizesse tentar esconder, eu sabia que ela estava abalada. Infelizmente, tudo acontecera muito rápido para dar a ela qualquer oportunidade de processar.
Odiava meu pai por isso. Odiava ele por muitos motivos, mas agora por aquilo também. Por tanto tempo eu estivera chateada por Nikolai por não ter pensando que seu passado na máfia poderia nos atingir; mal sabia eu que eu seria envolvida de um jeito ou de outro, já que meu pai era o Comerciante de Almas.
Estremecia toda vez que pensava naquilo.
Segurei o braço da minha mãe até ela dormir, enquanto o por-do-sol trocava aqueles raios amarelados e amenos da tarde por uma noite chuvosa — estava chovendo bastante, por sinal, a ponto de um dos rapazes ter acendido a lareira. Eu tive que fingir que ia dormir para convencer minha mãe se deitar, mas a verdade era que eu esperaria por Dimitri. Queria saber o que acontecera no interrogatório; eu simplesmente não seria capaz de colocar a cabeça no travesseiro e dormir antes de saber.
Quando minha mãe finalmente dormiu, me levantei e fui me higienizar para poder trocar aquelas roupas por outras mais confortáveis — no caso um vestido branco e reto, de seda, que descia até minha panturrilha —, e depois limpar meu ferimento no joelho. Ele não estava tão grave, mas tinha bastante sangue. Não fiz um bom trabalho com o curativo, estava trêmula e distraída demais prestando atenção no que os homens de Dimitri diziam. Daremos privacidade a você sua mãe, mas teremos patrulhas ao redor, foi o que um deles disse. Outros também vasculharão todo o quarteirão para garantir mais que não fomos seguidos, embora já tenhamos feito isso mais cedo, explicou outro. Apenas assenti, tendo certeza que eles sabiam o que seria melhor para nossa segurança.
Eu acabara de me sentar no pequeno sofá depois que os seguranças dos Tarasova, me deixando envolver pelo crepitar da lareira e a sensação aquecedora que me envolvia, quando a porta escancarou aberta. Respingos de água caíram dentro da instalação, mas nada comparado ao homem com os pés quase encharcados que entrou. Cabelos escuros, olhos azuis, tatuagens pelos braços e peitoral... Eu sabia quem era sem nem precisar olhá-lo. Olhei mesmo assim.
Ele estava com raiva. Muita raiva. Estava expresso em seu rosto furioso e sua respiração rápida — a qual dava a impressão que ele estava prestes a cuspir fogo pelas narinas. Não que isso me intimidasse, mas deixei ele falar primeiro.
— Está morto. — disse ele, simplesmente. Não estava surpresa, nem triste... Só estava com raiva por estar numa situação em que não havia outra escolha, a não ser matar. Kessie tinha razão de tanto odiar a guerra e temer que aquela sede de sangue consumisse seus irmãos. Henry era, de fato, ambicioso, mas Dimitri... Ele odiava tanto quanto eu.
Havia sangue respingado nas mãos e braços de Dimitri. Imaginei que ele tivesse usado um guarda-chuva para chegar ali, por isso suas mãos estavam secas e o sangue não saíra.
Não soube o que dizer. Apenas observei ele tirar os sapatos molhados e seguir para o banheiro, que era praticamente do lado. Eu não precisava me mover nenhum centímetro e ainda conseguiria vê-lo perfeitamente no outro cômodo, já que a porta estava aberta. Aquela era realmente uma pequena instalação usada somente em emergências, quando precisavam ir a Miami e em qualquer outro lugar corriam risco demais, por ser território do Comerciante de Almas.
Falando nisso...
— Meu pai sabe...
— Não. — Dimitri me interrompeu antes que eu terminasse a pergunta. Ele me encarava através do reflexo do espelho do banheiro, apenas parado, sem se mover, com as mãos encostadas na pia e inclinado para frente. — Aquele cara foi burro o suficiente de não contar para ele. Foi necessário... muito para fazê-lo confessar. Mas o seu pai não soube que estivemos na casa da sua mãe. O capanga apenas pegou uma arma e começou a atirar, achando que seria promovido ao nos levar até seu pai. — uma pausa. — Tolo.
Não pude deixar de respirar um pouco mais aliviada. Se meu pai não sabia, estávamos mais seguros ali e ele não tinha autorização para nos atacar, de acordo com as regras dos mafiosos.
— Como está sua mãe?
Dei de ombros, engolindo seco.
— Está reagindo melhor do que o esperado, acho. Ela até conseguiu dormir. E nem precisou fugir para outro país.
Meu tom de brincadeira foi sutil, assim como o sorriso triste nos lábios de Dimitri. Ele desviou o olhar, quase que... envergonhado. E começou a tentar limpar o sangue das mãos. Todo o ódio que sentia fora transferido para aquela ação, mas, com quanto mais raiva, força e rapidez ele esfregava sua pele, menos o sangue saía.
— É minha culpa.
Franzi as sobrancelhas, como se ele tivesse dito o maior absurdo do mundo.
— Não, não é sua culpa...
— É, sim. É minha culpa. — insistiu Dimitri, continuando a esfregar suas mãos e braços freneticamente. O sangue não saía. Fiquei de pé, me aproximando devagar.
— Dimitri...
— É. Tudo. Culpa. Minha... Porra!
Dimitri exclamou irritado, batendo as mãos fechadas em punho contra a pia quando percebeu que nada do que ele fazia estava adiantando. Ele abaixou a cabeça, seu maxilar tensionado e sua respiração repleta de raiva.
Lentamente, entrei no banheiro. Então, peguei um paninho, molhei com água e peguei um de seus braços para começar a lavar o sangue. Ele não relutou. Não me importei com o olhar de Dimitri, apenas continuei fazendo aquilo como se fosse algo habitual do dia a dia. Estava assustada, trêmula, mas agora ele precisava de confiança. Alguém que confiasse e acreditasse nele.
Lavei cada pedacinho da sua pele, das mãos e dos braços, até que o vermelho saísse, voltando a dar lugar ao preto das tatuagens marcadas ali, e ao restante de pele sem tatuagem entre elas.
O último lugar foi a palma da sua mão. Lavei com muito carinho, depois subi para acariciar seus dedos, os quais eu sabia que estavam machucados por socar aquele capanga, e depositei um beijo rápido ali.
— Dizem que um beijo sara tudo. — soprei, tentando erguer os ânimos. Eu odiava a violência, mas entendia o motivo por trás dela. E o sacrifício que Dimitri fazia por ter que ser aquele quem a cometia para nos proteger. Pensando nisso, levantei a cabeça para que nossos olhares se encontrasse, tentando evitar a sensação que surgiu no meu estômago quando me deixei perder naquelas esferas oceânicas. Quase como... como anos atrás. — Não é sua culpa, Dimitri. — fiz questão de repetir.
Ele assentiu. Em concordância, eu esperava.
— Você machucou seu joelho, me disseram. — disse ele, apontando para o curativo mal feito em minha perna esquerda, coberta pelo tecido do vestido.
— Não é nada demais.
Dimitri balançou a cabeça em negação. Nada além de seriedade em sua face. Mas seus olhos... Foi outra coisa que vi ali, mas ainda precisava identificar exatamente o que era.
— Minha vez. — murmurou ele, a voz tão fraca que uma pessoa em outro cômodo não seria capaz de ouvir.
Não relutei quando ele me segurou pela cintura e me colocou sentada numa bancada de madeira de carvalho vermelho que ficava na parede da sala de estar perto da porta do banheiro. Sem dizer mais nenhuma palavra, ele pegou um kit de primeiros socorros numa das gavetas da bancada e se inclinou para tocar em minha perna. Ele fez questão de fazer aquilo lentamente, roçando seus dedos em minha pele enquanto subia a saia do meu vestido até que estivesse sobre meu joelho. O fogo da lareira continuava sem cessar perto de nós, mas a chama que senti acender dentro de mim ao vê-lo naquela posição... Foi por apenas um segundo que senti aquilo, mas, mesmo assim, não pude ignorar como meu estômago embrulhou de culpa. Embora...
E quando ele olhou para mim... Eu descobri o que era aquilo no seu olhar que contrastava com sua expressão séria.
Era luxúria.
Seu olhar transmitia luxúria.
E, ao perceber aquilo, minha respiração ficou estranhamente irregular.
Nenhum de nós disse nada enquanto ele reorganizava o ferimento em meu joelho, trocando aquele curativo improvisado horroroso que eu fizera por um bem melhor, mais limpo. Então, por fim, ele se inclinou ainda mais e beijou rapidamente meu joelho, da mesma forma com que eu beijara suas mãos.
— Você mesma disse que um beijo sara tudo.
E nós precisávamos ser sarados.
Toda aquela tensão, todo aquele tempo... Era agonizante, torturante.
Então, sem nem pensar, somente me deixando levar pelo meu corpo, permiti que suas palavras fossem o estopim que me fizeram puxá-lo pelo rosto e selar seus lábios no meu.
Num beijo.
.
oiee gente, td bem?
bem, eu sei que EU não estou bem, não depois desse beijo
por essa ninguém esperava né ksksks
vcs já deram o primeiro beijo? se sim, como foi? se não, como vcs gostariam que fosse?
bjsss e até o próximo capítulo
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