6. Zabaglione



Não consegui dormir aquela noite, fumei dois baseados que não me acalmaram, andei pelo meu apartamento e resolvi fazer uma busca sobre a vida de Giovanni. Entrei em seu Facebook, cacei fotos com familiares ou qualquer coisa parecida, não tinha nada. Em lugar nenhum, nem em seu Instagram que postava toda sua rotina, era quase um anônimo. Comecei a me perguntar o porquê de ter julgado que Giovanni seria uma pessoa inocente sendo que eu nem conheço ele, temia agora, mesmo que tarde, que ele possa ter saído e juntado as peças que levava até mim, e pior ainda, até Luigi. Não podia sair essa hora para a casa de um traficante e não podia mesmo sair atrás de Giovanni, ele já tinha conseguido meu número, o que me deixava mais receoso. Pensei em ligar para Luma, mas isso iria comprovar para ela que eu quebrei a perna dele, então só aguardei.

Qualquer coisa.

Uma batida na porta, uma chamada de um número desconhecido ou uma mensagem com algum endereço. Não recebi nada, e nem ao menos sei dizer se isso era melhor que o silêncio que ficara no meu quarto, aquela sensação de dúvida, de vazio...

Olhei pra fora da janela, Itália continuava animada com suas buzinas e música alta vindo de barzinhos, talvez eu devesse descer, tentar encher a cara e encontrar um novo amor, um novo destino, e largar todo esse foco pelo dinheiro. Mas eu não estava aqui para essa bobeira de sonho adolescente, de virar um modelo fracassado aos trinta anos, ou tentar descobrir meu dom artístico que nunca seria valorizado. Ao meu redor, e digo ao meu redor mesmo, todos no prédio eram fugitivos, drogados, prostitutas ou donos de cassico clandestino, o que me deixava livre de possíveis olhos tortos certo? Não. Eles julgavam apenas uma coisa.

"Tão novo, por que está nessa vida?"

Justamente por eu ser novo. Gostaria de responder, mas dou um sorriso e eles apertam minha bochecha ou algo assim, era como se eu fosse um mascote. Nunca tivémos brigas por ali, nem nada, imagina agora se eles soubessem que além de prostituto eu estava metido com um traficante o qual eu não sabia sua andanças para conseguir toda aquela droga que ele arrumava.

Talvez Luigi merecesse, caso Giovanni estivesse disposto a procurar uma vingança, e talvez até eu merecesse, na verdade ainda mais. Esse jogo não é justo, quando falamos de dinheiro. Não mesmo. Estamos todos aqui por um propósito, e quando alguém joga contra você, acima da defesa, você procura atacar o dobro.  Sentei na janela colocando meus pés do lado de fora e soprei fumaça para cima do céu estrelado, sentia meu corpo vibrar ainda com todo o sexo recebido e toda a droga inalada, mas a maconha começava a entorpecer meus sentidos e me deixava menos apavorado. Era só mais um drama italiano.

O sol anunciava que não tinha morrido por overdose mais uma vez, peguei o celular e teclei o mesmo número que me enviara a mensagem. Após alguns minutos Giovanni atendeu, e não disse nada além de um bistrô perto da catedral, que era lotado. Disse que estaria lá em trinta minutos e desligou, tomei um banho rápido e coloquei minha bermuda bege e meu blusão jeans. Saí levando o dinheiro para a comida e passagem, e uma navalha no bolso.

Estava um clime fresco, que não condizia em nada com o sumiço de Luigi e minha possível morte daqui há algumas horas, abri o celular novamente e não tinha nada de nenhum dos dois, liguei para Luigi e novamente caiu na caixa postal.

Quando atravessei a praça da catedral, após dez minutos, entrei no pequeno bistrô com mulheres e crianças famintas, todos bem vestidos e elegantes, seguravam revistas, cheiravam a perfume doce e apresentavam suas notas e mais notas para pagar tudo o que tinha consumido. Não era um lugar para pessoas como eu, sendo assim todos me olharam com curiosidade, como se eu estivesse em exposição ou algo assim, como se eu fosse um animal exótico. Passei pelas mesinhas, pelos olhares principalmente, e encontrei Giovanni lendo uma dessas revistas e comendo um zabaglione decorado.

Sentei de frente para ele e o mesmo continuou sem dizer nada. Terminou primeiro o texto que estava lendo e fechou a revista.

Giovanni usava um óculos da Prada, um blazer da Moschino e anéis de uma marca que eu não conhecia, pegou um pouco do doce e levou a boca, deu um sorriso falso para mim e terminou de engolir. O gorro preto era local, possivelmente algo feito por uma artesã de rua, tinha sua inicial de nome e sobrenome. GH. O cabelo loiro fugia por baixo, e os hematomas por todo o rosto nem ao menos tentavam se esconder. 

-Buongiono Ângelo! - ele diz quando termina de comer. - Come te la passi?

-Bem, obrigado - respondo. - Por que me chamou aqui?

-Que pressa! - exclama, enfiando mais uma vez a colher na taça. - Sabe porquê escolhi esse lugar, angelito? - dou de ombros e olho ao redor, era aconchegante, quente e fazia parecer que era noite, mais parecia um bar de verdade do que um lugar de família que faz doces. - Pelo zabaglione, claro! 

Ele me oferece e recuso, estava sendo debochado como sempre, aquele sorriso por baixo dos lábios cortados, os olhos expressivos mesmo com o roxo no esquerdo.

-É um doce feito de gemas de ovo, batidinhas leves, nada muito agressivo... Açúcar, que minha mãe costumava a fazer com aquela bem grossa, quase um torrão, e vinho Marsala. Sim, um doce delicado e feito com vinho, que minha mãe fazia para uma criança - ele ri e come mais um pouco. - Delicado, sutil e para adultos, creio eu. Sabe com quem parece?

-Você?

-Não, com nós dois - explica. - Parece  um típico doce feito para os babys.

Um calafrio percorre meu corpo. Eu estava sem a corrente, como ele sabia sobre...

-Esteve na maldita Açúcar! - Giovanni bate na mesa, fazendo com que olhares se virem para nós. Tira o gorro da cabeça e coloca em cima das pernas, o doce mole chacoalha de um lado para o outro. Então era sobre isso a conversa? Sendo assim, onde estava Luigi? - Você e Ramón Carrera.

-Como soube?

-Ora essa! A fofoca é rápida, ainda mais em nosso meio, certo? - ele come mais um pouco. - Você não acha que é muita pretensão da sua parte, aproveitar que eu saí por alguns dias e roubar meu cliente?

-Não roubei ninguém, ele me escolheu.

Giovanni solta uma risada alta e exagerada, novamente fazendo o doce balançar na taça. - Crê que irei acreditar em você? Que chegou ontem na Medusa com olhinhos brilhantes como se tivesse ganhado um prêmio... Não. Não irei...

-Fale com Ramón se for o caso, se me chamou aqui só porque foi trocado, poderia ter me dito por celular - finalizo, ameaçando levantar.

-Não, esses assuntos não podem ser falados por celular, ainda mais quando a Itália inteira souber que você participou de uma orgia com menores de idade - ele ameaça me fazendo voltar para a cadeira. 

-O que está dizendo?

-O que você ouviu, Baby Boy.

Giovanni termina seu doce e coloca o dinheiro em cima da mesa. Pega sua muleta e manca até o meu lado, se aproximando do meu ouvido.

-Se eu cair, você também cai, filho da puta - ele cochicha e sai do bistrô.

O garçom se aproxima deixando outro zabaglione, dizendo que Giovanni o deixou de presente para mim. Encaro o doce amarelo com um biscoitinho ao lado no prato. Ele sabia de tudo na Açúcar, e ainda mais, estava disposto a ser duplamente processado caso eu não desistisse de Ramón. Imagino meu rosto no jornal, e de todos aqueles homens lá dentro, seria o maior escândalo nacional e me impediria de ter qualquer emprego em qualquer canto do globo. Uma lágrima desce pelo meu rosto, de arrependimento e de medo, mas a seco, pois era muito tarde para voltar atrás. Seguro a colher, como um pouco do zabaglione e saio do bistrô, em direção a Luigi, aquela situação me levou ao extremo, e Giovanni precisava desaparecer.

Não o achei durante toda a tarde, e nem quando liguei inúmeras vezes enquanto estava no camarim da Medusa. Me arrumei para novamente mais um dia de trabalho, e mais um dia com a quantia a ser batida sem o número de Giovanni, comecei a cogitar se tinha sido uma boa ideia quebrar sua perna e amassar seu rosto. Passo um pouco do pó na gengiva e saio, procurando por Luma.

-Precisamos conversar - digo, desesperado.

-Na verdade, eu preciso conversar com você - ela interrompe fechando a porta atrás de mim. Vestia uma blusa apertada escrito "DOLL" em letras delicadas e usava seu cabelo vermelho escovado para trás, parecia uma santa. - Minha família está na cidade.

-Bom...

Ela continua com os olhos arregalados.

-Isso é...

-Péssimo! - grita de repente e se senta de frente pro espelho, espalhando a sombra nos olhos com rapidez. - Ângelo, eu nunca lhe contei mas... Eles não sabem - Luma fazia esforço para segurar as lágrimas, que em seguida caíam mesmo assim. - Não sabem que eu sou... puta! Pois é isso que eles vão ver, isso tudo.

Ela aponta para seu corpo e seu rosto, numa tentativa de me dizer que aquele conjunto inteiro era como sua família enxergava uma "puta". Sendo assim, ela me explicou que namorava um jogador de futebol, que todo o dinheiro que tinha vinha dele e dos seus ensaios como modelo para uma revista em ascenção. Eles moravam na parte mais pobre que possa existir desse lugar, e vieram passar as férias agora, de repente, e programavam visitá-la amanhã, com seu namorado jogador de futebol e suas revistas em que apareceu.

-Meu Deus! - exclama. - Não sei o que faço.

-Não aparece.

-Eles não vão aceitar isso... O meu pai está desconfiado - diz Luma colocando a mão no rosto, as unhas grandes e decoradas com pedrinhas brancas. - O que faremos?

-Nós...

-Sim, nós.

-Sim, claro - afirmo. - Desculpa. Posso dar um jeito sim... - começo a pensar em Ramón, sim, ele daria um jeito. - Mas você não pode me fazer perguntas.

Ela assenti e não falamos mais disso durante toda a noite, enquanto Luma fazia sexo com homens e mulheres e eu igualmente, mas fugindo de onde Lorenzo costumava a ficar. Onde estava Ramón? Liguei para ele duas vezes e nada de me atenter. Todo mundo tinha decidido sumir hoje! E para piorar o dia, Madalena marcou uma reunião assim que a boate fechasse, e lá estávamos nós sentados nas cadeiras de frente para aquela senhora de um metro e meio no palco, com Pietro bajulador ao lado, com seu cabelo raspadinho e terno cinza.

-Bom, crianças, quero apresentar para vocês o mais novo integrante da Medusa - ela aponta para a porta, onde Juan estava encostado.

Juan. O menino que transei no Açúcar. O Juan de quinze anos. Ele sorri pra mim e dá uma piscadinha, a luz azul da boate refletindo em sua pele negra, se aproxima do palco e sobe, fazendo uma reverência para nós. Todos aplaudem animados, mas continuo boquiaberto. Que merda ele estava fazendo aqui?

-Juan é experiente, felizmente saiu daquela empresa que conhecemos bem, de homens porcos que infelizmente tentam tirá-los de mim - ela diz. - Mas, está aqui hoje e irá treiná-los para novas atrações e coisas parecidas.

Como assim ele tinha saído da Açúcar? Continuo o olhando de cima a baixo, ele encarava Madalena. 

-Foi uma indicação pessoal do próprio Giovanni - comenta Pietro. - Então, estaremos em boas mãos.

-E em boas pernas, braços, bunda... - brinca Juan.

Todos riem, e eu não conseguia acreditar em como aquela cena só piorava. Juan era conhecido do Giovanni, estava aqui para me espionar? Ele me olha sorrindo, mas não um sorriso inocente, era provocativo, desafiador, e eu continuei sério e dando as palmas com o resto da equipe. 

Juan seria mais um empecilho, ao me ver com Ramón, basicamente seria os olhos de Giovanni ali dentro. Não era possível que ele tinha desistido de tudo e continuava vivo, começavam a fazer parecer fácil sair do Açúcar. E porquê sair daquele esquema, podendo viver a vida com um deles sem precisar se desgastar na barra de ferro ou em cima de dezenas de homens desconhecidos. Tinha inúmeras perguntas para fazer para ele, e tinha medo de todas as respostas que ele podia me dar.

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Dias Depois

"Ele está morto?!"

"É o que parece, não é?" responde Giovanni desesperado, andando de um lado para o outro.

"O que a gente vai fazer?" pergunto.

Ele me olha e continua em silêncio.

"Precisamos escolher alguém para parecer o suspeito".

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