II - Escuridão Total
Maio, 24.
- Stella? Stella acorda!
Ouvi uma voz irritante e comecei a acordar, meus olhos se ajustaram com a claridade e comecei a enxergar melhor. Aquela voz irritante era de Felix, que estava me cutucando.
- Ah? Qu-que horas são? O que você tá fazendo aqui?
Fiz uma pergunta atrás da outra, ainda me sentindo desorientada.
- Eu que faço as perguntas aqui! Por que você tá dormindo até agora mulher? Você não apareceu na farmácia de manhã e nem me mandou mensagens! Já são quase três da tarde!
- Três?!
Dei um pulo do chão?!
As memórias da noite passada vieram à tona. Todo o pânico, o medo, a arma. Merda, eu não deveria ter dormido!
- Exatamente! E que porra aconteceu contigo ontem a noite? Você tá dormindo no meio das folhas e da terra, e seu corpo tá todo sujo de terra molhada! E o mais importante, que PORRA você tá fazendo com o calibre que eu te dei?! Dormindo com ele do lado da SUA CARA?! Tá maluca?!
- E-eu, eu não...
- Quer saber? Levanta logo e para de resmungar! Vou te levar lá em casa, você tá precisando de um banho! Sua imunda!
Ele agarrou meu ombro e me ajudou a levantar. E era verdade, meu corpo e roupas estavam totalmente sujos de terra e folhas, algumas partes até coçavam, provavelmente picadas de formiga.
Arrumei algumas coisas e escondi minha arma de novo e peguei minha mochila. Depois de pegar minhas coisas Felix saiu me arrastando pela floresta, resmungando e reclamando como ele simplesmente odeia o jeito que eu sumo do nada e como ele detesta se enfiar na floresta.
[...]
Eu estava na Hell House, em outras palavras na casa de Felix e no seu quarto, depois de tomar um banho.
- Se sente melhor agora?
Ele perguntou enquanto mexia em uma caixinha de primeiros socorros que guardava no seu quarto. Ele queria tratar as picadas de formigas e mosquitos nas minhas pernas, além de alguns arranhões em meus braços. Usar roupas curtas na floresta nunca é uma ideia muito inteligente.
- Muito, já fazia tempinho que eu não tomava um banho.
- Eu não duvido... - Ele foi até a cama e pegou minhas roupas sujas com "cara de nojo", as jogando no seu cesto de roupas sujas. - vou lavar pra você e depois te entrego.
- Não precisa, eu me viro pra lavar.
- Nem fodendo, Stella. Essas coisas estão com cheiro de podre. Ah! E falando em roupas tenho umas coisinhas pra você... - Ele correu de um lado para o outro, procurando alguma coisa. - onde está? Onde está? Ah, achei!
Ele pegou uma grande caixa de papelão e colocou em cima da cama.
- O que é isso?
Perguntei curiosa, me sentando do seu lado na cama.
- Você sabe que eu adoro um bazar, né? Eu fui em um hoje de manhã, e encontrei umas roupas incríveis, aproveitei o embalo e comprei umas pra você!
Ele estava empolgado, enquanto tirava pilhas e pilhas de roupa de dentro da caixa, que parecia não ter fundo.
Felix sempre foi fissurado por moda, está sempre mudando seu "estilo", sempre desenhando vestidos, conjuntos e até lingeries para as menina da boate, ele ama costurar e já me fez de manequim e sua modelo mais vezes do que posso contar nos dedos.
- Comprei algumas roupinhas mais arrumadas pra você usar quando sairmos pra alguma festa de novo!
- O que tem de errado com minhas roupas normais?
- Não vou nem me dar o trabalho de responder.
Escroto.
- Vai se foder!
Bati no seu rosto com dos seus travesseiros felpudos.
- Ai! Tá bom, tá bom! Eu sei que você gosta dessas roupas estranhas pra andar no mato, eu comprei algumas dessas também! O importante é que você use elas!
- Aí sim! Valeu mesmo, já faz um tempo que preciso.
- De nada, linda. Agora vamos tratar esse seu corpo todo judiado!
Ele pegou a caixa de primeiros socorros e voltou pra cama.
- Por favor.
[...]
Só mais um curativo... - Ele colocou o algodão no último corte, depois o curativo. - ah, finalmente.
- Obrigada, Felix. Nem sei o que ia fazer sem a sua ajuda.
- Nem vem, não precisa agradecer. Mas me conta, o que caralhos aconteceu ontem, em? O que você aprontou?
- Eu estava voltando pra barraca e ouvi um barulho atrás de mim, de primeira eu tentei ignorar, mas de repente eu ouvi alguém falar meu nome e um barulho parecido com os passos! Ai eu corri o mais rápido que eu podia até a barraca, e peguei a arma. Mas depois eu não ouvi mais nada! Eu fiquei com tanto medo que não quis dormir, fiquei acordada e com a arma engatilhada, nas mãos. Ai eu me enchi de açúcar e energético até desmaiar de sono, eu acho.
- Que porra?! Alguém falando seu nome? Tem certeza?
- Eu juro, tenho quase certeza! Foi tudo muito rápido, mas eu juro que ouvi meu nome.
- Tá, não é que eu não acredite, afinal aqui tem muita gente doida nessa cidade, mas saber seu nome? É muito estranho.
- Eu sei, também acho estranho! Mas agora, não sei te dizer se aconteceu mesmo ou se eu só imaginei, até porque, quando cheguei no acampamento não ouvi mais nada.
- Talvez porque você tenha pego uma arma. De uma em duas, ou você realmente assustou essa tal "coisa", ou você tá delirando mesmo. Mas olha, de um jeito ou de outro, eu não quero que você volte pra lá agora, fiquei muito preocupado! Acho melhor você dormir aqui hoje.
- Felix, você sabe que eu não posso. Todo meu dinheiro fica lá, não posso largar assim.
- Bom, se você não estiver viva, não vai ter como usar a grana. Concorda?
- Eu sei disso, mas...
- "Mas" nada, mulher. Olha, se realmente for algo da sua cabeça só comprova o quão cansada você tá. Qual foi a última vez que você saiu apenas pra se divertir, e não pra roubar?!
Fiquei meio sem resposta. Realmente, fazia muito tempo que não saia para me divertir. Alguma festa, bar ou coisa parecida, nada. Eu tenho me concentrado tanto nos roubos que até esqueci dessas coisas.
- Não vai falar né? Foi o que eu imaginei. Ó, eu sei que você gosta de dormir no mato e tal, mas dessa vez eu não posso deixar rolar! Que tal um trato? Aqui no fim da rua tem um hotelzinho, um prédio de uns quatro andares, e o dono é amigo da minha mãe. Eu arranjo um quarto pra você por lá, e em troca você fica aqui pra festa de hoje a noite! Que tal?
- Não sei Felix. Como eu disse, tem muita coisa lá no acampamento.
- Ah por favor, Stella! Faz tanto tempo que a gente não perde a noção e bebe até cair, tanto tempo que a gente não se diverte! Eu mesmo posso arranjar um vestido pra você, hoje mesmo e para a festa. E ai, o que acha? Você pode até encontrar algum gatinho! Além de tudo, esse seu dinheiro não tá escondido? Ninguém vai achar! E eu juro que se acharem, eu mesmo pago seu prejuízo, prometo!
Felix é insistente, muito insistente, e não vai descansar até arrancar esse "sim" de mim.
- Então se me roubarem, você vai me devolver?
- Palavra de escoteiro!
- Você nunca foi escoteiro.
- Foda-se, promessa é promessa, certo?
- Ah, que saco. Tá, eu fico!
- ISSO! Hoje vai ser INCRÍVEL!
Ele se jogou em cima de mim, me abraçando, apertado e me deixando quase sem ar.
[...]
Passamos a tarde toda juntos, e foi mais divertido do que me lembrava. Conversamos sobre coisas idiotas, comemos pizza, e depois assistimos alguns Doramas, que ele me forçou a assistir.
No fim das contas já eram oito da noite e a festa estava perto de começar. Eu consegui ouvir o som abafado da música vindo do primeiro andar.
Felix, como sempre, fez questão de estar produzido. Camiseta rasgada, calças de látex, anéis, colares, brincos e gargantilhas com correntes, tudo que ele mais gostava. Ele sempre adorou essas festas.
- E ai como eu fiquei?
Felix me pergunta, enquanto fazia poses em frente ao seu espelho, se admirando.
- É para ser sincera?
- Claro, né.
- Um gostoso.
Comentei enquanto tentava fechar o zíper do meu maldito vestido, o que ele mesmo arranjou para mim.
- Deixa eu te ajudar. Encolhe a barriga... - Ele fechou o zíper, bem rápido e me deixando quase sem ar. - perfeita! Agora vem, vamos para o espelho. Você precisa ver como ficou!
Ele me arrastou para a frente do espelho. Um vestido curto, de tecido metálico, nada que eu usaria normalmente, mas era realmente bonito.
Admirei o vestido enquanto Felix me encarava como se estivesse orgulhoso.
- E ai, gostou?
- É, acho que sim. Ele é bonito, só não sei se fica tão bom assim em mim.
- Pare de palhaçada, eles marcam seus peitinhos e sua bundinha. Te deixam uma grande gostosa... - Ele andou até seu armário e pegou uma caixa. - agora fecha essa matraca e põe esses saltos.
Ele tirou um par de saltos da caixa, com cores quase idênticas às do vestido.
- Saltos? Eu pensei em usar meu tênis, ou alguma coisa mais...
- Nossa, como você é diferente das outras garotas, Stella. Agora cala essa boca e põe esse salto!
Nunca fui fã de saltos, até porque nunca tive o hábito de usar. Mas fazer o quê, ele vai insistir até que eu use.
Quando finalmente terminamos, descemos para o andar de baixo, onde a festa já havia começado.
Garotas em saltos imensos dançavam de forma sexy no pole dances dos palcos, homens e mulheres gritavam pedindo mais e jogando dinheiro, outros aproveitavam um lap-dance, alguns estavam meio bêbados, e a maioria dançava na pista ou bebia no bar.
De repente o DJ da festa interrompeu a música eletrônica e soltou algo com letra. Demorou pouco para que eu reconhecesse a batida, era "Talking Body".
- Caralho, agora é a hora! Vem Stella, vamos dançar!
Ele me arrastou para o meio da multidão, começando a me girar de um lado para o outro.
Eu comecei a rir com ele e aos poucos fui me soltando, acompanho seu ritmo e energia contagiante. As músicas foram trocando e não paramos de dançar em momento nenhum. Só depois de um bom tempo que nós realmente cansamos.
- Amiga, quer beber uma pra recuperar as energias?
- Você sabe que eu não tenho grana pra pagar, né?
- Meu amor, você é cliente VIP! Além disso, eu ando pegando o barman, então ele não vai ligar.
Dei de ombros e aceite. Nós andamos no meio da multidão, até chegar ao balcão do bar.
- Oi delícia!
Educado e delicado, como sempre.
O Barman, que estava de costas, se virou para nos atender.
- Ah, oi Felix! Tá sumido. E quem é essa sua amiga aí?
- Ah , essa é Stella, minha melhor amiga. A gente quer encher a cara um pouco, mas ela tá sem grana, faz umas por conta da casa pra ela. Pode ser?
- Você quem manda.
Ele nos serviu dois drinks, de prontidão.
- Essa noite vai ser DO CARALHO!
Ele levantou seu copo para brindarmos, e assim brindamos!
[...]
Três da manhã, a festa estava longe de acabar, e eu, exausta. Estava sentada em um dos sofás, vendo as fotos que tirei com Felix. Enquanto ele, diferente de mim, ele não aguenta muitas doses de bebida, então já faz um tempo que ele está do outro lado da boate, dando uns pegas no Barman, bem bêbado.
Eu gosto de festas, mas se não tem nada de muito interessante acabo enjoando rápido.
- "Felix, acho que vou embora, fiquei cansada. Amanhã a gente se vê. Pode ser?"
Enviei a mensagem de texto a ele.
Ele nem se quer recebeu a mensagem, deve estar muito "ocupado". Já que ele não vai ver tão cedo, melhor ir embora logo. Fui até a porta de saída.
Do lado de fora as ruas da Zona Escura estão lotadas, muitas festas, bares e bebidas. A uma hora dessas, ninguém perceberia um furto pequenininho, mas é melhor não me meter em confusão a essa hora, principalmente de saltos.
Senti meu celular vibrar, na minha mão. Era uma mensagem de Felix, desbloqueei a tela.
- "Caralho, você já foi? Olha, vai lá no hotel. Eu já falei com o dono, o nome dele é David. É só entrar!"
Nem quero saber o que ele está fazendo enquanto digita essas coisas.
- "Beleza. Amanhã pego minhas coisas com você. Beijo, e usa a porra da camisinha."
Desliguei e comecei a andar até o hotel. Parecia demorar muito mais, só por causa desses saltos idiotas. Os tirei e comecei a carregá-los nas mãos.
Eu esqueci que a tal esquina desse hotel não era tão perto quanto Felix disse, na verdade era bem longe.
Apesar disso o caminho até o hotel estava tranquilo, depois de um tempo consegui ver seu letreiro de longe. Eu finalmente poderia tomar outro banho, deitar e descansar.
Eu já pensei em morar em um hotel ao invés da floresta. Mas eu gastaria metade do meu dinheiro, então prefiro viver onde as coisas são de graça.
Continuei caminhando tranquila, estava quase na porta do hotel...
- Sh, silêncio.
Ah?
Jurei ter ouvido uma voz. Olhei para todos os lados, mas não vi ninguém, nada.
Isso até olhar para o chão.
Um rastro de sangue, que se seguia até um beco, ao lado do hotel. Me preocupei com o que poderia ser. Eu deveria olhar? Não, não teria outra opção. Eu teria que passar por ali para chegar à entrada. Poderia ser só um animal morto, tinta, ou alguém que só se meteu em briga, sei lá.
Engolindo seco, comecei a andar devagar, chegando cada vez mais perto. Mais, mais e mais.
Puta merda!
Um homem alto, de casaco branco e encapuzado agarrava outro homem pela gola da blusa, com uma faca na direção do pescoço dele. Eu não podia ver seu rosto, só conseguia ver o homem apavorado, nos seus braços. Ele tinha cortes que iam de orelha a orelha, formando um sorriso horroroso e cheio de sangue, ele parecia apavorado!
Que merda era essa?! Eu fiquei em choque, sem saber o que fazer! Era nojento, cruel, horrível!
"Correr", "correr", correr", era só o que eu pensava. Mas meu corpo simplesmente não se movia, era como se eu não tivesse mais o controle de nada! Mas que merda!
O homem, que parecia bem perto da morte, me viu. Com as últimas forças que tinha e com as mãos trêmulas, ele a ergueu, quase como se me chamasse.
- M-me ajuda...
Na hora o homem de casaco branco se virou para mim, seu rosto estava totalmente coberto por uma máscara, que tinha o sorriso de um sorriso alegre. Ele ficou fixo em mim por alguns segundos, para mim parecia uma eternidade. De repente, ele voltou a olhar para o coitado de novo.
- Vai dormir, seu merda.
Ele corta a garganta do homem, que esguichou sangue por todo o casaco branca do assassino. Ele voltou a olhar para mim, virando a cabeça bem devagar.
- Nem pense em correr.
Eu levei um choque de realidade, se meu corpo não se movesse eu acabaria como aquele cara, ou até pior. Foda-se, eu quero viver!
Eu corri, corri desesperadamente, gritando. E dessa vez eu tinha certeza de que tinha algo atrás de mim.
Corri por muito tempo, e ele esteve atrás de mim o tempo todo. Ele não pretendia desistir. Corri tanto que cheguei ao ponto de ver as cercas da floresta de longe. Caralho, finalmente!
E com mais pressa, me joguei na cerca, tentando escalar o mais rápido que podia. Ele era rápido, e chegava cada vez mais perto.
Perto o suficiente para agarrar meu calcanhar.
- Vai a algum lugar?!
- ME LARGA!
Com toda minha força, dei um chute na sua máscara, ele se atormentou e eu consegui me soltar.
Consegui pular a cerca e voltei a correr pela mata, sem sentido algum. Mas, foi questão de pouco tempo até ouvir o som de passos apressados atrás de mim.
Tudo estava escuro, eu já não sabia mais onde estava. Não via minha barraca, qualquer árvore familiar, caminho ou luz.
ONDE EU ESTOU?!
- Você não pode se esconder!
Ele falava quase que cantarolando! Que inferno!
Me sentia cada vez mais em pânico! Eu não sabia onde estava, era questão de tempo para que eu me cansasse, ele era maior, mais rápido. Quando ele me alcançar, eu estarei MORTA!
Continue olhando para frente, mesmo sem enxergar nada! Os passos atrás de mim ficavam cada vez mais altos!
Senti meu corpo indo "para baixo", meus pés se embolarem e tudo girar. De repente, escuridão total.
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