Parte I: O Passado Esquecido

i. capítulo um.
O PASSADO ESQUECIDO

A FLORESTA ENCONTRA-SE envolta por um manto branco.

Alina, há horas, monitora a região desconhecida próxima ao lago, sentindo o medo alojar-se em seu âmago. Grande parte da vegetação é composta por lama semi-congelada, mas ainda há água líquida suficiente para a vida prosperar. Pelo menos, é o que ela espera. O frio que penetra seus ossos e a fome lancinante em suas entranhas são ignorados enquanto espera, recostada contra a casca desgastada de uma árvore, desejando não ser descoberta.

O desespero a conduziu até essa parte desconhecida da floresta – um território inexplorado. O perigo está oculto sob a extensa semana que Alina enfrentou, dias que se misturaram, com a morte e a solidão como ligação entre as rachaduras. Ela continua viva, de alguma maneira. Seu sangue ainda flui vermelho, seu coração ainda pulsa. A batida em seu pescoço é o som mais audível nessa floresta.

Contudo, está se acalmando. Desacelerando. Suficientemente para perceber passos pesados, botas esmagando a neve e uma faca roçando em seu braço. Ardência, mas ela ignora a dor e age conforme julga correto: Alina foge.

O tempo que ela passa correndo é incerto. Minutos, horas. Se parasse para refletir, poderia afirmar que foram dias, dias de lutas incessantes. Já faz muito, mais do que pode contar. Seu corpo está marcado, ferido pela luta árdua e constante, o vermelho mancha suas feições por conta de lutas passadas, mais sangue derramado. Pulmões que queimam, garganta em carne viva, sangue escorrendo do corte na testa e do arranhão provocado pela faca no braço. A dor é quase imperceptível naquele momento, totalmente submersa pela adrenalina.

Alina prossegue, focada em não parar, em não desacelerar. Os passos se aproximam a cada avanço na floresta. Ela não ousa olhar para trás, não deseja sequer saber onde ele está. Apenas sabe que deve continuar, que precisa seguir em frente.

Força as pernas a correrem o máximo possível, aumenta a velocidade com pés doloridos. Impulsiona-se para frente, pisando em galhos e plantas ao longo do caminho. Então, a dor irrompe quando uma bala atinge sua cintura pelas costas. A queimação a faz perder o controle de seu próprio corpo, e Alina rola pelo chão, encontrando terra, folhas caídas e cascalho que se entranham em suas roupas e cabelo. A mente dela gira, seu mundo perde o foco, até conseguir se deitar de costas para o solo, contemplando as estrelas entre as copas das árvores.

Estrelas. Ele disse para ela uma vez que gostava de observá-las.

Ela pisca os olhos algumas vezes, sentindo o sangue seco na lateral do rosto, acumulado pelo tempo. O coração ainda bate, mas por pouco tempo. Em breve, tudo cessará. A dor, o medo. Tudo chegará ao fim. Alina tem a confirmação disso quando o vê, quando o rosto dele surge acima dela e aqueles olhos frios e familiares a encontram. Eles a levam de volta ao início de tudo.

ANTES:

A respiração entrecortada dela denota a necessidade urgente de ar, seus pulmões demandando oxigênio enquanto trabalhavam arduamente. Alina encontrava-se exaurida, o suor escorrendo pela testa.

— Repita mais uma vez — ordenou a voz incisiva de Madame Shostakov, reverberando por todo o amplo teatro quase deserto.

A mulher mais velha manteve o olhar firme, mesmo enquanto Alina, fatigada, esforçava-se para reiniciar os passos após concluir a décima tentativa.

Dentro das sapatilhas de balé, seus pés sangravam, tingindo o rosa do tecido com matizes sombrias de vermelho. Vestígios se formavam no solo à medida que Alina girava, dançando ao ritmo suave do violino recomeçando.

Ela seguiu os movimentos gravados em sua mente, dançando nas pontas dos pés. Seus arabesques elevavam-se como notas musicais, enquanto os pliés revelavam a intensidade emotiva sob a pressão imposta. Alina mantinha a postura em cada movimento, transformando o espaço em um palimpsesto de emoções expressas pela linguagem universal da dança.

Contudo, seus movimentos falhavam. Um giro simples tornou-se uma queda quando suas pernas tremeram. A dor, proveniente dos ferimentos nos pés, a deixava instável.

Alina fitou o chão ao firmar as palmas na superfície polida da madeira. Fios de cabelo castanho caíam sobre o rosto, desfazendo o coque alto em sua cabeça, desarranjado pelas inúmeras repetições daqueles passos. Seus olhos ardiam, o lábio inferior tremia. A garganta apertou, conseguindo conter o soluço, mas não as lágrimas que caíam, salpicando a madeira.

A espera pela repreensão, pela voz de Madame Shostakov ordenando o recomeço ou instruindo seus seguranças a puni-la por sua suposta fraqueza, tornou o silêncio dentro do anfiteatro ensurdecedor. Alina ouvia apenas seus batimentos cardíacos e um tremor nos ossos.

As luzes do palco e os olhares dos poucos presentes estavam voltados para ela. Podia sentir o julgamento nas sombras, os guardas de Madame esperando por uma ordem direta, por qualquer sinal da autoridade presente, mas nada veio.

Contrariamente, Alina ouviu as portas duplas da entrada se abrindo, passos adentrando o recinto, e finalmente teve coragem de erguer o olhar. Suas bochechas estavam manchadas, o rímel escorrendo pelos olhos, desfazendo a maquiagem. Com olhos vermelhos e arregalados, observou o homem baixo e de terno dirigir-se a Irina Shostakov.

Ele caminhou até ela na fileira, sussurrando algo enquanto a mulher não desviava o olhar do palco. O rosto enrugado de Irina permaneceu imutável, olhando diretamente para a frente. Alina esperou, sem ousar sair do lugar ou falar com Madame, incapaz de articular palavras com a garganta seca e dolorida. Preferiu o silêncio até que o homem terminasse de falar.

Quando ele se afastou, poucos segundos depois, houve uma sutil contração no rosto de Irina, no canto de sua boca. Alina não sabia se era desagrado ou algum indício de satisfação. Após anos naquele lugar, ainda não conseguia decifrar as expressões de Madame Shostakov.

— Levem-na de volta aos quartos — ordenou a mulher, pondo-se de pé e dirigindo-se ao corredor que levava à saída. — Terminamos por hoje.

Os olhos de Alina a seguiram, surpresos pelo gesto vindo de Madame. As palavras dela ainda eram processadas quando dois homens se aproximaram, cada um segurando um braço da garota, arrastando-a para fora do palco pelos fundos do anfiteatro.

A última visão de Alina antes de desaparecer atrás das cortinas vermelhas foi a abertura das portas e homens fardados do lado de fora.

— Você está tornando-se negligente — observou Myrena. Alina ergueu o olhar, interrompendo os movimentos de enfaixar os pés feridos para encarar a amiga, que permanecia com os braços cruzados junto ao batente da porta.

— Madame Shostakov não está sendo piedosa comigo — retrucou Alina, retomando sua tarefa — Nada do que faço parece suficiente para ela. Não tenho culpa de ser imperfeita.

— Precisa aprimorar suas habilidades de dissimulação se quiser permanecer aqui — Myrena aproximou-se, sentando-se na cama de Alina e tomando as ataduras de suas mãos. — Não somos perfeitas, mas precisamos aparentar ser.

Com mãos cuidadosas, Myrena começou a enfaixar os pés de Alina, mantendo-se suave em seus movimentos, como sempre fora. Sendo mais velha e há mais tempo na organização, Myrena era vista como uma espécie de mãe pelas outras meninas.

Seus olhos carregavam uma intensidade que escondia as cicatrizes de seu passado, agora gravadas em sua memória. Ela mantinha em segredo sua vida anterior àquele lugar; Alina, como as demais, sabia apenas o básico sobre a amiga: Myrena viera de um orfanato fechado por falta de verbas, chegando junto com a primeira leva de crianças nos Cisnes Negros. Desde o início do projeto, mostrou-se uma das mais promissoras.

Madame Shostakov a venerava, e as outras meninas, mesmo a contragosto, sempre a ouviam. Myrena era tudo o que Alina não conseguia ser, pois não era impulsiva e nunca mostrava fraqueza. Ela era hábil no que fazia, representando a razão para muitas jovens desamparadas que haviam recentemente ingressado no local, assim como para aquelas que estavam ali há mais tempo, como Alina.

— Você teve sorte hoje — continuou Myrena, prendendo o final da atadura com um pedaço de fita. Alina retirou um fio de cabelo loiro, quase platinado, da frente do próprio rosto — Poderia ter sido pior, como foi com a Vivian.

— Seria, se... algo não tivesse acontecido — disse Alina, apoiando o queixo no joelho dobrado enquanto a amiga cuidava do outro pé. — Bertram entrou na sala e disse algo a Madame que não consegui ouvir; depois disso, ela me dispensou e foi embora. Vi pessoas do outro lado da porta, antes que me levassem embora, muitos homens fardados. Acha que estamos com problemas?

— Não sei — Myrena deu de ombros, untando as mãos com o bálsamo usado para ferimentos e massageando entre os dedos machucados de Alina, que estremeceu com o contato. — Não acho que seja um problema; não estaria tão tranquilo se fosse. Devem ser apenas visitantes.

— A madame não parecia muito feliz — comentou ela, murmurando as palavras como se fossem pensamentos distantes.

— Pode ter sido porque eles chegaram em um mau momento — sugeriu a mais velha. — Interferiram no seu treinamento.

— Para mim, foi um ótimo momento — retrucou Alina. — Estou apenas adiando o inevitável, mas... pelo menos tenho tempo.

— Não seja pessimista, vai dar tudo certo — assegurou Myrena, finalizando a enfaixagem do pé esquerdo de Alina, deixando ambos os lados da mesma altura e proporcionando um ajuste confortável para não restringir a circulação. — Descanse e limpe sua mente. Não deixe o medo de falhar falar mais alto. Perceberá que todo o pior passará num piscar de olhos.

Alina respondeu com um murmúrio baixo, sem dizer mais nada. Seus olhos seguiram os últimos movimentos, os toques finais dados pelas mãos ágeis da amiga.

— Pronto. Está feito — anunciou a mais velha, deixando suas mãos pousarem sobre o colo, onde seu vestido simples cobria da cintura até os joelhos.

— Obrigada — agradeceu Alina, movimentando os pés para testar os enfaixamentos, antes de olhar para Myrena. — Não sei o que faria sem você.

— Provavelmente, seria mais cuidadosa — afirmou Myrena. — Não seria tão descuidada se eu não estivesse aqui para ajudar.

— O que posso fazer? Você adora salvar nossos pescoços — Alina deu de ombros, olhando para a amiga com um olhar divertido, seguindo as provocações.

— Nem sempre consigo fazer isso. Hoje mesmo, não fui eu quem te salvou; foi o timing — a ruiva levantou-se. — Além do mais, não estarei aqui para sempre. Vocês vão precisar aprender a se salvarem sozinhas.

Não era segredo que a saída de Myrena dos treinamentos estava próxima. Em breve, Madame Shostakov deveria encaminhá-la para a próxima etapa do projeto, avançaria para fazer parte da Sala Vermelha e deixaria de fazer parte dos Cisnes Negros. Nenhuma delas sabia qual era a segunda parte, apenas que, dois meses antes do fim do ano, quatro garotas eram selecionadas e nunca mais voltavam. Elas precisavam ter entre 19 e 22 anos para serem escolhidas. Alina também estava nesse meio, por ter 21.

Ao todo, no instituto onde moravam, existiam 20 garotas, todas com idades entre 8 e 22 anos. As mais novas passaram por treinamento até os 19 anos, quando poderiam ser escolhidas para continuar o treinamento em outro lugar, caso se destaquem. Aquelas que sobravam eram descartadas. Assim como não sabia o que acontecia depois dali, Alina também não sabia o destino das que eram descartadas. As mais velhas especulavam muitas vezes sobre isso, sugerindo desde morte até prostituição. Elas ouviram conversas de Madame Shostakov sobre bordéis algumas vezes, mas nunca tiveram confirmação.

A vida naquele lugar era vaga em muitos sentidos. Quando Alina chegou, no dia em que seu pai a vendeu para Irina, imaginava que estava sendo preparada para o balé, mas descobriu que nada era como imaginava. O instituto ficava atrás de um grande teatro russo que recebia apresentações aos sábados. Enquanto não treinavam para os recitais, deveriam se preparar para lutar. Não podiam deixar o prédio sem supervisão, e os corredores tinham pelo menos quatro câmeras.

Todas comiam juntas e recebiam uma quantidade específica de comida por dia. Ninguém deveria ter muitos pertences pessoais, e a postura deveria estar sempre impecável. Aquela era uma prisão envolta em laços de seda e cetim, não correntes, mas fios rosados, cordas amarradas em tornozelos e pulsos, como se fossem marionetes. Depois de tanto tempo ali, suportando golpes e treinamentos árduos, elas haviam se acostumado. Aprenderam a gostar da forma como viviam, dedicando-se como se fosse algo bom.

Mas Alina nunca deixou de desejar mais, de desejar viver. Nas noites em que Roma, sua antiga colega de quarto, roncava baixinho, ela pensava em fugir, em escapar daquele lugar para nunca mais voltar. No entanto, Alina sabia o destino de quem fugia ou desobedecia. Todas elas sabiam.

A porta no corredor que levava aos quartos das mais velhas foi aberta com brutalidade, chamando a atenção das meninas próximas. Passos pesados ecoaram pelo chão, botas pretas e uma voz grave reverberando pelas paredes pintadas de cinza.

— Levantem-se e saiam, todas vocês! — gritou Maxim, o chefe da guarda de Madame Shostakov. Ele atravessou os quartos enquanto as meninas colocavam a cabeça para fora, começando a murchar entre si, confusas. — Madame Shostakov as quer na sala de treinamento B em 5 minutos.

— O que está acontecendo? — perguntou Myrena, franzindo a testa. Alina deu de ombros, refletindo a confusão da amiga.

— Vocês escutaram o que eu disse? — Maxim apareceu na porta, questionando-as.

Maxim era um homem alto e careca, corpulento e sempre trajava seu uniforme verde musgo, tão escuro que às vezes parecia preto. A pele branca de seu rosto estava enrugada pelo tempo, mas ele não era mais velho que Irina.

— Já estamos indo — respondeu Myrena por elas, ajudando Alina a calçar os sapatos e a ficar de pé. Ela gemeu baixinho de dor quando as solas tocaram o chão.

— Não façam corpo mole — exclamou o homem, seguindo até o final do corredor, onde havia apenas mais uma porta. Maxim puxou Sylvia pelos braços, empurrando-a pelo corredor quando a menina passou pela porta. — Façam fila e acompanhem Dmitry até o terceiro andar.

Alina ficou na frente de Myrena na fila; atrás delas, estavam Tatiana e Sylvia, todas parecendo assustadas. Eventos como aquele não eram comuns; raramente eram retiradas do quarto juntas, exceto durante o horário do almoço, aberto para todas as 20 meninas. Naquele momento, apenas as mais velhas eram guiadas para a sala de treinamento, com os olhares curiosos das mais novas as acompanhando.

Elas subiram as escadas até o terceiro andar, todas em silêncio, conforme haviam sido ordenadas. Os guardas estavam posicionados estrategicamente; Alina contou quatro pelo caminho e mais quatro na ala de treinamento. Os homens apenas as observaram com os olhos, permitindo que seguissem seu caminho.

Ao chegarem à grande sala de treinamento, formaram um semicírculo em torno do tatame azul, todas voltadas para a frente, onde Madame Irina estava sentada atrás de uma mesa de mogno marrom, observando cada uma como se estivesse planejando algo em sua mente. A sala, repleta de alvos variados, tinha todos os instrumentos afastados para o canto. A iluminação baixa era natural, para que as meninas não perdessem o foco durante as lutas no tatame.

Shostakov esperou que todas estivessem posicionadas e prontas para ouvir. Quando julgou ser suficiente, preencheu o silêncio com sua voz.

— Devem estar se perguntando o que estão fazendo aqui — disse ela com sua voz rouca habitual, o sotaque russo marcando seu tom. — Entendo suas preocupações. Por isso, serei direta para que entendam o objetivo e se preparem para o que está por vir.

Inquieta, Alina se mexeu em seu lugar. Seus pés feridos já não importavam. Algo não parecia certo, algo mais a incomodava.

— Quero anunciar a vocês que estaremos passando por mudanças a partir de hoje. O treinamento final será adiantado e começará nesta semana — Informou a madame. — Para isso, teremos o auxílio da nossa parceria recém firmada. Um acordo benéfico para os dois lados onde eles nos cederam sua mais nova arma de combate para nossos testes.

Emergindo das sombras da sala, um homem surgiu, surpreendendo todas as jovens, incluindo Alina, que não havia percebido sua presença até então. Vestia uma máscara preta que cobria do nariz ao queixo, calças pretas de combate, botas pesadas também pretas e um colete preto com apenas uma manga comprida. O outro braço era de um metal reluzente que brilhou ao refletir a luz acima do tatame.

Seu cabelo, em tom castanho, quase tocava os ombros, sendo volumoso, porém na medida certa para cobrir parcialmente seu rosto. O olhar taciturno que mantinha não estava direcionado a nenhuma delas, parecendo distante, como se fosse uma máquina.

— Apresento-lhes o Soldado Invernal — anunciou Irina — cedido temporariamente até a conclusão das selecionadas para a próxima fase. Diariamente, quatro entre vocês serão designadas para enfrentá-lo, praticando e refinando movimentos e estratégias. Daqui a dois meses, teremos o embate final. Aquelas que o superarem ou ao menos resistirem até o desfecho — Irina sorriu de forma enigmática — serão escolhidas para entrarem para a Sala Vermelha. As que não conseguirem serão eliminadas.


O temor que se apossou da mente de Alina durante aquela reunião revelou-se coerente na semana seguinte. Na segunda-feira, teve início a promessa de madame Irina. Quatro jovens treinaram contra o Soldado Invernal, enquanto as demais observavam; Myrena foi uma delas e retornou com hematomas coloridos pelo corpo. Nada letal, porém suficiente para deixá-la dolorida ao longo da semana.

Presenciar cada uma de suas colegas falhando, uma após a outra, foi angustiante. Mesmo sendo apenas um treinamento, não uma luta real, o Soldado Invernal não poupou esforços para derrubá-las, atingindo-as diretamente onde mais doía. Nesse ponto, Alina experimentou um medo mais profundo. Medo do seu próprio turno. E medo do que a aguardava daqui a dois meses, no teste final. Ela não acreditava que sairia viva.

Na noite daquela segunda-feira, Alina estava nervosa, receosa de falhar. Homens desconhecidos caminhavam pelo Instituto algumas vezes, viam para inspecionar o soldado e depois partiam, porém a forma como eles olhavam para elas sempre parecia permanecer por perto, mesmo quando não estavam mais lá.

Sua mente estava agitada enquanto seus olhos se fixavam no teto acinzentado. O silêncio no quarto, desde que sua colega de quarto havia partido no ano anterior, escolhida por madame Shostakov, costumava ser reconfortante para ela. Contudo, naquele momento, tornara-se perturbador. A única maneira que ela conhecia para aliviar aquela tensão era escapar durante a madrugada.

Um acordo tácito fora estabelecido com Tatiana, aproveitando as noites em que ela atraía Dmitry para o quarto, permitindo que Alina saísse pela antiga e discreta passagem das empregadas, caminhos ocultos atrás das paredes dos quartos que levavam ao corredor próximo à entrada do porão e a muito esquecidos. Por lá, Alina passava pelo alçapão que conduzia à parte posterior do Instituto e pulava o muro para se aventurar pelas ruas da cidade russa.

As câmeras eram desativadas das 23 horas até a 1 da manhã, tempo que Dmitry e Tatiana passavam juntos. A amiga sempre informava a Alina quando o homem a visitava, proporcionando-lhe a oportunidade de se preparar para uma noite de fuga. Embora Alina tenha considerado deixar definitivamente aquele lugar, a falta de recursos e a ausência de coragem para ir tão longe a impediam. Além disso, não importava o meio, madame Irina sempre encontrava as fugitivas e as submetia a uma punição muito pior do que os treinamentos constantes.

Por isso, Alina nunca exagerava no tempo que dispunha. Aproveitava a liberdade momentânea, explorando as ruas da cidade sozinha, observando pessoas e paisagens. De vez em quando, retornava com pequenos presentes para suas colegas mais próximas. Sem dinheiro, mas com mãos habilidosas, ela conseguia livros, um pouco de dinheiro e frutas proibidas. Guardava o que podia esconder em seu quarto, sob uma madeira solta no assoalho - seu esconderijo secreto desconhecido pelas demais.

Ao voltar para o Instituto, próximo à 1 hora, seguiu o mesmo caminho que tomaria ao sair. Silenciosa e cautelosa, evitou tocar nas paredes de madeira, sabendo que rangiam facilmente. Subiu pelas ripas, andando pelo caminho estreito e empoeirado. Ao alcançar a metade, a luz de um quarto, filtrada pelas frestas da madeira, e a movimentação dentro do cômodo chamaram sua atenção.

Alina parou, deu dois passos para trás, espiando entre as frestas para descobrir o que ocorria. Ouviu passos e, em seguida, o viu: o Soldado Invernal, movendo-se de um lado para outro no quarto. Era o antigo aposento dos empregados, onde ele estava confinado. Quatro paredes apertadas, apenas uma porta, nenhuma janela. Alina conhecia a sensação de viver assim, mas aquele confinamento parecia mais severo do que o delas. Ele possuía apenas uma cômoda, uma mesa sob a parede por onde Alina o observava, e nada mais em cima delas. A cama era coberta por um cobertor fino e um travesseiro que mal parecia suficiente para o tamanho dele. Ela o observou como se fosse um animal enjaulado.

O homem de cabelos castanhos escuros fitava intensamente o espelho preso na parede. A expressão em seu rosto estava oculta pelos fios longos, mas Alina imaginava que não estava fazendo mais do que se encarar. Em sua mente, ela se questionou o motivo dele agir daquela forma, o que o Soldado Invernal buscava.

Distraída, Alina se aproximou mais das tábuas gastas, um erro que percebeu tarde demais. A pressão leve de suas mãos sobre elas foi suficiente para produzir um ranger. Instintivamente, a cabeça do homem virou na direção do som, fixando o olhar diretamente no ponto onde Alina estava. Seu rosto sem a máscara estava visível para ela, enquanto a jovem recuava assustada e levava a mão à boca, contendo a respiração.

— Quem está aí? — A voz áspera do soldado ecoou, fazendo um arrepio percorrer a espinha de Alina. Paralisada pelo medo, ela não se moveu, petrificada.

Ouviu os passos pesados dele se aproximando da parede. Na penumbra, Alina permaneceu. Tendo testemunhado sua força durante os treinos, sabia que se ele desejasse, poderia quebrar a parede de madeira com seu braço metálico e denunciá-la, acordando todos no prédio. Ela sofreria punições severas, assim como Vivian.

Alina fechou os olhos com força, esperando o pior. Pressionou a mão sobre a boca, sentindo seu coração bater intensamente no peito. O Soldado Invernal estava a um passo de distância, a sombra dele sobre a porta bloqueando a luz da lâmpada ainda acesa.

Esperou pelo pior, mas ele nunca veio.

Contrariando suas expectativas, o soldado partiu, afastando-se quando batidas soaram na madeira de sua porta. Ele abriu, e Alina ouviu outra voz repreendendo-o em Alemão, um sotaque e timbre desconhecidos para ela. Aproveitando aquele momento de distração, Alina moveu-se, continuando seu caminho e deixando aquele lugar antes que fosse descoberta.

No dia seguinte, mesmo após ter conseguido sair de seu esconderijo sem ser detectada, Alina ainda estava apreensiva. Ela temia que o Soldado Invernal levasse o incidente até madame Shostakov.

Ele possuía voz, afinal. Ao contrário do que as demais garotas imaginavam, ele não era mudo e, muito menos, teve a língua cortada por desobediência. Ele poderia falar e informar Irina ou qualquer outro guarda. Alina passou o restante da noite acordada, ponderando sobre o que a esperava na manhã seguinte, preocupada com a possibilidade de Irina confrontá-las em relação ao ocorrido. Mesmo sem saber quem foi o responsável, madame as pressionaria até obter a verdade. Ordenaria que quartos fossem revirados, passagens trancadas, levando-as ao limite para que alguém confessasse, e, se não fosse Alina, Tatiana provavelmente a entregaria.

A jovem percorreu o instituto como um gato arisco, sempre atenta aos arredores, antecipando o perigo que podia estar à espreita. Na sala de treinamento, mesmo durante os combates com as outras meninas, Alina não conseguia manter a concentração, tornando-se ainda mais inquieta quando chegou sua vez de treinar com o soldado.

Ela engoliu em seco quando a supervisora, Mariya, anunciou seu nome como a próxima a subir no tatame. Alina posicionou-se diante dele, mantendo sua guarda elevada conforme as instruções, preparando-se para o início do combate. O soldado movia-se com destreza, demonstrando estar mais preparado que ela. Sua postura era impecável, seus olhos mal piscavam de cansaço, e a expressão em seu rosto, mesmo parcialmente coberto pela máscara, era impassível e incisiva.

A situação parecia completamente desigual quando analisada por Alina. Uma jovem magra e pouco treinada contra um homem duas vezes mais forte, melhor treinado e fisicamente capaz de derrotá-la com facilidade, sem sequer utilizar o braço metálico.

Naquele instante, Alina começou a nutrir ainda mais ódio por sua vida. Mesmo aquela pequena parte que havia aceitado seu destino infeliz naquele lugar, aquela que havia se conformado, remexia-se dentro dela, sentindo uma faísca de revolta. Alina alimentou esse sentimento com pensamentos raivosos, deixando-o crescer, transformando-o em sua motivação para enfrentar os desafios. Não gostava de encarar dessa maneira, mas sabia que, em algum momento, não poderia mais ignorar o que estava por vir. Alina teria que lutar se quisesse deixar o instituto viva, se almejasse ter um futuro melhor do que o de Vivian ou de qualquer outra garota desclassificada antes dela. Suas chances de vencer eram mínimas, mas ela tinha que tentar.

Começando por ali, naquele primeiro treino.

Ao anunciar o início da luta, Alina avançou imediatamente. O soldado esquivou-se de dois socos dela e usou uma mão aberta para acertá-la no estômago, empurrando-a para trás. Como Alina suspeitava, ele nem fez muito esforço, seguindo instruções para pegar leve, pelo menos por enquanto. Mesmo assim, ela cambaleou, quase caindo, mas conseguiu manter-se em pé.

Quando se recuperou, Alina tentou novamente. Seus socos foram defendidos, todos bloqueados por ele. A única vez que chegou perto de acertá-lo, os dedos dele roçaram seus cabelos, quase como o vento. Ela mal os sentiu, e ele não demorou a contra-atacar. Com um movimento rápido, o soldado a puxou pela nuca, fazendo-a cair.

Alina caiu de costas, soltando um pouco de ar pela surpresa. Ele a circundou como um falcão, aguardando que ela se levantasse por conta própria. Os fios escuros de cabelo caíam sobre seu rosto enquanto ela ofegava. O coque baixo que Myrena havia feito estava quase se desfazendo, as presilhas não segurando tão bem quanto antes.

Alina levantou-se novamente. Sentia os olhares das outras sobre si, mas nenhuma delas tinha permissão para interromper seus próprios treinamentos. Enquanto Alina enfrentava uma luta árdua, elas continuavam com os exercícios na sala, lançando olhares de esguelha para a jovem, sentindo-se oprimidas e preocupadas com o que estava acontecendo. A maioria temia por suas vidas, apreensivas demais para quando fosse a vez delas.

Observando Alina instável em seus próprios pés, suada e ofegante, iniciando mais uma vez aquele ciclo, elas viam-na falhando em mais um momento. Parecia que nada do que aprenderam no Instituto servia contra o Soldado Invernal. Ele retaliava e se defendia, enquanto ela apenas se cansava cada vez mais, esquivando-se e protegendo-se dos ataques dele como conseguia.

Alina utilizou o conhecimento adquirido nos treinamentos, recordando até mesmo dos passos de balé que madame Shostakov as fazia memorizar. Abordou a luta como uma dança, mas seu desequilíbrio ainda era evidente. Desleixada, madame Irina diria. Por mais dedicada que fosse, Alina era descuidada, continuava a ser falha.

Quando o soldado a derrubou pela terceira vez, prendendo-a no chão pelo pescoço com o antebraço, foi o suficiente para a supervisora intervir.

─ Chega ─ interveio Mariya, um olhar desgostoso em seu rosto. ─ É o bastante.

O soldado a soltou imediatamente, seu olhar frio queimando sobre ela, enquanto Alina ofegava e levava a mão ao pescoço, ainda processando o que havia acabado de acontecer. Ele se afastou dela sem olhar para trás.

O treinamento foi encerrado, e Alina sentia-se dolorida e exausta. As meninas dirigiram-se ao banheiro, onde tomavam banho em cabines separadas.

─ Você está bem, Alina? ─ Tatiana perguntou quando Alina acabara de deixar suas roupas sobre o banco de madeira.

─ Sim, estou ─ ela assentiu. Não era uma mentira. Alina esperava sentir-se pior; Myrena havia ficado mais machucada quando lutou contra ele, mas ela não se sentia tão mal. ─ Você pode não ter acertado nenhum soco, mas esquivou muito bem ─ comentou Galina, pendurando sua toalha na porta de uma das cabines. ─ Deve ser bom ser pequena e ágil.

─ Por favor, Alina sempre foi boa em fugir de uma luta ─ Sylvia intrometeu-se. ─ Lembra quando Olga começou a implicar com ela e Tatiana no jardim, alguns anos atrás? Ela subiu em cima de uma árvore tão rápido que eu nem sequer percebi.

Mãos leves, passos rápidos, Alina era uma pequena ladra desde sempre. Seu pai a fazia roubar nas ruas russas desde que a jovem aprendera a andar. Às vezes, ela era uma distração enquanto ele agia. Encantava as pessoas com seus olhinhos grandes, pedia ajuda quando supostamente havia se perdido de sua mãe, contava meia dúzia de histórias que derretem o coração de alguém, enquanto o homem passava por trás das pessoas roubando suas carteiras.

Quando ficou mais velha, Alina conseguia fazer os dois ao mesmo tempo, distrair e agir. Ela fazia tudo sozinha, pois seu pai estava bêbado demais no sofá da antiga casa deles para se levantar até mesmo para roubar alguém pelas vielas da cidade. Para que tivessem o que comer no dia seguinte, Alina passava horas fora praticando seus pequenos furtos.

Não era uma vida boa, longe disso. Mas algumas vezes, Alina ainda a preferia do que viver presa naquele instituto.

─ Eu só fiz o que achei sensato ─ Alina encolheu os ombros. ─ Olga era maior e mais forte do que eu, era burrice tentar bater nela.

─ Myrena foi burra o suficiente ─ Galina comentou, fazendo as outras meninas rirem.

─ E ainda saiu vitoriosa, não se esqueça disso ─ acrescentou Tatiana.

─ Brigar com Olga e sair apenas com um nariz quebrado não é para qualquer um ─ Sylvia disse, entrando em sua cabine após retirar sua roupa. ─ O triste foi que depois disso perdemos nosso direito de ficar no jardim por 2 semanas.

─ A maior regalia dessa prisão luxuosa ─ Galina comentou, apresentando uma falsa modéstia. ─ Além, é claro, das apresentações.

Uma por uma, elas entraram dentro do chuveiro. Alina escutava a conversa das amigas, enquanto inspecionava os próprios hematomas pelo corpo. Haviam dois, no máximo.

─ Ouvi boatos de que madame Irina convidou uma influente coreógrafa francesa para o próximo espetáculo ─ Sylvia comentou, entusiasmada. ─ Será que seremos selecionadas para alguma apresentação internacional? Seria tão incrível se a segunda parte do projeto fosse essa. Vocês já se imaginaram como bailarinas profissionais?

Sylvia soava sonhadora. Alina mordeu a língua para não dizer algo rude. Era óbvio que o balé era uma fachada para esconder o verdadeiro intuito do instituto. Elas não seriam bailarinas; seriam assassinas. Marionetes. Fariam trabalhos sujos.

Seja qual fosse a segunda etapa, com certeza não seria uma bailarina profissional. Talvez, nunca mais ouviram falar do nome delas depois dali.

─ Não seria ruim se apresentar no teatro Bolshoi ─ Galina deu de ombros. ─ Tantas pessoas observando, aplaudindo.

─ Seria magnífico ─ comentou Tatiana. ─ Você não acha, Alina?

As meninas praticamente se voltaram para ela, chamando a atenção da jovem, que estava um tanto imersa em pensamentos. Ela começara a se ensaboar, deixando que as outras conversassem.

─ Hum? Sim, é. Deve ser... Magnífico. ─ Concordou, dando o assunto por encerrado. As garotas voltaram a conversar, sem perceber o olhar distante de Alina.

Parecia irreal imaginar-se em uma situação de tamanho prestígio, mas já ocorrera com ela. Assim que chegara ali, na época que achava que aquele lugar era realmente voltado para o balé, Alina se imaginou em um palco como uma bailarina profissional. Chegou até a enxergar seu pai e sua mãe na plateia.

Então ela percebeu que isso nunca aconteceria. Primeiro, por sua mãe estar morta desde que ela nasceu. Segundo, pois nada na vida dela poderia ser tão perfeito e mágico daquela forma.

Passaram duas semanas, as quais foram longas e cansativas. Madame Shostakov estava pressionando as garotas ao máximo, demonstrando insatisfação com o desempenho delas. Nenhuma havia se saído bem contra o Soldado Invernal, todas falhavam e nem mesmo era uma luta real.

Essas semanas foram tão intensas que Alina pensou que não conseguiria sair durante a noite para seus passeios noturnos. Mesmo assim, nas duas quintas-feiras, ela se viu perambulando pelas ruas da cidade, aproveitando breves momentos de liberdade.

Na primeira quinta-feira, ela retornou para casa com uma flor amarela, alguns trocados nos bolsos e uma maçã. Colocou a flor sobre a mesa próxima à porta dos empregados, que levava ao quarto do soldado, como agradecimento por ele não tê-la entregado dias atrás. Quando visitou o quarto na segunda quinta-feira, a flor não estava mais lá, e não houve comentários sobre ela.

Alina queria ter continuado seu caminho para encarar o mundo real mais uma vez, mas seus olhos se voltaram para o soldado. Aquele homem imponente, forte e sombrio, estava sentado em um banco em frente ao espelho mais uma vez. Sozinho e em silêncio, parecia estar contemplando algo. O que realmente chamou a atenção de Alina foi o ferimento em seu ombro.

Naquele dia, Olga havia chegado ao limite. Perdeu o controle na sala de treinamento, atacando o homem com uma faca. Cravou-a no ombro dele, furiosa e irritada com tudo pelo qual estava sendo obrigada a passar. Alina viu a amiga enlouquecer. O soldado a derrubou, e os guardas a arrastaram para longe. Olga foi castigada e confinada para aprender com seus atos.

Agora Alina percebia que Olga não foi a única a ser punida. Nenhum dos homens de Irina ou as enfermeiras do Instituto que estavam lá para ajudá-lo permitiram que o Soldado Invernal cuidasse sozinho daquele ferimento. O kit de primeiros socorros estava sobre a mesa, mas ele não fez movimento para pegá-lo. O sangue escorria do corte, manchando sua pele pálida, sem uma blusa para cobri-la, mantendo aquele rastro viscoso.

Alina disse a si mesma que deveria seguir em frente, que não deveria estar ali e que não deveria se importar com ele. No entanto, algo dentro dela a impediu de continuar. Seus pés permaneceram plantados no chão, suas mãos agiram antes mesmo de sua mente processar o que estava fazendo. Ela abriu a porta, fazendo-a ranger por não ser usada há muito tempo. Teias de aranha se soltaram e um pouco de poeira caiu no chão.

No mesmo instante em que Alina entrou no quarto, o soldado voltou-se para ela, ficando de pé imediatamente e empurrando o banco para trás.

─ Calma, por favor ─ ela pediu, buscando tranquilizá-lo, dando poucos passos à frente. ─ Por favor, não chame os outros. Não quero problemas, só quero ajudar.

Alina falava com ele como se falasse com um animal raivoso. Seu coração batia intensamente, o medo de ser delatada começava a encher sua mente de preocupações. Ela não conseguiria impedi-lo se ele decidisse chamar os guardas. Estava começando a se arrepender de sua escolha mal pensada.

─ Eu... ─ Alina engoliu a seco, o silêncio do soldado a oprimindo. Seu olhar desviou para o ferimento em seu ombro. ─ Você está ferido. Posso consertar isso para você, se você deixar.

Seus olhos imploravam para que ele deixasse, para que cedesse.

─ Você não devia estar aqui ─ veio o murmúrio baixo da voz do homem, grave e séria. Ele cerrou os punhos.

─ Eu sei... m-mas eu estou ─ ela respondeu. ─ Estou aqui, fazendo uma loucura. Então, você poderia ser legal comigo e me deixar costurar o seu ombro. Vou ser rápida, eu prometo.

Ele manteve o silêncio mais uma vez, fitando-a intensamente com seus olhos azuis.

─ Se não cuidar disso logo, pode acabar tendo uma infecção ou... algo pior ─ Alina tentava escolher as palavras certas para convencê-lo. ─ Me deixe ajudar, por favor.

Enquanto o observava, viu o momento exato em que o Soldado Invernal cedeu. Ele não parecia preocupado com o ferimento e Alina não sabia o que se passava em sua mente, mas imaginou que o conflito havia se encerrado.

Ele puxou o banquinho para perto novamente e sentou-se mais uma vez de frente para a penteadeira.

─ Seja rápida ─ ele ordenou, sem olhar para ela.

Silenciosamente, Alina agradeceu aos céus e se encaminhou à penteadeira para pegar o kit.

Ela o abriu e pegou o primeiro frasco de antisséptico. Molhou um pouco de algodão com o líquido, voltando-se para o homem mais uma vez e aproximando-se dele para limpar a área.

─ Vai arder um pouquinho ─ Alina comentou, sem receber uma resposta verbal.

Quando aplicou o algodão embebido com antisséptico, ele nem ao menos se mexeu. Não houve nem um estremecimento por parte do Soldado Invernal. Ele permaneceu exatamente da forma que estava, deixando-a cuidar do corte.

Ela o limpou o melhor que podia, até que pudesse ver o ferimento com clareza. Era profundo, mas a faca não era larga. Alina conseguiu dar pontos simples.

Enquanto colocava a linha na agulha, lembrava-se da primeira vez que havia costurado alguém. Seu pai havia sido pego roubando, foi espancado pelo homem que tentou furtar. Um erro de cálculo causou isso. Ele pensou que conseguiria pegar sem ser visto, mas sua precisão foi incorreta. Chegou a sacar uma faca para se defender, mas foi desarmado, e seu agressor a usou para feri-lo.

Como não podiam ir ao hospital, seu pai pediu que ela costurasse o ferimento no estômago. Ela tinha 7 anos na época e o viu virar toda a garrafa de uísque que tinha para não sentir a dor. As mãos de Alina tremiam durante cada segundo daquele processo. Ela foi forte, não chorou e não sentiu nojo do sangue em suas mãos, mas algo dentro dela parecia contorcido.

Aquela experiência nunca saiu de sua mente e, nos anos seguintes, ela continuou sendo a enfermeira pessoal de seu próprio pai, ao ponto de não sentir mais nada enquanto o fazia. Sempre o ajudava em silêncio, como estava fazendo agora com aquele homem que mal conhecia.

Alina foi cuidadosa, passando a agulha e a linha sobre a pele dele como se lembrava de fazer várias vezes antes. Por ser um corte pequeno, ela acabou rapidamente, como era esperado. Protegeu com gaze e fita no final, deixando devidamente protegido, e deu um único passo para trás, observando seu trabalho. Quando ele se mexeu para observar também, Alina desviou o olhar antes que eles se cruzassem. Ela focou em arrumar o kit novamente, guardando tudo mais uma vez e descartando o que usou.

─ Está feito, senhor ─ disse ela, enquanto fechava o kit de primeiros socorros. A palavra "senhor" saiu naturalmente de seus lábios, mas parecia estranha. Alina não sabia como se referir a ele.

Ele movimentou o ombro, testando-o. Pareceu satisfeito.

─ Eu... vou embora agora, se não precisar de mais nada ─ comentou, um pouco receosa. Se estiver sentindo dor, tem alguns comprimidos.

─ Era você? ─ ele a interrompeu fazendo-a parar de se mexer para encará-lo ─ Era você naquela noite?

Alina piscou os olhos para ele algumas vezes, pensando. Não demorou muito para ela entender onde o homem queria chegar e a noite a que se referia.

─ Sim ─ murmurou baixinho. Ele não expressou nenhuma reação. ─ Por que... não contou para os outros que ouviu alguém?

─ Não sei ─ ele respondeu. ─ Eu devia?

─ Na sua posição, acho que seria o certo ─ Alina respondeu. ─ Mas obrigada por não ter feito.

Ele assentiu uma única vez, deixando que um silêncio estranho recaísse sobre os dois e se apossasse do espaço entre eles. Alina brincou com os próprios dedos por um momento, torcendo-os na frente do corpo.

─ Você... também não vai contar sobre hoje, certo? ─ ela perguntou, receosa. Ele assentiu, confirmando que não contaria. ─ Ótimo, obrigada. Mais uma vez.

Dando as costas para o Soldado Invernal, Alina caminhou até a porta e a abriu. Antes de sair, porém, ela olhou para trás uma última vez e seus olhares se encontraram por um breve segundo. Naquele momento, Alina notou quão tristes os olhos dele eram.

Passou pelo batente, fechou a porta atrás de si e voltou para o seu quarto com aquela imagem em sua mente. O motivo por ter deixado aquele cômodo, em primeiro lugar, foi completamente esquecido.

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