Capítulo 2
Enquanto sorria, o mundo era lindo,
Para sua companhia, tinha pressa.
Era majestoso ver-te sorrindo,
Seus olhos cintilantes, eram minha promessa.
De: Yolanda Morgan
O café estava mais doce que de costume, minha mãe decerto havia pesado a mão no açúcar, e eu sabia muito bem porque fizera. Melado era o favorito de Dominic, e ela gostava muito de agradá-lo. Talvez fosse uma forma de agradecer por tudo que o rapaz fez por mim quando mais nova.
No ano em que nos tornamos melhores amigos, Dom me defendia de tudo e todos, eu tinha medo de multidão, de lugares fechados e também de ficar só. Ele segurou minha mão quando eu imaginei que ninguém o faria, era a extensão de minha família no colégio. Por estudar em uma série acima da minha, não permanecia o tempo todo ao meu lado, mas sempre que podia, pedia para ir ao banheiro ou beber água, apenas para colocar a cabeça na fresta da porta e espiar como estava sendo meu dia. E quando terminou o colégio, mesmo com minha superação dos antigos traumas, Dominic ainda me esperava no fim das aulas e me acompanhava todos os dias até o portão. Era realmente um irmão para mim.
- Mãe, a senhora vai com a gente na casa do tio John?
- Naquele casebre cheio de mofo? -
- Perguntou retoricamente, contraindo a face enquanto se sentava com um pano de prato no ombro direito. - Deus me livre! Minha rinite já ataca só de pensar. - Coçou o nariz.
- Hm - Dominic resmungou enquanto enchia as bochechas de bolinhos. - Vou ajudar seu pai a pôr as coisas no carro. - Levantou-se, ainda comendo, e fez cócegas em minhas costelas, antes de sair.
Depois que foi, encarei minha mãe, parecia perdida. Sua mente vagava e eu já imaginava o porquê.
- Mãe, fica tranquila, não vai acontecer nada - falei baixo, colocando a xícara no pires sobre a mesa.
- Sabe que meu coração aperta só de lembrar daquele dia - falou esfregando a mão esquerda no peito.
- Nós não vamos passar nem perto do rio, eu prometo. Só vamos cruzar a ponte e deixar o carro quando estivermos bem pertinho da casa do tio John.
- Promete que vai ficar perto desses meninos?
- Claro, mãe. Ninguém chega na beira do rio! Palavra de Yolanda. - Prestei uma continência em tom de brincadeira e ela sorriu.
Eu entendia o medo que ela tinha, pudera, anos atrás, quando eu ainda era criança, meu pai pulou no rio para tentar salvar nosso antigo cachorro e, puxado por uma correnteza, quase se afogou também. Eu ainda me recordo de seus gritos desesperados, enquanto tentava voltar. Por sorte, ou milagre, conseguiu se segurar em um tronco e lá ficou até a ajuda chegar. No fim, tudo acabou bem. Mas o trauma foi terrível, para minha mãe principalmente.
- Yolanda! Só falta a senhorita bonita! -
- Meu pai gritou, com metade do corpo para dentro de casa, na porta da sala.
- Já vou! - Gritei de volta.
Fui até minha mãe, dei um beijo em seu rosto e garanti mais uma vez que tudo ficaria bem. Peguei minha pequena bolsa e a atravessei em meu corpo, lá estava minha máquina fotográfica obsoleta, mas ainda assim amada. E também alguns analgésicos, não andava sem eles. Meu celular já estava no bolso da calça de Dominic e levávamos alguns lanches no carro.
Após nos ajeitarmos no veículo, partimos em direção à velha estrada esburacada de acesso à ponte das garças. A partir de lá, o caminho era de terra, e a visão era quase a mesma todo tempo. Árvores, pássaros e alguns animais silvestres. Não que não fosse bonito, apenas se tornava repetitivo com o passar dos minutos.
Meu pai estava demasiado empolgado e compartilhava essa animação com Dominic que, sentado ao seu lado, admirava a paisagem.
- Quando eu era moleque, vinha muito aqui com o John, a gente aprontava todas. Caçava uns bichos. Tinha uma clareira ali - Apontou para o lado direito em direção à mata -, era o nosso QG. Tínhamos de tudo lá, uma cabana de madeira velha, um buraco no chão pra fazer as necessidades - falou e riu. Arrancando gargalhadas sonoras de Dom e minhas também, confesso.
- Por isso que o John quis comprar a casa aqui então, não é? - Meu amigo perguntou.
- Creio que sim. Aquele maluco nunca gostou de gente, acho que vai morar aqui de vez.
- Bem ele faz - comentei, me esgueirando pelos dois bancos da frente. - Se pudesse também moraria aqui. Longe de todo mundo, adotaria um gato e viveria como essas donas solteironas.
- Kalel ia gostar muito de ouvir uma coisa dessas - Dominic falou com ironia, enquanto sacolejávamos no balanço do automóvel nos buracos.
- Ah, ele poderia ser o meu gato
- brinquei, dando um tapa no braço do rapaz que riu com a minha fala.
O rádio do carro tocava Elvis Presley, era o favorito de minha mãe. De súbito, meu pai sustou a galhofa dizendo que havíamos chegado. Era um belo lugar, a casa totalmente diferente do que eu havia pensado. Era bonita, com todos os detalhes em madeira e um vidro completamente transparente que dava visão para a sala.
Cercada com fios elétricos, a casa continha um jardim esplêndido na parte frontal, que culminava em uma trilha de pedras. Esta, encaminhava-nos até as escadas da varanda. Completamente encantadora.
Pegamos as bolsas e entramos no terreno. Meu pai tinha uma cópia da chave. As luzes estavam acesas, e era possível notar a movimentação de meu tio de um lado para o outro, antes de abrir a porta, com o rosto amassado.
- Pensei que viriam mais tarde.
- Que nada, e perder tempo? - Meu pai abandonou a bagagem no chão e cumprimentou o irmão com alguns tapas nas costas.
- E aí, rapaz? - John apertou a mão de Dominic, antes de me abraçar. - Cadê o pouca sombra?
- Kalel está trabalhando, chega só na quinta-feira - respondi.
- Venham. Vou fazer um café.
- Não precisa, tio...
- Precisa sim. - Meu pai me interrompeu. - Não vou fazer faxina pra esse aí com o estômago vazio.
- Mas, pai, o senhor tomou café em casa - retorqui.
- Pois vou tomar outra vez. É proibido? - Cruzou os braços.
- Não está mais aqui quem falou. - Ergui as mãos e as sacudi no ar.
Depois de entrarmos e colocarmos as coisas no canto que estava menos sujo, fomos para a cozinha. Meu tio já havia limpado o quanto era possível, o bastante para usar o fogão, preparar ovos mexidos, e um café fresco.
Conversamos um pouco e então, partimos para o que realmente interessava, a limpeza. Começamos pondo tudo que não prestava do lado de fora, e arrumando o colchonete onde meu tio dormirá na noite anterior. Enquanto os rapazes puxavam os móveis mais pesados, eu passava a vassoura nos cantos mais difíceis. E assim seguiu durante quase o dia todo. Só parávamos para lanchar e voltávamos ao trabalho. No fim, tínhamos uma casa limpa, cheirosa, digna de um "Irmãos à obra", versão baixo orçamento.
John quis nos pagar, mas recusamos. Nossa família detestava essa coisa de pagar pelos favores, e além de tudo, era divertido. Imaginávamos que ainda iríamos aproveitar muito aquele lugar. Com encontros familiares, churrascos e domingos de sol. Imaginávamos...
Por volta de seis da tarde, nos despedimos de meu tio, e pegamos o caminho de volta para casa. Notei meu pai pegar um atalho diferente, e logo minha expressão mudou.
- Pai, aonde a gente vai?
- Ah, vamos dar uma passada no rio, faz tempo que não andamos por aquelas bandas.
- E nem vamos - disse com firmeza. - Prometi à mamãe que iria manter vocês longe daquele lugar, e é isso que farei - completei, ainda com o carro em movimento.
- Para de besteira, sua mãe não precisa saber.
- Eu não vou descumprir a promessa que fiz a ela, papai. Pode tratar de retornar, vamos embora - respondi, enquanto Dominic observava a conversa, agora no banco de trás.
- Minha filha, é só uma olhadinha.
- Pai, por favor - implorei. - Não quero ter que mentir pra mamãe. O senhor sabe disso.
Ele revirou os olhos e sacudiu a cabeça, descontente. Depois, parou próximo a um monte de terra e deu ré. Eu sorri e agradeci, detestava mentir para minha mãe e sua atitude me poupou desculpas esfarrapadas.
O tempo estava mudando, algumas gotas de chuva começavam cair. Nós já estávamos bem perto de casa. Minha mãe nos aguardava na porta da sala, parecia preocupada.
- Demoraram! - disse, enquanto se aproximava e nós descíamos.
- A faxina demorou mais que o esperado - Dominic explicou.
- Venham, entrem. Eu fiz um chocolate quente. - Ela nos apressou.
- Mas precisamos tirar as coisas do carro - disse meu pai.
- Depois nós vemos isso, vão tomar um banho e comer - ordenou.
Assim fizemos, enquanto a chuva apertava e deixava seu ar gelado no ambiente, nós nos esquentávamos em volta da mesa. Passado algum tempo, meu amigo comunicou que tinha de ir embora, mas meus pais se recusaram a deixá-lo ir sozinho na chuva.
- Não precisa me levar, só preciso de um guarda-chuva.
- Deixe de bobagem, rapaz. Nós vamos te levar, e depois paramos na loja de rosquinhas aqui de perto, ainda deve estar aberta.
- Pai, eu não sou mais uma criança, sabia? - Brinquei.
- Vai dizer que não quer? - Semicerrou os olhos, com os braços cruzados, fazendo minha mãe soltar pequenos risinhos.
- Seu celular, Yoyo. - Dom estendeu-me o aparelho, e eu notei que haviam algumas mensagens de texto. Eram de Kalel.
"Amor, fica perto do telefone, vou te ligar oito horas"
Eu li, enquanto passava os dedos sobre os lábios.
- O que foi, Yolanda? - Minha mãe inquiriu.
- Nada, o Kalel disse que vai me ligar daqui a pouco - falei, olhando a tela do celular, que indicava sete e quarenta e cinco. - Se importam se eu ficar em casa? É que eu quero muito falar com ele.
- Pode ficar, Yoyo. Sem problema nenhum. - Dominic disse, com o brilho nos olhos de sempre.
- Vamos? - Meu pai se levantou e pegou a chave do carro, que estava sobre o armário da cozinha.
Eu os segui até a varanda, com o celular em mãos. Dei um abraço em meu melhor amigo, como sempre fazia, e ele por ser mais alto, beijou-me a cabeça.
- Cuidado na estrada, sabem como é na chuva.
- Está achando que eu sou algum barbeiro, minha filha? - Meu pai perguntou em tom de zombaria.
- Eu confio em você, não nos outros motoristas. É... - Meu celular tocou. - Vou lá pra dentro, até daqui a pouco. Me manda mensagem quando estiver em casa, Dom.
- Sim, senhora Yolanda.
Retornei para o interior da casa, enquanto deslizava o ecrã para atender a chamada.
- Oi, minha vida - falei.
- Amor, aconteceu alguma coisa? Te liguei mais cedo.
- Eu estava na casa do meu tio, ajudando na limpeza.
- Fiquei preocupado.
- Está tudo bem. - Me joguei na cama. - E você, como vai?
- Um pouco cansado, com saudade de você e doido pra ir para casa logo.
- Eu também estou com saudade de você. De você e de tudo que me faz sentir quando está aqui - murmurei, com certa malícia.
- Pelo visto seus pais não estão por perto - respondeu. E entendeu meu tom de voz. - Vai dormir lá em casa quando eu chegar. Preciso do seu corpo perto do meu de novo.
- Por que você não vem pra cá?
- Eu posso ir, mas será que você vai querer que seus pais escutem o que acontece quando ficamos entre quatro paredes?
- É, eu aceito a primeira proposta. - Ri, enrolando os fios do meu cabelo.
- Vamos fazer o seguinte, assim que eu chegar, eu passo aí e te pego. Sexta feira eu te levo embora pra casa e revejo seus pais. O que acha?
- Maravilhoso - sussurrei, fazendo certo charme com a voz.
Nunca fui muito sexy, mas sabia o que fazer para provocá-lo, e ele gostava daquele meu jeito diferente.
- Vou desligar agora, amor. Pretendo continuar a viagem até a próxima cidade, pra dormir lá.
- Já? - Perguntei, triste.
- Sim, mas te ligo quando chegar, se ainda estiver acordada.
- Vou esperar. Te amo.
- Eu também, paixão.
Encerramos a chamada e eu decidi ler mais um trecho do meu livro de poesias. Por mais que já houvesse desvendado todas aquelas palavras, sempre era uma emoção reler cada linha. Permaneci cerca de uma hora, folheando o papel envelhecido, com algumas lágrimas nos olhos. Quando percebi o tempo decorrido, me dei conta de que meus pais já deveriam ter voltado, e aquilo me deixou um tanto paranoica. Mas, eles ainda passariam na loja de rosquinhas, aquilo explicava a demora.
Caminhei até a cozinha e peguei um pote de biscoitos, e foi neste exato momento que meu celular vibrou. Era uma mensagem, não especificamente para mim, estava no grupo da turma do colégio. Decidi abrir, e então reparei uma sequência de fotos, a primeira continha a legenda:
"Gente, acabou de acontecer aqui perto de casa"
Era um dos meus colegas da turma do curso que havia enviado. Assim que abertas, uma por uma, revelava um acidente. Dava para perceber alguns curiosos, mas o automóvel ainda não era totalmente visível.
Meu coração começou a acelerar, eu reconhecia aquele lugar, era um dos acessos à casa de Dominic. Cada vez palpitando de maneira mais intensa, até que na última imagem, perdi totalmente o ar. Parecia um sonho terrível, um horrível engano. Não era.
Reconheceria os adesivos de rock do meu pai a mil metros de distância. Aproximei o foco da foto, e cada vez tinha mais certeza. Meu corpo ainda não processava direito a informação, eu tremia de maneira exacerbada. Meu chão caiu. E naquele instante, teve início o pior pesadelo da minha vida.
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