Tríscele

Eu estava em lugar nenhum, não era ninguém, não tinha dor ou problemas, mas então veio uma leve fisgada no meu lado direito, mais uma, minha cabeça queimou de dor e eu senti lágrimas nos meus olhos ainda fechados.
- Eu acho que ela está acordando.
Ouvi alguém dizer ao meu lado.

Meus olhos se abriram aos poucos e uma luz branca de escritório e um cheiro específico tomou conta da minha mente. Álcool e flores.
Eu estava no hospital rodeada por Julia, delegado Costa e Ezequiel.
- Zeke? - perguntei com minha voz arranhada por causa da garganta garganta seca.
- Como você está? - ele perguntou, ignorando totalmente o fato deu estar chocada por ele estar vivo.
- Ela não deu o golpe mortal, o encontramos todo esfaqueado e ensopado de sangue, mas eram ferimentos superficiais e ninguém atingiu órgãos vitais. - o delegado respondeu.
- Ela o queria vivo? - sussurrei para ninguém em especial.
- Aparentemente sim. - ele respondeu olhando para nada específico.
- Sinto muito por sua mãe. - falei olhando em volta.
  Estávamos num quarto pequeno de hospital com janela para o estacionamento, a rua parecia movimentada e inocente aos desastres da minha vida. No quarto havia alguns casos com flores e eu conseguia saber de quem era cada sem ao menos olhar o cartão.
- Está tudo bem. - Ezequiel respondeu atrasado com um sorriso.
- Luana? - perguntei já imaginando a resposta.
- Fugiu dando uma coronhada com a arma na minha cabeça assim que nos separamos. - Júlia respondeu. - eu estava correndo para te avisar quando a força tarefa me interceptou.
- Desculpa não ter confiado em você também. - falei nem um pouco arrependida e ela só concordou com cabeça sorrindo pequeno.
- Três Messores então? - perguntei lembrando de Lucas.
- Eles os chamam de Tríscele ou a união dos três, eu estava perto da pista de Bella quando ela me capturou, ela percebeu que eu sabia mais do que dizia quando você ligou para minha sede perguntando se eu estava a serviço. - Zeke disse.
- Sinto muito. - respondi.
- A ordem dos três quase nunca é vista, aparentemente eles só pegam missões complexas, você desde sempre foi considerada uma oponente perigosa  Lia.
- Acho que não, eles provavelmente só não queriam que as coisas saíssem do controle nessa cidade, visto o escândalo que meu pai causou da última vez. - disse sem expressão nenhuma.
- Como você consegue saber o que era ou não verdade de tudo que ela te falava? - Júlia perguntou sem intenção de machucar , mas mais por pura curiosidade.

Passou-se um tempo e o silêncio na sala era confortável e nem um pouco constrangedor, diria que pacífico inclusive, até que eu as vi.
- Aquele buquê? - eu perguntei apontando para um buquê de flores rosas.
- A lavanda rosa? - O delegado perguntou indo buscar a flor.
  Eu concordei com a cabeça sem conseguir tirar os olhos do buquê de flores.
- O entregador só entregou e saiu deduzimos que era alguém do escritório,algo errado? - Ezequiel perguntou.
- Posso ver o cartão? - perguntei com a voz engasgada.
Eu peguei o cartão na mãos, havia uma inscrição em dourado  dizendo "LIATRIS" com letras cursivas na qual eucostumava admirar.
- O nome dessa flor é Liatris. - disse ainda com a vó falhando e abri o cartão.
- É dela não é? - Júlia perguntou olhando em minha direção.
Eu queria responder que sim, mas não conseguia parar de ler a frase dentro do cartão.

" Já estou com saudades, te espero ansiosamente " .
                               Sempre sua, Bella.

O delegado tomou a carta da minha mão, já que fazia um tempo que eu encarava o papel.
- Filha da puta. - ele suspirou entregando o cartão para o restante dos integrantes.
- Parece um recado de amor. - Ezequiel disse, ainda de olho no cartão.
- É uma ameaça. - eu falei encarando as flores.
Sim eu conheço a Bella como ninguém, mesmo por baixo de suas imitações baratas de sentimentos, eu sempre sabia quando ela estava fingindo, mas eu achava que era só charme e não treino para socialização beirando a sociopatia de uma instituição quase milenar, mas ela me conhece também e ela sabe que o que eu disse para ela naquela estrada mal acabada prestes a levar um tiro na cabeça era para valer.
- Ela sabe que eu vou atrás dela, atrás de todos eles. - finalmente falei.
- Você tem alguma pista? - o delegado perguntou.
- Não mas tenho um Messore do meu lado.
Todos me olharam espantados, como se o tiro no ombro tivesse levado minha sanidade também.
- Lucas? - Júlia chutou.
- Com as gravações que agora vocês tem da conversa na caverna, meu pai pode ser exonerado, pois Eleonor confessou ter armado para ele. - respondi lembrando da gravação que tinha deixado rolando no meu bolso com o gravador do kit de perícia que eu tinha pego junto com a lanterna pouco antes de entrarmos na caverna. Eles tinham tanta certeza que iam me matar que nem tiveram o trabalho de me revistar e eu aproveitei cada segundo.
- Mas não vai ser algo fácil ainda assim. - o delegado falou.
- Eu tenho a gravação e posso fazer meu pai assinar um acordo para ajudar nas investigações, ele com certeza tem localizações e nomes e só não me ajudou antes quando eu estava em perigo porque viu Bella ao meu lado e sabia que ela era um Messore e que se ele não fizesse nada eles não encostaram em mim, oi menos foi o que prometeram, ele vai me ajudar agora. - falei lembrando de quando meu pai insistiu para que Bella saísse da sala, mas eu emocionalmente abalada não queria ficar longe dela.
- Mas se seu pai sair da cadeia não vai alertá-los? - Ezequiel perguntou. - Eles podem mudar de lugar ou se esconderem.
- Eles já sabem que estamos indo atrás deles, mas são egocêntricos demais para pensarem que somos algum tipo de ameaça.
- Nós vamos pôr tudo isso em andamento e te comunicamos, Ezequiel você vem comigo. Essa força tarefa terá todo mundo que conseguirmos juntar.

Os dois saíram da sala me deixando sozinha com a Júlia.
- Como se sente? - ela perguntou e eu sabia que não era do ombro que ela perguntava.
- Acho que os romancistas chamam isso de coração partido? - respondi meio perguntando.
- É o que seus olhos disseram quando você leu o cartão. - ela disse carinhosamente.
- Confiar as vezes custa. - me abrir para Júlia era última coisa que eu imaginava fazer na vida, mas o mundo tinha virado de cabeça para baixo, minha mãe não era minha mãe biológica, meu pai inocente e a mulher por quem eu me apaixonei uma assassina treinada e programada para me matar, pensando bem me abrir para a Júlia não estava nem perto da lista de coisas malucas que aconteceram na minha vida.
- Você acha que pode confiar em alguém de novo? - Júlia perguntou, lendo meus pensamentos.
- De que vale viver senão por inteiro? Sei que eu deveria dizer que nunca mais confiaria em alguém de novo, mas eu só estaria vivendo pela metade assim, eu pretendo quebrar a cara mais que uma vez na vida, Bella não tirou isso de mim.
- Espero que sua próxima decepção não atire em você também.
Nós rimos sem muito ânimo enquanto eu via o sol se pôr no horizonte.
- Você acha que vamos pegar ela? - ela perguntou um pouco tímida.
- Eu tenho certeza que sim. E quando isso acontecer você precisa me prometer que vamos fazer o máximo para levá-la presa.
- Por que diz isso?
Eu olhei mais uma vez o último filete de luz que o sol deixava entre os prédios.
Eu tinha certeza que iria querer ver  o coração de Bella parar de bater se possível nas minhas mãos enquanto a última coisa que seus olhos veriam antes de apagarem encarando os meus seria meu sorriso.

Júlia me encarava ainda esperando minha resposta.
- Você acha que a deixaria fugir? - ela deduziu errando feio.
- Só me prometa? - falei com os olhos gelados e o rosto em pânico por meus pensamentos horríveis dessa vez tomarem conta da minha mente e pela primeira vez eu não achar tá tão horrível assim, nem culpar meu pai por genes assassinos.

Eu tinha aqueles pensamentos cruéis e a mente fria, imaginando jogos e ignorando as pessoas que morriam ao redor.
Porque daquela vez eu sabia que o problema sempre tinha sido eu e somente eu, sem desastres, assassinatos ou infância ruim para jogar a culpa.
E eu sabia que não tinha como voltar atrás e sentir o que eu não conseguia sentir, pois era essa mente fria e calculista apesar de emocionalmente abalada quem fechava quase 100% dos casos que pegava desde que começou a lidar com assassinatos, eu via Bella como meu chão, só por medo de me entregar ao completo e insano mundo que era minha mente livre de remorso, culpa ou pena.
Eu tinha medo de mostrar para Bella quem eu realmente era por dentro, mas agora tudo que eu queria é que ela visse.
Visse minha verdadeira cor.

Depois que Júlia já tinha ido embora e toda minha companhia era a cidade do lado de fora do vidro da janela de hospital que nos delimitava e um policial de guarda a minha porta eu peguei meu celular, que deixaram em cima do criado mudo, e comecei a digitar.

Recebi as flores, obrigada.
Ps.: Também sinto sua falta, L.

Mandei para Bella porque sabia que em algum momento ela verificaria aquela mensagem. Se eu estava sendo sarcástica ? Não, eu estava sendo sincera, e capturar Bella seria absolutamente a coisa mais difícil que eu faria na vida, disso eu não tinha dúvidas.

Eu fiquei 72hs em observação no hospital por causa da contusão e também fiz vários exames que deram satisfatórios na medida do possível, eu tinha arrumado algumas roupas numa bolsa que Júlia trouxera e jogava o buquê de flores no lixo, o de Liatris, quando senti meu celular tocar, era uma ligação de um número desconhecido, provavelmente descartável.

- Oi. - falei encostando na janela de vidro do quarto.
- Eu sei que você me considera uma pessoa sem sentimentos, mas eu vou falar e você vai só escutar, ok? - ela pausou para que eu respondesse, mas eu continuei muda.
Eu pude ouvir seu sorriso mesmo ele não tendo som, fazendo meu coração estúpido acelerar.
- Boa garota. - ela disse com a voz um pouco rouca arrepiando os pêlos dos meu corpo.
- Eu sei que você está vindo atrás de mim - ela continuou. - e sei o que esse idiotas não sabem, que você vai conseguir nos achar e talvez dizimar toda minha família. - ela parou pensativa e então continuou.
- Eu quero te ver mais uma vez mesmo que com uma arma apontada na minha cabeça e eu sei que você atiraria, não vacilaria como eu vacilei quando tinha sua cabeça na minha mira. Então para o caso de você atirar antes que eu possa dizer algo eu vou dizer agora, ok Lia?
- Ok. - respondi dessa vez com a voz firme, para minha surpresa.
- Eu te amo. Amo desde a primeira vez que a vi mexendo um copo de coca até tirar todo gás. Amo mesmo antes de você saber que eu existia eu já te olhava com outros olhos e eu posso sentir até mesmo agora do outro lado da linha que você me ama também, só pelo jeito que sua respiração falha ao me ouvir dizer Eu te amo em seu ouvido. Só o que te peço Lia é que não me faça escolher entre você e eles porque eu não sei se seria capaz.
  
Eu sei que ela esperava ouvir algo, mas eu não sabia o que dizer.
- Preciso desligar, antes que o rastreio que você ativou neste número dê algum resultado. - ela disse dando uma risada desanimada.
- Aposto que você viajou pelo menos três cidades de onde realmente está só para me ligar. - falei com a voz um pouco pesada dessa vez.
- Apostar não é seu jogo Lia.
- Eu sei. - suspirei encostando a testa no vidro da janela.
- Deixa sua última jogada para lá L, por favor , estou te implorando. - ela suspirou e eu podia jurar que ela já sabia a resposta.
- Quando eu der o xeque-mate Bella, você estará olhando nos meus olhos, posso te prometer isso. - eu disse praticamente entredentes.
E eu ouvi o barulho de interrupção da ligação.

Eu olhei a cidade em movimento mais uma vez suspirando, quando o celular vibrou. Eu sabia que não era ela e ainda assim meu coração acelerou na esperança.
Era uma mensagem do aplicativo de rastreamento da delegacia.

Rastreamento sem sucesso.

Abaixo tinha as opções tentar novamente e cancelar.

O aplicativo podia rastrear o telefone mesmo que não estivesse em ligação, desde que estivesse ligado, mas Bella descartou o celular assim que desligou  e eu sabia, então cancelei, mas uma coisa não saiu da minha cabeça.

Eu a amava.


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