XIX - Medo.

Novembro, 1

Depois daquela briga eu preferi ficar sozinho e sabia que Stella provavelmente também. Odeio climas tensos, então se for para ficarmos de mal, que seja longe um do outro. Não estou com tempo pra esses tipos de drama.

Estava no apartamento podre de Josh, marcamos de nos encontrar hoje, bem cedo.

Eu estava no sofá, brincando com seu gato, quando ele sai da cozinha.

- Afim de um café?

- Pode ser.

Disse aceitando a xícara.

- Eu falei com uns caras, acho que consegui o que você queria.

- Trabalho grande?

- Bem grande. Vem, vamos pra mesa. Quero te mostrar.

Fomos até a mesa e nos sentamos frente a frente. Josh pegou uma pasta que estava jogada no chão, a colocando em cima da mesma.

- O trabalho não é aqui, fica em uma cidadezinha a uns duzentos e poucos quilômetros daqui.

- Duzentos? Isso não é tipo, mais de duas horas?

- Você queria coisa grande, não disse?

Fiquei quieto e deixei que ele continuasse explicando.

- É o seguinte, um tal de David procurou a gente, ele tá oferecendo uma grana preta por um trabalho, lá na cidade dele.

- E o que é?

- Ele quer quer a morte desse cara aqui... - Josh me jogou uma pilha de papéis, com nomes e fotos de um homem. - James Walter. Ele disse que o cara estuprou a esposa dele.

- Babaca.

- Pois é. Só que tem umas coisas a mais.

- O que?

- Ele disse que o cara roubou umas joias, que aparentemente eram da esposa dele. Falou que quer elas de volta e que devem estar em algum lugar da casa.

- Eu não faço esse tipo de serviço, eu só mato.

- Foi mal cara, mas dessa vez não tem essa. Ele quer o serviço completo, inclusive, por uma grana que vale muito a pena.

- Quanto?

- Cem mil dólares.

- Cem mil?! Quem é esse cara?

- Um daqueles herdeiros sabe? Os pais eram os pioneiros em criação de gado e essas coisas, é só o que eu sei. É isso que você queria, né?

- É, isso mesmo.

- Então, fechado. A gente precisa combinar a viagem, as coisas que você vai levar, a grana e...

- Josh.

- Hm?

- Foi mal. Mal por aquele dia, pelo soco. Eu não concordo muito com aquelas coisas que você disse naquele dia, mas eu sei que a intenção não foi das piores.

Josh foi um babaca naquele dia, mas no fim das contas ele era uma das poucas pessoas com quem eu poderia contar. Se não fosse a ajuda dele, eu com certeza seria um fodido. Se eu juntei tanta grana até agora, foi com a ajuda dele.

- Tá tranquilo, cara. Eu também vacilei, a vida é tua, o dinheiro e a garota também. O que você vai fazer da vida depois desse trabalho não é problema meu.

- Eu sei que você não curte a ideia, mas eu quero muito fazer isso. Eu cansei. Cansei desse trabalho, dessa rotina, dessa maluquice toda. Eu só queria ajudar a Stella, queria ter uma vida mais sossegada, com ela.

- Cara, eu te conheço. Se justo você tá realmente fazendo tudo isso por ela, então ela com certeza vale a pena.

- É, vale. Mas eu ainda tenho que melhorar, eu vacilo muito.

- Como assim?

- Sabe o favor que eu te pedi ontem? Foi por causa dela.

- Você deu fim naquele maluco por causa dela?!

- Quando ela foi no banheiro, aquele maluco entrou um tempo depois. Ele assediou ela, passou a mão nela, ele...

- Ia estuprar ela.

- É. Eu achei estranho o tanto que ela demorou, ai eu fui atrás. Eu ouvi ela gritar e arrombei a porta. Eu matei ele, na frente dela.

- ELA SABE?! Q-quer dizer, ela sabe que você...

- Sabe, desde o inicio. Ela ficou comigo, mesmo sabendo disso.

- Nossa. Então ela realmente vale a pena.

- É, mas quando a gente voltou pra casa ela ficou estranha, ela ficou com medo de mim. A gente brigou, de um jeito muito idiota. Um dia ela disse que gostava de mim mesmo sabendo dessas coisas, mas quando ela me viu fazer aquilo, parecia que ela nem me reconhecia mais.

- Eu não tenho muita paciência pra essas coisas e nem gosto de me meter nesses assuntos, mas pensa um pouco. Cara, quantas vezes você acha que ela já viu alguém ter a cabeça esmagada na pia até a morte? Ela gosta de você, tanto que vocês brigaram, mas ela não foi embora. Ou foi?

- Não, não foi.

- Então. Ela pode até ter dito isso, mas você não acha que é sacanagem pedir que ela ache normal ou não se assuste com uma coisa que ela nunca viu na vida? Ela goste de você, ela não foi embora, ela só tá assustada, tá assustada porque o cara que você é com ela, é diferente do cara que você é com as pessoas que te ameaçam.

- É, acho que eu vacilei legal.

- Cara, ela ainda tá do seu lado, mesmo sabendo das merdas que você faz, mesmo sabendo com o que você trabalha quase todo dia. Acorda! Não é qualquer pessoa que atura essas coisas.

- Por que você tá me falando isso agora se odiou a ideia no outro dia?

- Eu não sabia das coisas que ela sabia sobre você. Achei que era só uma piranha qualquer que viu que você tinha grana guardada. Mas, eu vacilei mesmo, não é o caso. Se ela é realmente tudo isso que você fala, vale a pena.

- Valeu Josh. Não se empolga não, mas você é um bom amigo.

- Vindo de você, é um elogio do caralho.

- Acho que você acertou, eu fiquei meio molenga.

- Não cara, você amadureceu.

- Você acha?

- Acho. Não lembra como você era antes? Descontava raiva em tudo, matava só por matar, só pra descontar nos outros, era escroto quase o tempo todo e vivia mórbido pra lá e pra cá. Mas agora não, agora é diferente.

- Engraçado, eu não reparo muito nessas coisas.

- Mas deveria. Não quero parecer meloso, mas admito, fiquei orgulhoso de você.

- Valeu, cara.

- Ai, é seu ultimo serviço, antes de ir, conversa com ela, pede desculpas. E quando for fazer o serviço, faz bem feito. Leva essa grana pra sua casa, ajuda sua garota. E me manda o convite de casamento. Fechado?

Sorri.

- Fechado.

- Perfeito. Agora, a gente precisa bolar um plano pra que você chegue até lá e faça o serviço.

- E você com certeza já pensou em alguma coisa, né?

- Obvio.







[...]







- Stella! Pode vir aqui?

- Sim senhor!

Sai da cozinha e fui até o caixa atender Peter.

- Algum problema?

- De jeito nenhum! Eu só queria te agradecer, seu bolo foi um sucesso! Muitos clientes elogiaram!

- Sério?! N-nossa que incrível!

- É, pois é! Olha, imagino que você esteja cansada. O horário de almoço já está quase acabando e eu estava pensando em fechar mais cedo hoje, então você pode voltar pra casa antes de escurecer!

- Nossa, seria ótimo pra mim. Eu moro um pouco longe e estou sem carro.

- Vai querer uma carona?

- Ah não, tudo bem! Eu gosto de andar, só não quando fica tarde!

- Entendo! Eu vou ir fechado o caixa. Você pode guardar as louças da cozinha enquanto isso?

- Sim, sem problema!

Voltei para a cozinha e comecei a guardar as louças. O dia tinha sido ótimo! Consegui chegar cedo e preparar o bolo exatamente como eu queria! Os clientes foram muito atenciosos e todo o trabalho pôde me distrair do que houve ontem.

Eu pensei em falar com Jeff hoje de manhã, mas não sabia o que dizer e quando acordei, ele nem estava em casa. Ele preferiu dormir na sala, depois que brigamos. Eu acabei ficando no quarto dele, sozinha. Não era exatamente como eu queria que o Halloween tivesse terminado, mas com certeza seria melhor que ficássemos separados.

Eram três da tarde e pouco a pouco os clientes saiam da loja, a deixando mais silenciosa e vazia. Eu terminei de guardar as louças, fui ao banheiro e tirei meu uniforme, colocando minhas roupas comuns de volta.

Peguei minha mochila, sai do banheiro e fui ao caixa ver Peter.

- O senhor precisa de mais alguma coisa?

- Não, tudo certo! Ah, e antes que eu me esqueça, pegue aqui... - Ele se abaixa e pega um envelope em baixo do balcão. - seu primeiro pagamento.

- Mas já?!

- Você é uma das poucas funcionárias que eu tenho. E eu sei que vai usar pra algo bom, então pegue adiantado. Mas deixe em segredo, os outros funcionários podem implicar.

Peter me entrega o envelope. Meu primeiro salário de verdade!

- Muito, muito obrigada mesmo! Nossa Jeff vai ficar tão, t-tão...

- Tão?

- Ah, n-não é nada. É que eu queria poder mostrar isso pra uma pessoa, mas nós não estamos muito bem, só isso.

- Uma pena. Se quiser podemos conversar, ou você pode contar ao Felix! Tenho certeza de que ele vai ouvir.

- Não, tudo bem. Eu só não falei coisas e senti coisas que não queria, acho que acabei magoando ele e me magoando também.

- Que coisa. Mas tente não ficar tão mal, tudo bem, isso acontece as vezes. Me desculpa por me meter, mas se quer um conselho, nós podemos controlar as coisas que falamos, mas não as que sentimos. Você pode tentar explicar a essa pessoa que não quis dizer certas coisas, mas que não conseguiu evitar sentir outras.

- Mas, eu prometi que gostaria dele, independente do que ele fizesse. Eu não deveria ter sentido aquelas coisas, meio que eu já deveria ter previsto.

- Prever? Não tem como prever o que você vai sentir. Não acha que seja injusto com você mesma? Se é capaz de aceita-lo, independente do que ele fez ou faz, ele também deveria te aceitar. Não acha?

- Eu não sei, isso nunca me aconteceu.

- Você gosta muito dessa pessoa?

- Sim, sim eu gosto.

- Então, tenho certeza de que vocês podem se entender.







[...]







Estávamos sentados na bancada da cozinha, jantando. Um silêncio meio desconfortável rondava ali. Eu queria dizer algo, queria puxar assunto e chegar aonde eu queria chegar, mas não tenho ideia de com fazer.

- Ei.

- Hm?!

Acabo me espantando ao ouvir a voz grave de Jeff cortar o silêncio.

- Tá sem fome? Você nem tocou na comida.

Olhando pra baixo, percebi que mal tinha tocado em minha comida e que só estava mexendo meu garfo de um lado pro outro com a mão.

- Um pouco. Acho que só cansada, só isso.

- Stella... - Jeff pegou meu prato, tirou lentamente os talheres de minhas mãos e os colocou longe. Fez o mesmo com seu prato. - a gente tem que conversar. Sabe disso, né?

- Sim, eu sei...

- E por que não disse nada?

- Porque eu não sei por onde começar! Na minha casa não existia diálogo, não existia conversa, era só briga, briga e briga o tempo todo, eu não sei por onde...

- Stella! Eu não sou o seu pai.

Fiquei muda, não esperava que ele falasse algo assim.

- Olha, já sei o que podemos fazer. Um escuta tudo que o outro tem a dizer, sem falar nada, depois o que teve que ficar quieto fala, e o outro escuta. Pode ser? Sem briga, sem gritaria.

- P-pode.

- Beleza, eu começo. Eu sei que você se assustou, tá? Fiquei pensando nisso desde ontem. Eu sei que te deixei com medo e entendi que você não ficou com medo de mim, mas do que eu fiz. Eu não queria que você tivesse visto aquilo. Eu não espero que você olhe as coisas que eu faço e concorde, não espero que você ache elas normais, é injusto pedir pra que você ache normal. Mas, ao mesmo tempo, eu preciso que você saiba que eu fiz o que fiz pra te proteger, porque naquela hora e naquele momento, se eu não tivesse feito aquilo alguma coisa horrível podia acontecer com você, eu poderia ter até perdido você. Me desculpa por isso, mas se por algum caralho de motivo eu pudesse voltar naquele momento, eu teria feito exatamente igual.

- Jeff, posso te perguntar uma coisa?

- Sempre.

- Você já pensou em fazer uma coisa daquelas comigo? Alguma vez?

Jeff se levantou, deu a volta na bancada e se sentou ao meu lado. Colou meu corpo ao seu e levou suas duas mãos ao meu rosto.

- Stella, me escuta, e me escuta com muita atenção. Eu nunca faria nada com você, NADA. E nunca pensei em fazer, desde a primeira vez que eu te vi.

- Mas por que?! O que eu tenho de tão importante pra você?! Por que, de todas as pessoas, eu?!

- Porque você me fazer querer viver. Depois do Halph, e antes de você, eu já não tinha nada que me fizesse querer viver. Eu só matava, matava, bebia, matava de novo e descontava o meu ódio em pessoas nojentas, mas quando eu te conheci as coisas mudaram. Você é corajosa, esperta, confiante, esse seu jeito me deixava curioso, e quanto mais eu via mais curioso eu ficava. Foi ai que eu soube que tinha achado alguma coisa interessante, e eu achei, e por isso não quis perder. Você faz a vida ser menos merda, por sua causa eu consigo me imaginar vivendo algum tipo de vida. Você acha mesmo que eu arriscaria perder algo assim, alguém como você? Nem fodendo. Eu nunca, nunca faria alguma coisa pra te machucar, e muito menos vou deixar que alguém faça. Você entende?

Era engraçado, engraçado como a algum tempo atrás eu não acreditaria se soubesse que Jeff disse algo assim pra mim, como não acreditaria no que nós dois nos tornamos.

- Ei, ei! Pra que chorar?

- P-porque eu m-me sinto culpada!

- Culpada pelo que?!

- Por sentir m-medo de você! EU NÃO QUERIA! N-não queria! Eu amo você! E eu prometi que amaria independente do seu jeito, independente do que você fosse! Ai, n-na primeira vez em que eu te vejo um p-pouco diferente, eu sinto MEDO! Eu sou medrosa, eu sinto medo de TUDO! EU SINTO MEDO DO MEU PAI! SINTO MEDO DE MACHUCAR NOAH! MERDA, EU SENTI MEDO ATÉ DE VOCÊ! EU NÃO PRESTO!

Me joguei nos braços de Jeff, comecei a chorar copiosamente. E assim eu coloquei pra fora o que eu cultivei dentro de mim por tanto tempo, medo.

- Calma, calma. Quem disse que sentir medo é ruim?

- N-não importa! É r-ruim, e-eu não consigo fazer nada!

- Não consegue? Stella, olha pra você. Você é corajosa pra caralho.

- E p-por que você acharia isso?!

- Bom, você não me abandonou, você insistiu em mim sabendo do perigo. Você continua fazendo seu melhor pra ajudar o Noah, você faz isso mesmo sabendo que pode ser descoberta pelo seu pai. E porra, quantas vezes você me enfrentou, mesmo quando sabia que podia ser perigoso? Stella, você não é medrosa, você só tá cansada e não tem problema estar. Eu também estou.

- J-Jeff, v-você me perdoa? Perdoa p-por ter sentido medo de você?

- Não tem o que perdoar, você não fez nada de errado. Ficar cansada, ou assustada, ou com medo as vezes, não é errado. Agora vem cá, me abraça bem forte.






[...]








Estávamos na cama, Stella estava deitada em cima de mim, com sua cabeça em meu peito. Eu brincava com suas mexas, como sempre

- E ai, se sente melhor?

- Acho que sim. Odeio chorar.

- Não precisa, ajuda bastante as vezes.

- Jeff, sabe de uma coisa?

- Hm?

- Você amadureceu, ficou mais forte que eu.

- Engraçado, segunda vez que ouço isso. Você acha mesmo?

- Acho. As vezes nem se parece com o que conheci.

- Isso é bom?

- Sim. Você é o mesmo, só que melhor.

- O crédito é seu, sabe disso.

- Jeff, você me dá uma importância que eu não mereço.

- Obvio que merece. Você me virou do avesso, de um jeito bom. Eu me odiava antes de você, mas agora...

- Agora?

- Odeio bem menos. Graças a você.

Ela levanta a cabeça e se aproxima para me beija, obvio que eu não hesitei e a agarrei, puxando seu corpo para mais perto do meu, juntando nossas bocas.

É eu mudei, deu pra perceber. Mas eu mudei porque sabia que com ela aqui, eu não poderia continuar sendo o cuzão que eu sempre fui, tendo as mesmas atitudes de sempre. Pra vê-la feliz e pra ser feliz eu precisaria deixar de lado algumas coisas. Precisava ser mais sincero, ter menos medo dos meus sentimentos, ter mais rumos, mais objetivos, menos raiva de mim mesmo.

Tudo porque eu quero viver. Quero viver com ela, e quero que ela seja feliz comigo.

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