O Peão
A cena do crime estava impecável, o que era completamente raro, as cenas de crime geralmente tinham uma característica comum, sempre muita bagunça ligadas a um conjunto de sujeiras e ricas informações, desde digitais à escarros e vômitos, ou seja, milhões de formas de se adquirir DNA.
Essa cena em particular estava aparentemente limpa. Era uma casa em um bairro de classe alta.
Eu estava olhando para uma sala de estar, não muito grande, com poucos móveis todos modernos nas cores, branca e preta. Havia um móvel que se destacava dos demais, uma cadeira feita de madeira com cordas brancas penduradas onde supostamente teria sido amarrado os braços e as pernas de uma pessoa.
Não havia nem uma gota se quer de sangue, não tinha copos ou qualquer outro tipo de indícios de companhia. Só tinha um papel na mesa de descanso de vidro em frente à cadeira e uma peça de um jogo de xadrez, o peão branco.
- A vítima era fêmea, caucasiana, aparentemente com menos de 30 anos, nenhum sinal de arrombamento, o alarme não tocou, não tem nenhuma marca de sapatos nos tapetes e não conseguimos encontrar nenhum quadro de fotos ou documento da vítima - Começou o policial que estava nos esperando.
- Aparentemente? - eu disse parando para colocar as luvas de látex e separadas na maleta que ficavam no carro de qualquer perito.
O Policial abriu passagem em direção ao local de onde o corpo estivera, tomando cuidado para não pisar em nada olhando assustado para Bella, que devolvia o olhar ameaçadoramente. - Ela estava sentada nesta cadeira, amarrada com as cordas brancas eu disse aparentemente porque foi drenado todo sangue do corpo dela, ela estava com a aparência literalmente seca, não deu para tirar conclusões do corpo naquele estado, pelo menos não com certa exatidão.
- Nenhuma conclusão tirada sem conhecimento de causa é exata, parceiro. - Começou bela tirando a lata de Blue Sky da maleta e chacoalhando como se fosse pichar algo.
A lata de Blue Sky era um spray de luminescência, usado para identificação de fluidos através de um reagente de fluidos latentes não-visíveis, incluindo principalmente o sangue.
Bella espirrou sobre uma das cordas e em volta do chão onde estava a cadeira, enquanto eu passava pó de grafite mineral sobre o papel com o recado e sobre o peão também a procura de digitais.
Quando eu estou numa cena de crime eu a reparto em minúsculos quadrados simétricos e analiso as partes detalhadamente e por último o todo, porém, dessa vez não conseguia parar de focar as letras do papel analisado. Elas eram arredondadas pareciam ter sido tecidas de uma suave pena de uma ave criticamente escolhida e sua extremidade apontada. Era fina, elegante e transparecia confiança. Eu tive que ler.
"Ele só movimenta-se para frente, sendo o único cuja regra é nunca olhar para trás. Inicialmente ele pode alcançar uma ou duas coisas com sucesso, porém não pode conquistar grandes feitos. A partir da segunda chance ele irá alcançar apenas um feito, findando assim em seu eterno e descartável fracasso."
O policial me olhou com obvia preocupação quando viu meu sangue esvair do rosto, deixando ele com uma aparência amarelada e petrificada. A minha boca estava formigando quando Bella finalmente percebeu que alguma coisa estava acontecendo em sua volta.
- Jesus, o que houve Lia? - Bella disse aproximando como quem se aproxima de um cão de rua terrivelmente assustado.
O policial deu um passo para frente enquanto Bella me apoiava em seus braços, mas parou de se movimentar assim que ela teve a oportunidade de olhar para ele, ao invés de se aproximar ele começou a falar num tom baixo, - Você acha que ele fala de alguém especificamente? Ou de algum próximo crime? Ouvi falar que estamos lidando com um serial killer louco dos anos 90 - Bella olhou novamente para ele e dessa vez eu consegui encará-la, seu rosto era impassível como quem estava prestes a cometer um assassinado.
- Por Deus Bella, parece que você vai matar o rapaz desse jeito. - Disse olhando indignada para ela que me devolveu um olhar de surpresa.
Eu me ajeitei numa posição menos dependente de Bella e voltei a falar num tom mais baixo. - A frase são regras de um jogo de xadrez, ele, supondo que seja ele, está falando do peão como se fosse uma pessoa, é provavelmente a forma como ele a perseguiu até a matar. - eu odiava tirar conclusões precipitadas, mas falar me impedia de pensar demais sobre tudo que estava acontecendo na minha mente, à forma como meus pensamentos se desenrolavam , retirando lembretes da minha infância para completar algumas idéias.
- Opiniões. Você está dando opiniões e não fatos embasados cientificamente? Você precisa de sangue nesse cérebro, já ta te fazendo mal. - disse Bella com um olhar reprovador e sua famosa sobrancelha arqueada.
Eu respirei fundo, o que obviamente não foi uma boa idéia porque comecei a me sentir tonta.
- Vem, antes que você estrague alguma coisa na cena do crime. - Bella me levantou nos seus braços e me carregou para fora de casa.
- O que diabos está acontecendo com você? - continuou ela com a cara furiosa que não surtia muito efeito em mim, pelo menos não agora.
Eu a olhei por alguns segundos, nunca fui muito boa de sustentar olhares inquisidores. Eu me apoiei no carro e comecei a relaxar visivelmente.
- Não estou dizendo que eu estou certa, nem olhamos o resultado da autopsia ainda, mas essa cena de crime é exatamente a última cena em que lembro minha casa. A cadeira, as cordas brancas, eu não associei de início, até porque foram anos de terapia para esquecer os detalhes.
A confusão era óbvia a confusão em minha mente, essa frase nem teria sentido se não fosse com Bella que eu estivesse falando.
- Calma Lia. Puxa o ar. - ela disse esperando minha atitude.
Eu inspirei e olhei com um olhar assassino para ela.
- Boa menina, agora pode soltar. - Bella disse com um sorriso no canto da boca no final da frase.
Eu estava nervosa com o atendimento infantil de Bella, mas realmente funcionou. Eu deixei o ar encher meus pulmões e quando isso aconteceu veio junto uma onda de tranqüilidade estranhamente boa.
- Vem. Casa. - Continuou Bella me levando para o acento de passageiro no carro. - Espere aqui. - Ela comandou colocando meu sinto de segurança.
Ela voltou até a casa, imagino que para pegar o material coletado como evidência, eu queria ajudar, mas não conseguia me mexer, não sei se era pela onda de pânico que começava me invadir novamente ou se era pelas ordens de Bella. De qualquer forma eu fiquei, tentando relembrar meu passado, ver se achava algum papel ou uma peça de jogo perto da cadeira em que minha mãe estava sentada, sem vida, com as pernas caídas, quase como uma boneca de pano ficaria. Sim, uma divergência, os pés da minha mãe não estavam amarrados, eu precisaria analisar todos os crimes do meu pai, para ver qual era exatamente o Modus operandi dele.
Meus pensamentos foram interrompidos com o barulho do porta-malas se fechando atrás de mim.
Bella entrou no carro batendo a porta e dando partida. - Não sei você Lia, mas eu estou morrendo de fome. Pizza ou quer que eu cozinhe?
Eu olhei assustada para ela. - Bella desde quando você cozinha? Sua comida é provavelmente péssima, sem contar que por mais que eu adoraria sua companhia eu prefiro ficar sozinha. - disse resignada. Eu definitivamente não poderia agüentar uma pessoa ao meu lado hoje, mesmo que fosse para ajudar.
- Pizza então. - Disse Bella saindo com o carro calmamente.
A volta foi lenta e dolorosamente silenciosa, estava saindo do som alguma música parecida com motorhead, mas não consegui me concentrar suficientemente nela, como normalmente faço, mas também não me opus a desligar.
Voltamos ao quartel e estacionamos ao lado do meu IQ novamente.
- Lia, continue sentada e espere, eu já volto. - Antes mesmo que tivesse a chance de responder, Bella saiu do carro num pulo incrivelmente gracioso. Tenho certeza que se um dia eu tentasse aquilo me esborracharia ao chão.
Não sei quanto tempo se passou, só sei que fiquei imóvel, sentada no carro, olhando em vão para janela, pensando em como meu pai se parecia. Eu não lembro muito bem, lembro que seus olhos eram castanhos como o meu, seu queixo era levemente quadrado, seus cachos bagunçados na altura da orelha, eu diria que há uma semelhança entre nós, corria sangue de um sádico em mim. Esse pensamento me tirou do estado de estupor bem a tempo de ouvir a porta de trás do carro se abrir e dar entrada a duas caixas grandes de papelão pretas de escritório. Bella fechou a porta atrás de mim e entrou no carro.
- Está tudo bem? - Perguntou com uma expressão preocupada no rosto.
Eu balancei afirmativamente a cabeça, o suficiente para Bella entender e seguir com o carro. Nós entramos no estacionamento do meu prédio e Bella desligou o carro, se aproximou de mim e fez menção de soltar o sinto. - Você está bem mesmo? - Perguntou grossamente, porém seu tom estava exaltado demais, era óbvio que ela estava tentando esconder sua preocupação na máscara de braveza que ela atuava com naturalidade.
Eu dei um meio sorriso, ela soltou meu sinto e saímos do carro. Eu adorava receber ordens, mas ela estava obviamente exagerando se eu não tivesse percebido o tom de preocupação dela juraria que ela estava tentando me irritar. Bella tinha um padrão, quanto mais nervosa ou incomodada ela ficava mais nervosa ela parecia estar, se não fosse pelas leves alterações gravadas no meu subconsciente eu jamais saberia quando ela está brava ou quando ela está apenas disfarçando medo ou preocupação.
Ela empilhou as duas caixas nos braços e olhou para mim, com olhar de impaciência. - Você vai chamar o elevador ou eu vou ter que praticar um pouco mais meu levantamento de peso? - ela perguntou enquanto eu apertava o elevador antes mesmo dela terminar a frase.
Nós entramos no elevador e eu comecei a encará-la.
- Você trouxe suas ferramentas para arrombamento ou vamos dormir no tapete da porta mesmo? - eu perguntei com a cara mais debochada que eu consegui arranjar na hora.
- Eu tenho a chave. - Disse me olhando com aquele maldito sorriso no canto da boca.
- Talvez eu devesse saber quando você for fazer cópias de coisas minhas, eu estava querendo aquelas chaves novas coloridas.
- Eu informo quando precisar fazer isso de novo. - Bella rebateu, me lembrando do porque ela tinha a cópia. Há uns seis meses eu tive uma crise de pânico e comecei a beber vodca desesperadamente, eu não vi quando atravessei o enorme aquário que dividia a sala da copa, eu estava machucada e liguei para primeira pessoa que veio a mente, Bella. Meus pais adotivos moravam em outro estado e não tínhamos muito contato, não tinha mais ninguém senão ela.
Chegamos ao apartamento, que era pequeno, mas aconchegante eu o tinha mobiliado com móveis sempre claros e um enorme sofá de couro branco que parecia quase maior que a sala, os móveis eram poucos e todos sempre claros.
Bella colocou as caixas no chão ao lado da porta, pegou um molho de chaves do bolso e abriu a porta fazendo uma cena como se tivesse fazendo uma mágica. - Voìla, - disse sorrindo para mim.
Eu entrei revirando os olhos e fui em direção ao quarto.
- Você vai ficar bem? - ela disse recuperando o fôlego do esforço que fez para pegar as caixas novamente e colocá-las no chão da sala.
- Vou só tomar um banho. - Eu olhei para ela assustada, ela odiava demonstração de afeto e eu estava realmente agradecida, precisava fugir dela antes que começasse a chorar e agradecer, ela obviamente correria desesperada pela porta ainda aberta.
- Bem, vou ligar para pizzaria e organizar esses arquivos para você. - Ela disse olhando desolada para as caixas em seus pés.
- Arquivos? - eu me peguei sussurrando entre meus pensamentos que corriam a milhão sobre mil possibilidades.
- Você achou que tinha o que nas caixas, filhotinhos de cães abandonados?
Sua ironia me tirou da onda de pensamentos e eu tive vontade de agradecê-la de novo. Era realmente melhor eu sair dali antes que começasse a sessão, demonstrando sentimentos para pessoa errada.
- Talvez partes de um corpo esquartejado. - eu disse sorrindo levemente. - Quantas pessoas você teve que matar para conseguir me dar os arquivos de crimes cometidos pelo meu pai? - Continuei. Quase entrando em outra onda de pensamentos. Desde que entrei na academia eu tentei acessar os arquivos dele, mas sempre fui barrada. Era expressamente proibido meu acesso a qualquer coisa que levasse o nome de Yuri Matarazzi na capa.
- Eu confesso que fiz uma leve cena, sobre não ter argumentos para falar com ele amanhã, enfim, deu certo. Entra no banho, o cheiro está chegando aqui e eu preciso te dizer, é insuportável. - Bella disse abanando a mão em direção ao seu nariz franzido.
- Com certeza são os corpos nas caixas. - disse entrando no banheiro.
Há tempos não ficava tanto tempo no banho, confesso que não vi o tempo passar, minha cabeça não me dava um tempo, eu estava olhando sem foco para o espelho até perceber a porta atrás de mim se abrir. Por um momento eu pensei que fosse ele, mas consegui focar um rosto cômico antes de começar a correr rumo a lugar nenhum.
- Se eu não tivesse conhecimento da minha beleza, juraria que você me intimidaria com tanta cara feia de sua parte. - Bella se preparava para mais um papo furado quando eu resolvi interromper. - Cala a boca, Bella. - disse me virando para ela em direção a porta.
- Esse é o espírito, vem comer! - ela disse me dando espaço para passar, e continuou. - Sabe que daria para fazer cerca de dez pizzas com o tempo que você demorou no banho? Você acha que sobrou água para mim?
Eu a olhei com total incredulidade, me alimentar é uma coisa, passar a noite já era exagero.
- Bella, você não vai dormir aqui. - eu disse dando as costas para ela, indo em direção ao quarto para me trocar.
Mas Bella adorava ser desafiada e eu vivia me esquecendo disso.
- Não vou embora Lia, e não vou dormir também, alguém precisa de te ajudar com toda essa papelada. Eu não vou te dar o pedaço de calabresa se você for uma menina má - Ela disse gritando em direção a cozinha.
Como diabos ela sabia minha pizza preferida? Aquilo já estava fugindo do limites. Nunca imaginei ser tão obvia para alguém antes.
Eu me troquei com muita calma, até perceber que eu estava adiando ao máximo aquela noite. Eu não sei se queria ver aqueles arquivos, as especulações são como massinhas de modelar, você ajeita da forma que lhe cai bem. Transformar tudo em fatos tornava tudo, no mínimo assustador.
Sai em direção à cozinha e lá estava Bella, correndo de um lado para outro com pratos em uma mão e um pedaço de pizza na outra. Ela me olhou travando os passos como quando uma criança é pega fazendo arte. Ela deu de ombros e continuou sua agitada missão de preparar a mesa, ela empurrou uma cadeira e continuou a correria, como se só aquilo bastasse para eu saber que era para eu me sentar. O pior é que bastava.
Eu sentei, ela colocou uma taça de vinho a minha frente e continuou quebrando a cozinha a procura de algo, acredito que eram os talheres.
- Segunda gaveta à direita.
Ela parou por um tempo assimilando a informação e foi para o lado esquerdo.
- A outra direita. - disse vendo o erro com a visão periférica. Ela era péssima de direção.
Ela finalmente se localizou em minha apertada cozinha e definida a confiança de agir sem muita concentração, começou a tagarelar.
- Você está péssima, o banho não lhe causou muitos efeitos.
Eu continuei olhando para baixo com a taça de vinho na mão, dei um gole longo, com a fé de que bastasse para minha cabeça desacelerar um pouco. Não resolveu.
- Não sei do que você está falando, eu estou ótima. Talvez se você parasse de dançar na cozinha e se juntasse a mim para uma alimentação ao invés de me dar bebidas alcoólicas. Talvez. Apenas talvez, eu melhorasse.
Ela arregalou os olhos e parou o que estava fazendo, percebendo de imediato seu erro. Correu em minha direção e arrancou a taça das minhas mãos. Se eu estivesse em pé tenho certeza que pularia para trás com o susto.
Ela tomou todo o vinho em um gole e depositou a taça na mesa com o rosto transbordando satisfação.
- Vamos pular para comida então.
O cheiro da pizza estava incrível, tinha algum tempero que eu não conseguia identificar. Eu não estava com fome, mas já era hora de me alimentar.
Nós comemos em silêncio. Bom, eu comi em silêncio Bella estava errando a letra de uma música em seus sussurros e sorrindo a espera de algum tipo de distração. Tenho que admitir, ela estava sempre tentando ajudar.
- Manjericão. - Eu sussurrei para dentro, baixo, mas não o suficiente, o que fez com que Bella interrompesse seus sussurros e levantasse uma sobrancelha.
- Oi? - ela disse, tentando arrancar uma continuação que fizesse mais sentido.
Eu respirei fundo, já estava irritada de ter que puxar tanto a respiração num dia só.
- Manjericão, a pizza, estava com um cheiro diferente. Era manjericão. - eu disse torturando com o grafo uma calabresa no prato.
- Cuco. - Bella disse, fazendo um som característico daqueles relógios antigos de parede que saem um passarinho nas badaladas de hora em hora cantando "cuco".
Ela notou meu silêncio em protesto às brincadeiras, bateu com as mãos na mesa e levantou num pulo.
- Ao trabalho então. - disse, fazendo eu automaticamente me arrepender da falta de bom humor, talvez se tivesse me distraindo eu teria mais tempo para pensar se deveria realmente cutucar meu passado.
- Vem! uma hora você ia ter que descobrir mais sobre o velho. - Bella disse como se adivinhasse meus pensamentos.
Eu senti a extremidade dos meus dedos formigarem quando eu levantei, eu precisava daquele vinho agora, mas minha mente precisava permanecer limpa se eu quisesse absorver as informações corretamente.
Eu abri as caixas enquanto Bella olhava encostada na parede com as mãos no bolso, como se tivesse esperando para eu abrir um presente de aniversário.
Eu senti o cheiro do papelão úmido do tempo de guardado, sua textura era áspera, eu estava me apegando a todos os detalhes possíveis para não olhar para os documentos, mas não tive escolha. Tinham várias pastas, todas com nomes desconhecidos das vítimas e o nome do meu pai os acompanhava.
- O cara tinha uma vida agitada. - disse Bella com uma pilha de pastas na mão retiradas de uma das caixas.
Nós começamos a analisar cada arquivo detalhadamente. Ele amarrava suas vítimas na cadeira, só as mãos, nunca os pés. Ele tinha um M.O, eram sempre mulheres, com aproximadamente 25 anos, cabelos lisos e pretos, eram todas incrivelmente parecidas com a minha mãe. Ele drenava todo o sangue da vítima e o substituía por glicerina, como se faz em um corpo para estudo. Ele as tratava como esculturas, ele exaltava seu corpo, tratava-o, penteava seus cabelos e sempre as deixava em baixo de uma iluminação que as deixassem aparentemente alvas e límpidas, quase como se estivesse adorando-a. Cada mulher era manipulada diferentemente antes de morrer, todas as jogadas eram baseadas nas regras do jogo de xadrez. Ele nunca agiu com agressividade, por isso nunca tinham marcas em seus corpos. O único defeito em sua arte eram as pernas, elas ficavam jogadas, sem beleza ou vida. Suas unhas eram cortadas e suas digitais lixadas com precisão. Ele sempre as colocava em casas à venda ou abandonadas e fazia um quadro atrás com as fotos feitas por um perseguidor. O processo de identificação do corpo não era demorado, essas não eram suas intenções, a idéia era deixar a vítima imaculada, sem passado, sem futuro.
- Eu tenho que admitir meu pai é um poeta.
Bella olhou assustada como se um mudo tivesse recebido o privilegio da voz.
- Lia, seu pai era um sádico.
Não podia negar aquilo, era verdade. Uma mente deformada.
- Por que as pernas nunca estão amarradas? - Continuou Bella com o rosto de uma criança confusa.
Eu olhei novamente para as pernas jogadas, sem vida.
- É uma reclamação. É como se um artista estivesse adorando o seu projeto errado.
Houve um pequeno tremor preguiçoso descendo pelas minhas espinhas. Eu passei alguns minutos olhando para as fotos, eu nunca entendi o por que os pés da minha mãe estavam amarrados, não conseguia entender a diferença e aquilo me perturbava. Era estranho como eu conseguia entende-lo com tanta clareza, era confuso essa facilidade de raciocínio para esse lado especificamente, talvez seja porque eu depositei minha vida toda tentando achar uma explicação para as atitudes incompreensíveis dele, de certa forma era como se na minha mente existisse um túnel entre o insano e o real, e eu pudesse andar para ambos os caminhos quando conveniente, talvez tenha sido por isso que eu e Bella resolvemos a maioria dos casos que nos foi designado, existiam certo fascínio e beleza nas mentes que pensavam diferentes.
Era como se fossemos todos como um relógio, porém as engrenagens rodam em sentidos distintos o que torna cada relógio único, cada engrenagem tem sua rotatividade particular. Em minha concepção, quando se encontra uma mente tão distinta é como se encontrasse um relógio único e raro à sua disposição para que possa esmiuçá-lo ao máximo à procura do que o distingue. Se tratando da mente humana, quando você encontra o padrão dessa diferença particular você automaticamente dá um passo à frente, compreendendo seu comportamento e calculando seu próximo passo em relação ao seu padrão de comportamento, a mente humana tenta criar padrões em nossas mentes, dando falsa ilusão de conforto, rotina é o nosso maior exemplo, por que nunca vamos para o trabalho por caminhos diferente, ou por que não comemos cada dia em um lugar diferente? A sensação de estabilidade torna nossa mente padronizada e finitamente óbvia, mesmo tendo padrões diferentes, quando mais entramos em nossa zona de conforto, mais prezo ao óbvio estamos.
Entender o comportamento mental de um indivíduo é como montar um quebra cabeça com uma numeração que entrega a ordem das peças, não fica extremamente fácil, mas se torna mais manipulável. Quando entramos na zona de conforto de alguém e trabalhamos em cima de seus condicionamentos é como fisgar um peixe em uma vara de pescar, ele vai se debater, tentar fugir, forçar seu peso em direção contrária, mas no final ele quase sempre acaba dentro do barco. Há vida não é nada condicionada ela transforma oportunidades e vertentes todo o tempo, como se fosse uma enorme teia de aranha dando milhões de opções para mudar algo que já está praticamente definido. É o que torna a vida surpreendente em seu sentido literal.
Minha mente nunca foi capaz de encontrar os números das peças do quebra cabeça mental do meu pai, porém eu nunca tive acesso suficiente para entender seu comportamento.
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