Capítulo 1

Entre o calor de um abraço,
Entre suspiros de saudade,
Sem ti aqui, não sei o que faço,
Não aceito perder-te, tamanha crueldade.

De: Yolanda Morgan

Todos têm aversão a algum fato, lugar ou alguma coisa. Nosso coração tem a perfeita ciência de que ninguém é imune a tudo, sempre existe um ponto fraco. Eu sabia muito bem o que me fazia perder o sono, a calma e até mesmo a sanidade: velórios.

Não importava de quem fosse, se um conhecido, ou algum parente distante que nunca vi na vida. A ideia de um caixão em meio a um aglomerado de pessoas tristes, me causava repulsa e náusea. Não era um "sentir-se mal", comum de luto e despedida, era realmente uma coisa que me fazia estremecer, perder o ar. Em vista disso, o que me levava a estar tão perto daquelas duas pessoas, frias, mortas e cheias de maquiagem que encobria os hematomas? Bem, dizem que o amor supera tudo, e acho que essa é a definição perfeita para o que se passava naquele momento.

— Yolanda, você precisa descansar, passou a noite toda aqui. — Meu tio dizia, enquanto colocava uma das mãos em meu ombro.

Não respondi, permaneci com os olhos vidrados na cena em minha frente. Duas caixas de madeira, enormes, com coroas de flores em seu entorno e, dentro delas, estavam duas das pessoas que eu mais amava no mundo. Não sei o que realmente eu sentia, se estava em choque, ou se apenas queria ver suas faces durante o tempo que me restava, para que a beleza de seus rostos demorasse mais tempo a se dissipar de meus pensamentos. Minhas pernas já estavam doloridas, afinal de contas, foram mais de catorze horas, de pé.

Meus cabelos ainda estavam embaraçados, a roupa suja de terra e sangue, não fiz questão de trocá-la. Apenas um lenço marrom descansava em minha mão. Ele servia para limpar as lágrimas quando se faziam presentes. Se bem que em dado momento, nem mesmo choro eu tinha para expressar toda minha dor.

— Vou buscar um café. Você quer? — questionou com cautela, parecia ter medo de que qualquer palavra pudesse me machucar.

— Não, tio — respondi, virei um pouco o pescoço e o encarei. — Obrigada, eu... Acho que vou ficar aqui mais um pouco e depois irei embora.

— Tudo bem, quando estiver pronta, eu te levo. Não vai esperar o enterro? — Seus olhos também estavam vermelhos, mas era muito mais forte que eu, isso com certeza.

— Não, eu não sei se vou... — Olhei novamente para os corpos sem vida. — Suportar. — Completei com a voz completamente embargada.

— Vem aqui. — Ele me puxou para um abraço, provavelmente era o décimo quinto abraço que ganhava dele depois de tudo o que havia ocorrido.

Chorei em seu peito, mais uma vez. Suas mãos acariciavam minha cabeça, meu tio sempre foi como um pai para mim, e ele sabia desempenhar tal função.

— Tio John, pode me levar pra casa agora?

— Claro, menina. Claro que posso — disse em sussurros, enquanto éramos alvo de olhares de pena.

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Dois dias antes...

— E, são dezenove — falei, antes de colocar o pirulito de morango na boca e balançar os pés no ar.

— Você é uma trapaceira! — Dominic dizia, sentado no chão em posição de lótus, enquanto eu permanecia de bruços.

— Tenta a sorte.

— Não adianta, parece que você jogou uma praga nessas cartas. Maldito jogo de vinte e um. — Ele franziu o cenho, mas eu sabia que não estava bravo de verdade.

— Anda logo, o filme vai começar daqui a pouco e eu quero ter o prazer de ganhar mais uma vez.

— 'Tá bom, 'tá bom! — Dominic respirou fundo, colocou as mãos sobre as cartas e puxou a primeira delas. Era um dois de paus. — VINTE E UM! — Gargalhou, enquanto eu fazia caretas típicas de um perdedor que não aceita a perda.

— Chega, não quero mais — falei, levantando e juntando as cartas de cima do tapete.

— Que isso, Yoyo? Quando você virou essa criança pirracenta?

— Eu? — Ri. — Não sou, o filme vai começar. Só isso. — Dei um sorriso fechado, com os olhos semicerrados.

Dominic e eu éramos amigos desde quando eu estava terceira série, ele, na quarta. O rapaz de cabelos castanhos tinha o sorriso de um cafajeste, mas a alma de um menino. Seus olhos, da mesma cor das madeixas, carregavam um brilho incomum, e não só isso, eram como um mar de tranquilidade.

Enquanto eu caminhava pelo corredor, rumo à cozinha, o ouvi conversar com meu pai, na sala. Parei meus passos e voltei com cuidado, era de suma importância.

— Mesmo assim, por que não vai de uma vez? Depois vocês se encontram. — Meu pai dizia, com calma em sua voz.

— Não, eu prometi a Yolanda que iria esperá-la para começarmos a faculdade juntos, mesmo tendo passado na Universidade de Cherry City, eu prefiro cumprir a minha promessa. O que é um ano? — Soltou uma pequena risada, para convencer meu pai de que havia feito o melhor.

— Mas esse curso que ela está fazendo pode se estender. Você já tem vinte anos, não tem medo de perder esse tempo precioso?

— Não, estou ajudando meus pais aqui enquanto isso. Meu irmão não sabe quando vai vir morar definitivamente aqui, e eu não gosto da ideia de deixá-los completamente sós.

Eu sorria observando a conversa. Era boa a sensação de saber que o amigo que era como um irmão para mim, nutria o mesmo sentimento, e estava disposto a manter nossa amizade viva. Mesmo que para isso, tivesse que esperar um ano, dois ou mais para ingressar na faculdade que tanto almejava.

— Yolanda.

— Caramba! Que susto, mãe. — Coloquei as mãos no peito e murmurei, no escuro do corredor.

— O que está fazendo aí, igual a gato antes de subir na pia? — indagou com as mãos na cintura e um pano de prato pendurado no ombro direito.

— Nada, eu só pensei ter ouvido o papai me chamar.

— Sei — disse, com dubiedade.

— A pipoca 'tá pronta?

— Só falta pegar o queijo e...

Saí antes que ela terminasse de falar, ainda pude ouvi-la resmungar:

— Essa menina não tem um pingo de juízo.

Peguei os dois baldes de pipoca, escorei-os entre os braços, equilibrei dois copos de refrigerante e me direcionei à sala. Meu pai já estava trocando o canal da TV, e Dominic batia com os dedos na lateral do aquário, assustando Zeus, o pobre peixinho.

— Ou! — Chamei sua atenção. — Deixa o peixe em paz e me ajuda aqui, por obséquio.

Ele se levantou e pegou os recipientes de pipoca em meus braços, eu deixei os copos de refrigerante sobre a mesa do abajur e voltei para a cozinha.

— TRAZ O SAL! — Meu pai gritou, enquanto eu abria a geladeira para guardar o que sobrara do refresco.

Minha mãe estava no quarto, terminando de ver a sua novela enquanto o filme não começava. Preparou as guloseimas durante os intervalos e, naquele momento, apreciava o último bloco de "Um amor em 1980".

Voltei para o cômodo onde estavam os rapazes e pude finalmente me sentar. O filme já estava para começar e era o meu favorito: Zumbilândia.

— Mãe! Anda! — chamei, erguendo a cabeça enquanto dava um tapa na mão de meu pai, que furtava a pipoca do meu balde. — Para! Você e a mamãe têm o de vocês. — Coloquei o pote no colo de Dominic e o adverti: — Se tocar nessa porcaria antes do filme começar, você é um homem morto.

Depois de alguns segundos, minha mãe apareceu e se sentou ao lado de meu pai. Sábado sempre era meu dia favorito na semana, meu melhor amigo ia até minha casa. Jogávamos, falávamos bobagens, comíamos e víamos filmes com meus pais. Era simplesmente perfeito.

Enquanto Emma Stone ameaçava o rapaz dos cachinhos com uma arma, na TV, ouvi um barulho conhecido. Era o toque do meu celular.

— Quer que eu pegue? — Dominic ofereceu, já que estava mais perto do corredor.

Anuí balançando a cabeça e ele saiu correndo com o balde na mão. Ao voltar, trazia o telefone ainda tocando.

— É o Kalel — falou e me entregou o aparelho, enquanto se sentava.

Deslizei o ecrã e atendi:

— Oi, amor.

— Oi, minha vida. Parei aqui rapidinho no acostamento onde tem sinal, pra poder falar contigo — respondeu com o carinho de sempre.

Meu pai abaixou um pouco o volume da TV.

— Está tudo bem?

— Sim, só estou com saudade.

— Eu também, o Dom não aguenta mais ouvir eu falar de você — comentei, enquanto chupava o sal do polegar.

— Espero que ele esteja tomando conta de você como sempre, sabe que é o único em quem eu confio.

— É, 'tô sabendo.

— Aconteceu alguma coisa, vida? Está esquisita.

— Nada, é que hoje é sábado, e está passando Zumbilândia na FOX. — Soltei um pequeno riso, todos na sala observavam a conversa, era normal eles presenciarem nossas ligações. Éramos uma família diferente das outras. Digo porque Dominic era como se fizesse parte dela.

— Ah! Claro, como eu poderia esquecer. Vai terminar de ver seu filme, mais tarde, se eu conseguir sinal pra falar contigo, ligo.

— Está bem, meu bem. Até.

— Amo você.

— Eu também — repliquei, pegando o controle das mãos de minha mãe e aumentando o volume da TV antes mesmo da chamada ser de fato desligada.

Continuamos a assistir TV, e quando a "hora de dormir" chegou, meus pais apagaram as luzes da varanda e falaram, como sempre, para que nós tivéssemos juízo. Eles sabiam que entre mim e Dominic não existia nada, apenas um carinho muito fraterno. Nós nunca, jamais, tivemos alguma ligação, senão a de amizade profunda. Todavia, meus pais tinham medo de que algo acontecesse, não por nós, já que os dois eram maiores de idade, mas sim pelo meu nome e meu relacionamento com Kalel, que já estava próximo de completar um ano.

Coloquei um colchão no chão, liguei o abajur e, enquanto Dominic se ajeitava para dormir, eu peguei o pequeno livro de poesias que sempre ficava no meu criado-mudo.

— Vai ler isso mais uma vez? — perguntou enquanto puxava a coberta.

— Não é isso, é o livro mais lindo que existe. E sim, eu vou ler mais uma vez — respondi, já com a página escolhida aberta em minhas mãos. — Escuta, (¹) não consigo discernir o que há comigo agora, até quem prometeu nunca partir, há muito foi embora. Eu estou perdida em meio a minha própria escuridão, queria uma luz, uma saída, mas só há a solidão. — Fechei o livro e arfei em um suspiro. — Diz se não é a coisa mais linda?

— Realmente, é melancólico e dá vontade de chorar, mas é lindo. — Dominic disse, já com os olhos fechados.

— Um dia ainda vou escrever coisas tão bonitas quanto essas.

— Yolanda — Ele abriu os olhos —, pense por outro lado, você não sabe a dor que a pessoa que escreveu isso pode ter passado para escrever palavras tão sentimentais.

— Sim, mas é um texto, é ficção. Pode ser algo verídico, ou não. — Coloquei o livro de volta na gaveta.

— Está bem, minha poetisa. Agora vai dormir, amanhã seu pai quer que a gente vá com ele naquele lugar lá.

— Na cabana do tio John?

— Isso. Não sabia que seu tio tinha uma casa no meio do mato.

— É que não era dele, foi comprada mês passado.

— Hm. — Dominic bocejou e em seguida soltou um "ai, ai".

— Boa noite, Dom. — Eu sabia que ele estava cansado.

— Boa noite, Yoyo.

A luz do abajur foi apagada, já era tarde. 

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(¹) trecho retirado do livro Untitled, da Autora patty_queiiroz ❤️

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