Terceiro
Foram poucos minutos até que a barraca se tornasse um local abafado, quente e desconfortável. Contudo, ou era aquilo ou estariam expostos a um ataque repentino de infectados. Manter a barraca totalmente fechada era essencial; assim, a luz da lanterna de bateria fotocarregável não chamaria a atenção de nenhuma alma viva ou semiviva. Porém, os bons motivos não impediam que o suor ensopasse a roupa dos dois, nem que as pedras por baixo do fino colchão doessem as suas bundas.
Dom mexia em seu celular, envolvido pelas imagens holográficas que eram transmitidas para além da tela fina do aparelho. Mas a cada estalo do capim ao redor da barraca, dava um pulo de susto e iniciava uma procura atenciosa por qualquer ruído que fosse.
— Não se esqueça que ainda tem vida lá fora, garoto — Pietro se divertia com o medo do pequeno. — Larga de ser cagão, são só lagartos, insetos, roedores… Nem tudo é perigo.
E por mais que o homem tentasse acalmá-lo, Dom insistia em se assustar por pouca coisa. Parecia um ato reflexo; ruídos levavam, automaticamente, a tremeliques e respirações aceleradas.
— Gosta de filmes de zumbis? — o velho perguntou, tentando mais uma tática para apaziguar os nervos do menino.
— Gostava.
— De qual?
— A saga dos Ciborgues Zumbis.
Pietro balançou a mão no ar, como se rejeitasse o gosto cinematográfico do garoto.
— Essas baboseiras de hoje em dia não podem ser considerados filmes — alfinetou. — Já ouviu falar de Guerra Mundial Z?
— Não…
— Pois é… Aquilo sim é um clássico do cinema. Foi lançado mais de uma década antes d’eu nascer. Aquele filme é uma lenda. — Dom sorriu, tímido como sempre. — A natureza é uma assassina… Frase bonita, não? Bonita e verdadeira. O planeta tá o tempo todo tentando testar a gente, botando provas pra ver se nossa espécie é digna de continuar existindo. É um jogo, um grande jogo, que cê precisa mover a alavanca certa pra conseguir escapar. — Os olhos do menino brilhavam diante da luz da lanterna. — Vão achar a cura dessa doença, uma hora ou outra. Faz parte do jogo, a mãe natureza quer que encontremos a solução do problema. A gente só precisa sobreviver tempo o bastante para que ela nos dê a pista certa, para que a carta salvadora seja colocada em jogo… — Pietro sentiu a barriga roncar. — Merda, não pensei que não daria para comer aqui dentro. Cê aguenta até amanhã? — Dom afirmou com um aceno. — Ótimo. Amanhã a gente faz o almoço mais cedo, aí dá pra fazer a janta antes de anoitecer.
— Quando vamos chegar na minha mãe?
— Amanhã mesmo, de tardezinha. É a hora que vamo chegar em Inhumas.
O garoto se animou.
— Tô louco pra ver minha família… — Dom moveu a boca, como sempre fazia quando se preparava para falar algo. — Onde tá a sua?
E com isso, a pequena alegria estampada na face do velho se desfez. Encarou a lanterna, desejando que a luz penetrasse por seus olhos até onde estivesse alojada aquelas lembranças e as queimassem como um filme fotográfico antigo diante do sol.
— Eles… — começou a dizer. — Bem, eu… Eu tinha uma esposa. Valentina, o nome dela. Era uns anos mais véia do que eu, e o tempo levou isso em conta quando decidiu separar nois dois. Só agradeço por ela ter ido antes disso tudo começar a acontecer. Tivemos dois filhos, um casal, Conrado e Pilar. Os dois eram muito inteligentes, sempre desejaram ser alguém na vida. Conrado era mais ambicioso, se arriscava mais. Já a Pilar era mais estabanada, tadinha. Mas ela sempre correu pra não ficar nas costas dele… Enfim… — Sentiu os olhos marejarem e sabia que Dom também tinha percebido sua emoção. Mirou o garoto com os olhos molhados, e sorriu, tentando disfarçar. — Os dois moravam na capital com suas famílias. — Abaixou o rosto, admirando o nada. — Meus netos… Não tive nem a chance de me despedir como queria…
— Eu sinto muito.
De repente, um barulho adentrou a barraca, um pouco mais alto do que os ruídos que antes assustavam Dom. O menino respondeu ao som com um susto a altura, exasperando-se todo; os globos quase pularam das órbitas. Pietro, de início, também se alarmou. Porém, logo percebeu que não se tratava de uma ameaçava e, então, começou a rir do menino, como um irmão ri do malfeito de outro.
— Calma, garoto! — o riso se intensificou com a expressão de vergonha de Dom, ao perceber que não passava de um alarme falso. — É os bois. É os bois… — esclareceu Pietro. — Não se preocupe, cê não vai morrer essa noite.
°•°•°
A manhã chegou tão logo os dois conseguiram pregar os olhos. Uma manhã ensolarada, tão clara que Pietro duvidava que houvesse no mundo um infectado capaz de batalhar contra ela. A manhã anunciou o clima em que se seguia o dia; calmo, caloroso, pacífico…
Como tinha planejado na noite anterior, Pietro cozinhou o almoço mais cedo, para que desse tempo de estar com fome antes que o crepúsculo chegasse e, assim, poder ter duas refeições diárias. Afinal, não queria pegar uma desnutrição no meio da viagem, Nossa Senhora merecia um romeiro de pele corada diante de seu altar.
A viagem seguiu seu cronograma como planejado. Os único empecilho, fora uma brisa forte contra o caminhar dos animais, fazendo com que se esforçassem mais para manterem o ritmo. Porém, foram recompensados pelo esforço com paradas mais generosas, em sombras fartas e beiras de rios cristalinos, além de capim mais verde que a copa das árvores naquela estação. A brisa, por mais que refrescasse do sol escaldante, também atormentou Pietro, que via a todo momento seu chapéu tentando fugir, alçando vôo como um filhote de pássaro rebelde.
— E então, como é sua casa? — perguntou Dom, em certo ponto da viagem, bem mais animado do que no outro dia. — Cê tem mais bois lá?
— Não… — Pietro se deixava contagiar pela alegria do garoto. — Mas tem muitas galinhas, pato, um caso de perus, alguns cavalos… A casa é velha, foi construída em 1997 pelo meu avô.
— Quase um século! — admirou-se.
— Sim, é bem bonito, não é, rapazes? — disse, conversando com os bois. Sorria, enquanto segurava o velho chapéu, que balançava diante de mais uma brisa forte.
— Já na chácara quase tudo é novo — Dom se mostrava cada vez mais um caboclo bom de prosa. — A casa é grande, tem cinco quartos grandões. Mas o lugar que eu gosto mesmo é a represa — falava, com os olhos cintilantes. — Na beira da represa tem uma paiol… Na verdade, é uma casinha de guardar os trem que a gente quase não usa, mas de vez em quando meu padrasto usava como paiol. A gente também usa como casa de pesca… Gosto muito de lá.
— Casa de pesca? E cê lá sabe pescar?!
O menino apertou os olhos, como se tivesse acabado de escutar a pior das ofensas.
— Já peguei uma traíra desse tamano! — levantando os braços, o menino indicou o tamanho do peixe, afastando bem as mãos.
Era o que Pietro precisava para que mais uma piada fosse feita:
— Olha, pelo menos já sabe mentir que nem um pescador!
E assim foram pelo resto do dia, parando unicamente para fazerem a segunda refeição do dia, como Pietro havia prometido. A promessa de chegar na próxima cidade antes do anoitecer foi outra que o velho também conseguira cumprir. Antes que o sol se posse, bem no horizonte, começaram a surgir os prédios e casas da cidadezinha. Muitas construções antigas, mas também muita arquitetura nova, das últimas décadas.
E junto às casas, emergiu também o alarde. Era a primeira cidade que Pietro teria que cruzar se quisesse chegar ao seu destino; uma sensação ruim começou a rodeá-lo. Olhou seus bois, Barão e Selvagem também já haviam percebido que o terreno não era seguro, suas respirações e seus olhares desconfiados demonstravam bem isso. Observou também o asfalto, todo salpicado de manchas escuras de sangue seco, que não tardariam em evidenciar suas colônias de bactérias fluorescentes assim que a lua começasse a reinar solitária no céu. Manchas grandes, espessas, antigas e recentes. O odor ácido de carne infectada começava a ser trazido pelo vento, anunciando que a cidade era um ninho de destruição e morte.
Pietro olhou em seu celular; tinha uma hora até que o sol de pusesse totalmente. A seriedade o tomou.
— Tenho que arrumar minha barraca daqui a pouco… Ainda falta muito pra chegar na sua casa?
A felicidade de Dom supitava de seu interior.
— Tá quase chegando! É antes da cidade, só mais uns minutinhos. A gente tem muitos quartos, se quiser eu falo pra minha mãe te deixar dormir lá.
Continuaram andando, e os minutinhos do menino acabaram se transformando em meia hora, até que o carro de boi entrou pela porteira da chácara. Desceu uma pequena ladeira de cascalho, no qual a estrada era demarcada por dois trieiros paralelos formados com o passar das rodas dos carros durante anos; tantas vezes, que o capim se recusava a crescer, pois sabia que seria esmagado pelos pneus. No fim da ladeira, logo após onde o terreno se planificava, a chácara. Dom não tinha exagerado ao dizer que sua casa era grande; porém, além de tamanho, possuía uma beleza que só as construções contemporâneas possuíam.
Na porta da frente, uma pequena escada de três degraus dava para uma grande varanda, que cobria toda a parte anterior do casarão e se estendia para os fundos, dando uma volta quase completa na casa. Na frente da casa, uma grama verde, porém mal cuidada, tampava todo o chão, onde cresciam grandes palmeiras e pés de gueroba e coco-da-baia. Ao lado da casa, um curral que, Pietro sabia reconhecer, não era usado há um bom tempo. Era um lugar bonito de se admirar, que merecia um tempo maior de apreciação; contudo, o sol corria para se esconder atrás das serras, o que fazia a ideia de ficar ali fora, em uma chácara tão próxima da cidade, a pior opção que existia.
Dom mal esperou que os animais parassem, para que botasse os pés em solo conhecido. O menino de nada lembrava o garoto assustado e retraído que tentara roubar comida do velho; tinha até se esquecido momentaneamente que havia deixado para trás os corpos de seu pai e de sua tia. Mas Pietro não podia julgá-lo; a alegria de estar em casa era revigorante.
O homem desceu do carro. Dirigia-se para seus bois, para tirá-los das amarras, quando percebeu que o menino volvia-se para a casa, ansioso demais para que pudesse esperar.
— Aguardem um instantinho, rapazes — ele pediu aos seus bois, voltando para o carro e se apossando de sua espingarda; não deixaria ela longe, como tinha feito quando encontrara com Dom. — Me espere, garoto!
Já bem adiantado no trajeto até a escada da varanda, Dom o ignorava. Tinha atenção apenas para seu lar, para a sua família que o esperava. Afinal, já fazia quatro dias que o menino deveria ter chegado, seria uma grande surpresa para todos. O menino finalmente…
Os bois se agitaram, despertando a curiosidade de Pietro. Ele olhou o céu, a escuridão ganhava espaço, olhou para o garoto depois, que já dava passos pela escadinha. A porta da sala estava aberta, escancarada.
— Dom… A quanto tempo você não vê sua mãe?
— Tem uns quinze dias… — respondeu alto. — Mãe! — ele chamou, sem encerrar seus passos.
Além da porta, não era possível ver nada dentro. Apenas o escuro, como se a entrada fosse o portão para a imensidão do espaço.
— Dom, espere!
Porém, sobre a madeira da batente da entrada, com o sol inteiro atrás do horizonte, Pietro viu. E no instante em que viu, gelou.
— Dom, pare!! Para! — começou a correr até o menino, que, por uma ajuda divina, obedeceu-o e parou, virando novamente para ele, com uma expressão confusa. Os olhos do velho não sabiam para onde olhar; para a face desentendida de Dom ou para as manchas azuis que infestavam toda a sacada? — Sai daí! Saí daí!
E como tentáculos vindos diretos do inferno, Pietro viu duas mãos surgirem da escuridão de dentro da casa. As mãos tinham dono, ou melhor, dona. Uma mulher saltou em direção ao garoto, o som estridente e rouco saindo de suas gargantas infestadas de bactérias, olhos já luziam o intenso azul, assim como a saliva que gotejava pelo canto de seus lábios putrefatos.
Dom gritou, consumido por um pavor súbito. Mas a mulher não o alcançou de primeira; aqueles seres perdiam todo o senso de direção, de equilíbrio e de autopreservação, tornando-se, em poucos dias, uma espécie de máquina sem controle, porém bastante perigosa. O ser tentou se levantar assim que viu seu golpe inicial falhar, com todos os instintos preparados para ferir o menino até que se cansasse. Dom, com os olhos arregalados e a expressão de desespero ainda mais nítida do que quando Pietro o encontrara na estrada, encostou-se em um dos pilares da varanda, preparando-se para a morte iminente. Encarou o que um dia fora sua mãe, fitando os olhos fluorescentes e sem vida. A infectada gritou, um grito esganiçado, mostrando a língua azul e os dentes já acinzentados.
Porém, quando se preparava para o segundo bote, o estrondo ecoou pelas serras onde o sol fazia de cama. E parte da mandíbula do bicho estourou com o impacto da bala. A face fora dilacerada; queixo, lábio inferior e parte da bochecha não existiam mais. A mulher girou o corpo, olhando para Pietro, que permanecia com a arma apontada, pronto para o que fosse preciso. Com mais um grunhido demoníaco, a mulher fez menção de descer os degraus para atacar o seu agressor, mas antes que concluísse seus desejos primitivos, Pietro apertou o gatilho novamente, acertando em cheio a sua testa.
A infectada rolou a curta escada, e descansou sua alma perturbada assim que seu corpo se aconchegou ao gramado.
O silêncio tomou tudo. Silêncio, escuridão e medo. Dom encarou o corpo de sua mãe, sério demais para uma criança que, há pouco, sonhava alegremente com aquele reencontro. Parecia estar longe da realidade, preso aos pensamentos, ao desamparo. Os olhos castanhos pareciam tremer, como um gêiser prestes a expelir o seu vapor.
— Dom… — Pietro abaixou a espingarda. Esperou que o menino o observasse, mas seus olhos estavam ocupados demais transmitindo ao cérebro a cena de sua mãe morta e mutilada. — Dom, vem pra cá. Vamos…
Como um corredor ao ouvir o tiro de largada, o garoto disparou a correr para os fundos da chácara. Ignoraria qualquer bom argumento que ouvisse, Pietro sabia bem a dor que ele estava sentido. Contudo, isso não justifica, nem mesmo abrandava a sua atitude irresponsável. Estavam próximos demais da cidade, estava tarde demais, tinham feito muito barulho ali… Era apenas uma questão de tempo, e o velho não estava disposto a esperar esse tempo passar para ver o que aconteceria.
Olhou para seus bois ainda atrelados ao carro, olhou para o lado pelo qual Dom havia seguido, depois para a barraca que sequer tinha começado a ser extendida. Olhou para a primeira estrela que apontava na escuridão do céu, em seguida para o corpo da mulher, imóvel e em paz. Olhou novamente para a barraca; afinal, precisava de um lugar seguro se quisesse sobreviver a mais uma noite!
Por fim, aquietou sua vista e olhou para dentro do seu coração.
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