14. Abutre

Os dias se passaram dolorosamente, o gosto amargo do luto descia pela minha garganta como a fumaça de um cigarro barato. O céu cinzento acima de nossas cabeças demonstrava o pesar que Ramón nos deixara, a dor que perfurava meu peito e me deixava gritando pela madrugada em um terrível pesadelo recente. O rosto ensanguentado e os olhos arregalados num prenúncio de morte que me deixaria a beira do abismo e na mira dos olhos.

Os olhos. Por onde poderia estar os vigias que se aglomeravam atrás de nossas carnes frias no asfalto, como um abutre mirando com fundos olhos pretos e garras de lâmina.

Quando foi que viramos a presa? Quando foi que fomos servidos para milhares de pássaros no ninho como minhocas? E sei, fomos enganados, quando foi que descobrimos e nos deixamos levar? Jamais saberia responder qualquer questão enquanto eu me entorpecia com droga, ilegal ou farmacêutica, eu me distanciava mais da realidade do que um dia meu corpo foi para esse mundo.

Tudo o que eu posso lhe falar agora e amanhã, é que mudei de planos desde a última vez que nos falamos. Desde meu último copo de vinho ou o último macarrão instantâneo.
Desde que andei de carro ou de ônibus, eu posso dizer que pensei em tomar o mundo pra mim pela manhã e o deixei para outro quando a noite chegou.

Chorei três vezes por dia desde que os repórteres me abordaram na rua lotada, pois cada parte do meu corpo que já havia sido usada, parecia ser de novo. Estava sendo explorado por dezenas de abutres sedentos preocupados com o escândalo de pedofilia e prostituição. O sexo entre jovens e velhos deixava suas línguas afiadas, e dessa guerra inteira, como sempre, ganha quem só a assiste.

Eram todos peões no jogo, desejando um xeque-mate sem rei. Eu, Giovanni, Juan, Lorenzo, Pietro, Madalena... Até mesmo Lucca. Era insano e perturbador, saber que todos, sem exceção, eram além de possíveis assassinos, e sim, possíveis ganhadores.

Mas no terceiro dia, após a cerimônia de velório e enterro de Ramón Carrera com dezenas de artistas e influenciadores, a pergunta chave chegou ao jornal: Estaria Lorenzo Nero envolvido com a morte de Ramón Carrera?

Com ela, uma apresentação de detalhes da amizade, de novas informações falsas e verdadeiras sobre a Açúcar e a última polêmica encerrando o jornal. Qual será o destino dos sugar babys?

Crianças e adolescentes que caíram no mundo da prostituição e agora estão sendo caçados por toda a polícia nacional para que cessem de vez com o esquema apavorante. Como iram quitar suas dívidas e ajudar suas famílias? Naquela falsa justificativa em que estamos vendendo nossos corpos por um bem maior. Assim como Ramón disse que o baby de Lorenzo ajudava a família, eles preferem acreditar na bondade falsa do próprio coração que ouvir o gigantesco lado ruim.

Eu fui para minha casa nova após a liberação da perícia, e não atendi as chamadas durante um dia inteiro, colei as fotos de todos na parede do meu quarto, que antes tinha sido testemunha de uma cena cruel. Listei alguns motivos por matarem Ramón e alguns simplesmente não conseguia pensar em nada. Olhava a planilha feita e ela não me respondia nada, nem apontava um outro caminho a seguir.

Foi quando recebi uma ligação estranha e fez alguns motivos surgirem depois.
Lucca. O mesmo que me ameaçou sobre Luigi. O que sabia que eu tinha quebrado a perna de Giovanni. Como eu poderia ter ignorado Lucca no jogo?

"Ângelo?! Bom, sei que não nos falamos desde... enfim, você sabe. Mas tenho algo interessante pra você" ele comenta do outro lado apreensivo.

"Aonde está?"

"Em um lugar que você sabe bem, mandarei o endereço por mensagem".

Desligou sem dizer mais nada, aguardei sentado e roendo as unhas. O endereço enviado fez o meu coração parar e minha boca secar. A casa de Luigi.

***

O silêncio pelas ruas fez meus passos ecoarem, parecia que de trás de um muro ou arbusto sairia alguém com uma câmera me disparando flashes infinitos e fazendo perguntas comprometedoras. Entrei no ônibus de cabeça baixa e comecei a bolar uma relação que pudesse ligar Lucca a Luigi. Passei todo o trajeto querendo acreditar que era mentira, que só podia ser coincidência. Mas minha intuição me traiu.

Quando cheguei, a primeira coisa que vi ao pé das escadas de acesso ao hall do prédio foi Luigi e Lucca fumando. Desci do ônibus e os dois ficaram ainda mais tensos, com o semblante fechado e uma hesitação ao se mover. Luigi nada disse quando atravessei a rua, nos deu espaço para entrar e chamou o elevador.

A primeira fala só foi proferida quando a porta da casa dele foi trancada.

-O traficante e o prostituto. Dá quase uma fanfic - diz Lucca sentando na cama vermelha de Luigi. - Então esse seria mais um escândalo vindo de Ângelo Castelo.

-O que você quer? - questiono, extremamente sem paciência.

-Que você confesse que matou Ramón Carrera.

-Não fiz isso com ele, é impossível...

-Não estou falando com você Ângelo - ele levanta os olhos para Luigi. - Estou falando do seu namoradinho.

Luigi engole em seco.

-Ah! Você não sabia? Ele estava metido indiretamente com a Açúcar, é um dos traficantes mais procurados do meio homossexual. E você sabe bem o porquê - Lucca se levanta e chega perto dele. - Um rostinho lindo com um baseado de presente. Sonho de toda sogra.

-Está mentindo - tento ao máximo acreditar no que digo e passar certeza, mas minha voz se enfraquece.

-Estou, Luigi?

Todos ficamos em silêncio, o que dizia muito.

-Merda... - dou voltas pelo quarto/cozinha e entro em outro cômodo. A sala de estar de Luigi, com todos seus vinhos caros e pinturas italianas. - Eu acreditei em você! - grito para que minha voz se agarre as paredes.

Os dois entram na sala acoados, enquanto Lucca se senta no sofá, Luigi me oferece uma taça de vinho, ao qual jogo no chão. Podia sentir a fúria crescendo e se entrelaçando ao meu sangue, corroendo meus ossos e me deixando refém, pois eu sentia trovoadas dentro do meu peito e queria queimar Luigi.

-Eu não sabia. Não sabia que você saía com Ramón e essas coisas...

-Mas sabia da Açúcar.

-Igualmente você, Ângelo - ele rebate.

-Eu estava perdido! Um idiota por achar que aquela... coisa... era a única forma de conquistar tudo. Eu fui um tolo, Luigi - as lágrimas grossas descem pelo meu rosto, e eu tentava ao máximo evitá-las. Mas as imagens da cerimônia voltaram a minha cabeça, os homens de terno em volta da enorne gaiola e eu deitado com milhares de jovens no chão.

Sento na poltrona próxima e respiro fundo, não podia ser Luigi, eu confiava tanto nele.

-Eu somente era o transporte de drogas para eles, sinto muito.

-Eles estão suspeitando de mim, porra!

-O que quer fazer? - ele se aproxima acariciando meu cabelo.

-Descobrir quem matou ele - respondo, afastando sua mão.

Respiração ansiosa e um silêncio demorado.

-Tem algum chute de quem possa ter feito isso?

-Sim.... você - digo.

Levanto da poltrona e saio em seguida. Eu não queria mais ficar no mesmo espaço que os dois, pensar em como se conheceram, se já transaram, se já se drogaram juntos... Eu sentia nojo de Luigi e uma raiva inexplicável. Não me restava dúvidas de que eu fui enganado e que o mesmo tinha assassinado Ramón Carrera, por ciúmes, por vingança, ou por qualquer merda que esses viciados julgam no meio do crime. Eram eles que estavam nos olhando. Como sempre. A droga movia o ramo, e caso você não dança, você morre.

Simples.

Cheguei novamente a minha casa e avaliei todas as medidas que precisaria tomar. Ignorei as ligações de Luigi e deixei que a noite findasse dando lugar para a manhã, foi quando fiz a denúncia para a polícia. Luigi era o assassino de Ramón, e o mundo precisava saber, mesmo que isso me doa muito.

Fumei maconha a manhã toda enquanto chorava no chão do meu quarto me perguntando como vim parar aqui novamente, e tudo se entrelaçava nas fumaças. Os olhos de minha mãe se misturaram com o de Luma, e o jardim de minha casa se moldou no mesmo segundo no Medusa Club. Meu coração batia devagar e sonolento, estava quase pegando no sono, mesmo que imaginasse os policiais a essa altura algemando aquele que escolheu me trair.

Não durou muito para eu receber a ligação da oficial Antonela.

"Sim?"

"Ângelo, você conhece o Luigi Falcoccini?" ela pergunta enquanto eu escutava pessoas falando ao seu redor e fotos sendo tiradas.

"Um pouco"

"Bom, o suspeito está morto".

Deixo o celular cair e sinto uma fisgada no peito, todo o meu ar some assim que chega ao pulmão... E a imagem de Luigi dança na fumaça, e depois surge Ramón. Dois... caçados por abutres com olhos expiatórios. Dois...

"Ângelo? Está aí?"

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