Antigos e novos lobos


O lobo ancião observava o movimentar das nuvens em uma das entradas de caverna considerada sagrada ao seu povo, foi ali que os primeiros lobos que vieram para aquela floresta, localizada nos limite das terras do povo coelho, se assentaram e reiniciaram suas vidas. Naquelas paredes rochosas estão impregnadas de sonhos e esperanças dos seus ancestrais. Sonhos que envolviam um futuro sem guerras e mortes... Os lobos almejavam construir famílias e salvar a raça da extinção. E ali estavam eles, anos já tinham se passado e as cicatrizes do passado dos lupinos estavam quase curadas e fechadas...Mas será que só o povo lobo tinha problemas? Seus olhos focavam no horizonte, a caverna era localizada um pouco acima do solo, de modo que podia ver por além das copas das árvores. Podia ver os campos verdes das fazendas dos coelhos e mais distante, a vila...

–Pai, não deveria ficar tão triste...- Um jovem lobo falou ao seu lado. Tinha cabelos loiros, quase que dourados, o que chamava a atenção era a marca de uma estrela logo abaixo de seu olho. O ancião sorriu, também tinha a mesma marca de nascença só que no punho direito a qual segurava o seu inseparável cajado –O próximo ano, creio que teremos mais "escolhidos"!

–Stern, meu filho... Não estou realmente preocupado se teremos mais coelhos "escolhidos" ou não, na próxima páscoa. –Confessou.

–Ah? Como assim? Pensei que estivesse triste...Digo... Fazemos tantas entrevistas, previsões e...Bem...Tudo isso para que apenas três ou quatro lobos solteiros consigam seus parceiros ideias, enquanto existem dezenas ainda esperando por sua alma gêmea. Eu ficaria triste...

–Não cabe a nós controlar a quantidade de coelhos e adentra em nosso território durante a Pascoa, sabe que na vila dos coelhos o processo é diferente.

Stern soltou um suspiro e encarou o horizonte.

–Eu sei... Eles nós temem... São chamados de sacrifícios e acreditam que irão morrer! –O ancião entendeu o grau de raiva que se apresentava na voz de seu filho, afinal o jovem lobo tinha sofrido devido as ideias insanas divulgadas pelo governo coelho, pois seu parceiro coelho –Alam- o renegou de inicio crendo que seria morto e comido pelo o lobo, aquilo gerou uma revolta interna em Stern. Como puderam mentir daquela maneira? Ainda mais, apesar dos anos terem passado desde da Páscoa que encontrara o seu amado, sabia que Alam ainda sentia falta de sua antiga vida na vila dos coelhos, mais precisamente, sentia falta de seus pais que deveriam acreditar que o amado filho tinha falecido nas garras de um feroz e sanguinário lobo... Os pais de Alam nem sabem que, na verdade, são avôs de 3 lindos filhotes (e talvez um quarto a caminho).

–Deviamos fazer alguma coisa! Eles merecem saber a verdade! –Falou Stern agora olhando o seu pai, o xamã dos lobos, que, por sua vez, negou com a cabeça.

–A aliança entre nossos povos se baseia na entrega dos coelhos férteis durante a páscoa e na promessa que os lobos permaneceram na floresta e não influenciarão no modo de vida dos coelhos. Aqueles que foram entregues como sacrifícios, segundo os coelhos, são descartáveis. Devem ser tratados como exilados e serem esquecidos pela a sociedade. Seria como eles deixassem de ser coelhos e passassem a ser um ser sem povo ou raça.

–Isso é horrível! –Rosnou Stern – Dói ver cada ano a chegada de novos coelhos assustados e enganados pelo o próprio povo, unicamente por serem machos e terem capacidade de engravidar... Isso não os faz serem monstros e terem que ser expulsos!

–Eu entendo a sua raiva, meu filho, pois senti a mesma coisa quando conheci o seu pai há anos atrás... Meu coração se estilhaçou ao ver o terror em seus olhos quando nos encontramos pela a primeira vez na floresta. Ele até tentou se matar devido ao pavor de ser devorado... Mas, infelizmente, se tentarmos mudar a situação atual existe a possibilidade da aliança se findar e como consequência não teremos mais coelhos durante a páscoa.

Stern abaixou a cabeça, em parte aceitando a explicação do pai, mas a fúria ainda dominava...Contudo, depois das longas entrevistas com os jovens lobos solteiros, vendo suas esperanças e anseios de conhecerem o amor de suas vidas naquela Páscoa, afinal anos atrás ele mesmo participara daquele grupo, entendia que a possiblidade de quebrar a aliança poderia ser devastadora...

–Meu filho, daremos tempo ao tempo. –Falou o xamã afagando os cabelos loiros do seu filho, ainda o tratando como filhote apesar da idade adulta do lobo –Creio que cedo ou tarde essa situação irá acabar... A vila dos coelhos não pode construir um governo baseado unicamente no medo e mentiras, um dia a verdade virá à tona.

–Assim espero...

Os dois seguiram para o interior da caverna, a preparação para a Páscoa ainda estava longe de terminar. As entrevistas são apenas a primeira parte do processo, depois teriam que pedir auxilio aos deuses do céu, a deusa lua e seus filhos e filhas, as estrelas, para que os guiassem na escolha dos lobos sortudos do ano. Nenhum casal era formado de forma aleatória... Mesmo sem saber daquele ritual sagrado, os coelhos do "sacrifício" teriam seus amados já predeterminados pelos deuses na vila dos lobos. Nunca, até o momento, "a escolha dos deuses" se enganou. Os casais são perfeitas combinações, os lobos confiavam quase que cegamente no destino dos seus deuses celestes.

–Bem, a Páscoa é amanha e temos que...-As instruções do xamã foram interrompidas com o barulho de risadas e potes sendo revirados e coisas caindo no chão. Stern engoliu em seco e se apressou para o interior do túnel que desaguava em espaço amplo, cujas paredes estavam pintadas com desenhos rupestres antigos da época dos ancestrais. Contudo, agora não era só os desenhos de lobos caçando suas presas que dominavam as paredes rochosas...

–Esse é o toque final! –Falou um lobinho de pelagem branca quase que prateada e cabelos loiros analisava a sua "obra de arte" na parede, acariciava o queixo o sujando com tinta colorida que usara para a sua pintura. O seu desenho era uma mistura de figuras de insetos com peixes, na verdade Stern tinha certeza que o filhote teria inventado um novo animal que unisse suas preferências.

–Owen... –Suspirou Stern, aquele era o filho de um dos seus amigos, mais precisamente Cedric e Varg, aquele lobinho sempre parecia estar no centro das confusões que envolvia os seus filhotes, ali não poderia ser uma ocasião diferente.

–Tio Stern! –Falou o menor, rabinho balançando loucamente atrás de si –Veja o que eu fiz! –Apontou para o peixe-borboleta que tinha desenhado –Bonito, não é?

–Er...-O lobo mais velho não sabia o que responder, deveria repreende-lo, pois ali era um local sagrado e não deveria ser usado para pintura de crianças.

–Não! O meu é bem melhor! –Para o desespero de Stern, um coelhinho de orelhas negras e cabelos em misto de loiro com castanho mostrava triunfante sua própria arte: Uma cenoura gigante que ocupava grande parte de uma das paredes. Aquele era Erwin, seu filho mais velho.

–Bah! –Reclamou Owen – Lobos não caçam cenouras! Esqueceu que devíamos desenhar algo que os lobos caçam?! Por isso, o meu desenho é muitas vezes melhor!

–Um peixe inseto não existe! –Contra-argumentou o coelhinho fazendo biquinho –Eles não podem caçar algo que não existe!

–Existem sim!

–Erwin está certo... Eu nunca vi um peixe inseto. –Um lobinho de cabelos ruivos rebeldes interveio, evitando que os amigos brigassem, ali estava Aubert, filho primogênito de Volk e Edgan.

–Você sempre fica do lado dele! –Rosnou Owen para o seu melhor amigo que deu os ombros e exibiu um meio sorriso, como que expressasse que não podia fazer nada a respeito, pois afinal era a verdade.

–Mas eles estão certos! –Agora um novo coelho adentrou na conversa, cabelos prateados se confundiam com a pelagem branca de suas orelhas, aquele era Daly o meio-irmão de Owen –peixes insetos não existem!

–Só por que não foram descobertos ainda! –Reafirmou Owen teimoso, cruzando os braços diante do peito –Aposto que os peixes insetos seriam mil vezes mais gostosos que os peixes normais!

–Seriam gostosos para você! –Daly fez uma careca –Você é que come insetos!

–Eu comia insetos! Digo...-Owen corou embaraçado –Quando eu era um bebê! Isso já faz muuuuuito tempo! Insetos são meus amigos agora!

–Sei...-O coelhinho branco rolou os olhos com aquela infantilidade.

–Pelo menos eu desenhei algo legal e não...O que isso?! –Apontou Owen para o lado da parede onde deveria estar o desenho de seu irmão. Ali se encontrava unicamente escrito na parede "H2O"

–Trata-se da formula química da água! Um elemento essencial para a vida! –Se defendeu Daly corando levemente.

–E lobos caçam água? –Provocou Owen.

–Isso eu queria ver... Lobos caçando a água. –Riu Aubert.

–S-seus idiotas! – Agora Daly estava vermelho que nem um tomate, lágrimas começavam a dominar seus olhos cor de mel.

–Parem de provocar o Daly! –Um lobinho se postou na frente do coelho branco. Ali estava Arturo, segundo filho de Stern, um lobinho de cabelos castanhos encaracolados tal como Alam e com olhos azuis intensos. Apesar de ser o mais novo do grupo, o menor rosnou protetor, pronto para defender seu amigo.

Owen parou de rir, mas um sorriso maroto se fez em seus lábios e deu um enigmático olhar para o seu melhor amigo que piscou divertido.

–Oh...Não...-Erwin segurou suas grandes orelhas de coelho como para se proteger, temendo a nova confusão que aquela dupla de lobos iria fazer.

Owen pegou sua tigela de tinta e jogou em Arturo que não pode desviar, sujando o lobinho totalmente. Aubert aproveitou o momento e também pegou sua tigela de tinta para jogar em Daly, este conseguiu desviar, mas não iria fugir da briga. Logo toda a ampla sala se tornou um palco de uma batalha de tinta. Stern observava tudo aquilo meio que paralisado... Como aqueles filhotes, em poucos minutos, poderiam causar tamanha confusão?

–O que está havendo aqui? –Perguntou o xamã, finalmente chegando ao local.

Os filhotes pararam subitamente, se estavam sujos antes agora estavam quase que totalmente irreconhecíveis por baixo de camadas de tinta colorida.

–Ops...-Riu nervoso Owen, Aubert tentou assobiar simulando inocência. Daly resmungava baixo enquanto tentava limpar suas orelhas, Arturo sacudia o corpo, tentando se livrar da sujeira, mas acabara por sujar mais o grupo de amigos. Erwin tinha escapado e agora se escondia atrás de Stern.

–Pai...E-eu...-O lobo não sabia muito bem como explicar, a situação meio que lhe escapou do controle.

–O que se trata tudo isso? –Inquiriu novamente o ancião, para a surpesa de todos Owen levantou a mão –Pode falar, filhote.

–Nós pintamos coisas que os lobos caçam! –Informou o menor com orgulho, parecia alheio que na verdade estava muito encrencado.

–Coisas que os lobos caçam? –O ancião olhou para as paredes cobertas de desenhos de peixes, cenouras e ...Peixes-insetos?

–Sim! Por que os desenhos antigos estavam errados! –Continuou a explicar Owen, confiante –Olhe! –Apontou para uma das paredes –Esse lobo parece estar perseguindo um coelho! Isso é errado!

Stern não pode conter um sorriso se formando em seus lábios, de certa forma, entendia a revolta do lobinho, atualmente lobos tinham abandonado seus hábitos de caça que envolviam matar outros povos, tal como os coelhos. Para aquelas crianças, essa antiga realidade era estranha e incorreta, tendo em vista que seus pais e irmãos eram coelhos.

–Bem...-Para a surpresa de Stern o seu pai emitiu uma gargalhada –Você está certo, pequeno lobo... Essas caçadas estão erradas.

Owen sorriu triunfante. Os outros filhotes pareciam relaxar um pouco em relação a possível encrenca que teriam se metido.

–Pai...-Stern interpôs meio confuso –As pinturas rupestres...

–Elas são um legado de nossos ancestrais, para nos fazer lembrar de como erámos antigamente...Mas nós não somos mais esses tipos de lobos. Nossos pequenos filhotes aqui atualizaram as nossas paredes sagradas. –Falou o xamã se abaixando e pegando o seu neto, Arturo, no colo – Nossa realidade mudou.

Stern sorriu, de fato, a imagem de lobos caçadores terríveis devem ser reformulada, talvez aos poucos a visão sobre o povo lobo também se altere dentro da vila dos coelhos e por fim eles poderão viver felizes e em paz.

–Os pequenos irão querer ajudar nas preparações para a páscoa? –Perguntou o xamã ganhando gritinhos de alegria do grupo de filhotes.

Stern pegou seu filho coelho no colo, parecia que tinham ganhado mãos extras para o importante trabalho.

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