Segundo
Um molho de frango caipira com bastante açafrão e pimenta e uma porção de arroz branco, dois pratos que, sem dúvidas, estavam entre os seus favoritos; tinham um gosto especial, trazia boas lembranças de momentos felizes com a família. Memorias de uma mesa farta de comida e de pessoas. Porém, a refeição, quando feita com carinho, ficava gostasa em qualquer circunstância; e Pietro sabia fazer.
Desligou a chama de seu fogão e retirou a tampa das duas panelas. O vapor subiu de imediato, o cheiro do açafrão ganhou o ar; o frango ainda soltava borbulhas de tão quente. Pegou um prato, botou o arroz e o molho de galinha e entregou ao garoto sentado na raiz de uma das árvores que sombreavam o beira-rio. O menino pegou o prato cabisbaixo, contido, arisco. Olhava para o velho apenas de canto de olho, como se temesse por algo.
— Se tava com fome, não precisava tentar roubar — o velho deu a bronca, voltando ao fogãozinho e servindo-se com vontade.
O menino não respondeu. Porém, mesmo com sua timidez, não tardou em devorar o prato com toda a voracidade que um garoto com fome poderia ter. Pietro, por sua vez, sentou-se em outra raiz, onde se colocou a degustar uma de suas predileções. Enquanto comia, observou os bois, que agora tinham encontrado um gramado macio onde comiam uns e deitavam outros. O barulho da água batendo sobre as pedras em uma leve correnteza acalmava os ânimos, agitados, não fazia muito tempo, pela aparição do menino.
Pietro pousou sua atenção sobre ele. Estava com as roupas ensanguentadas, sujas, e não era complicado avistar alguns rasgos aqui e ali. O estado de seu rosto não estava melhor; havia um grande corte em sua testa, vermelho devido a inflamação, mas que já começava a cicatrizar. Do machucado, escorria um linha de sangue seco, que atravessava seu olho esquerdo e sepenteava bochecha abaixo, desembocando no queixo fino. Estava pálido, contudo sua pele era clara por nascença e seus cabelos, lisos e negros, caiam sobre as orelhas, por falta de um corte mais elaborado.
— Meu nome é Pietro — ele se apresentou, entre uma garfada e outra. — Qual seu nome?
O menino, despindo-se das amarras da introversão, respondeu:
— Dom.
— Dom… — o homem analisou. — Qual sua idade, Dom?
O silêncio se prolongou até que o garoto engolisse o pedaço do frango que mastigava.
— Onze.
Ainda não olhava nos olhos de Pietro, mas responder as perguntas feitas já era um grande avanço.
— E o que um garoto de onze anos tá fazendo perdido no meio do nada?
Dom movia os lábios toda vez que se preparava para soltar sua voz suave; e o fez naquele exato momento.
— O carro que eu tava sofreu um acidente. Meu pai e minha tia tavam comigo, mas eles morreram.
Pietro recordou dos destroços que vira empilhados no meio da rodovia e das duas vítimas dentro do esportivo.
— E há quanto tempo cê tá por essas bandas?
— Vai fazer três dias…
— Muito tempo… — Não era de se espantar, pensou o velho, que o menino estivesse em estágios avançados da fome. — E cêis tavam vindo de onde pra onde?
— Meu pai era de Itauçu — e, naquele instante, Pietro viu o garoto o fitar pela primeira vez; os olhos de quem havia acabado de passar por um grande trauma. — Eu preciso chegar até minha mãe. Ela mora perto da próxima cidade, Inhumas.
O velho observou o prato do garoto, tinha comido tudo.
— Quer mais? — indagou, apontando para o fogão. O garoto negou com a cabeça. — Eu… — levantou-se para se servir novamente; se o garoto não queria, ele faria as honras pelos dois, afinal, não queria se gabar, mas o almoço estava maravilhoso. — Eu tô indo praquelas bandas de lá. Posso te dar uma carona, se cê quiser.
— Quero! — Dom disse com força, deixando escapar o seu medo de ficar ali.
Abaixando a cabeça, Pietro tentou esconder o leve sorriso sentido que se formou. O garoto estava com medo, apavorado, até; o que fazia o velho se recordar de tempos distantes, de quando seu filho agia da mesma forma, quando se envolvia em alguma encrenca.
— Vou só terminar meu prato aqui e nois faz um quilo pra depois continuar, okay? — O menino concordou com a cabeça; parecia ser de poucas palavras. — Tão tá bão.
°•°•°
Não demorou muito para que o carro de boi fosse montado e seguisse viagem pela rodovia pacata. Porém, a verdade era que Pietro tinha perdido um grande tempo em sua estadia às margens do córrego, e já se passava da metade da tarde. Mas não adiantaria reclamar, o tempo perdido não voltaria mais e seus animais não possuíam turbinas ou motores para que ele aumentasse a velocidade quando assim almejasse. O melhor que tinha a fazer era aproveitar a vista; aquela região era bela, cheia de relevos, os morros iam e vinham como ondulações no oceano, e as árvores, equilibristas, faziam como podiam para manter suas raízes pregadas ao chão.
— Qual o nome deles? — indagou Dom, que começava a se adaptar a companhia do velho, deixando o medo para trás, como migalhas de um pão.
Os bois caminhavam em suas velocidades habituais, ruminando o capim que haviam engolido. Pietro apontou o dedo.
— Aquele é o Diamante — indicou o animal de couro todo branco. —, Rajado — apontou para o de coloração branca com centenas de pintas amarronzadas, que se distribuíam de vários tamanhos. —, Selvagem — mostrou o de pele amarela, com patas e cabeça em um tom mais escuro, quase laranja. —, e o Barão — indicou o boi mais escuro, de pele negra e com uma única pinta branca que cobria seu cupim e parte das costas. — São meus companheiros de viagem, não é mesmo, rapazes? — O velho riu.
— Minha casa fica perto da cidade — o menino contou; a voz suave, baixa, ainda carregava a inocência da infância. —, o gado não sobreviveu aos ataques dos bichos.
Pietro se interessou pelo assunto:
— Hum… Então cê tamém mora em fazenda?
— É numa chácara.
Pietro analisou os trajes do garoto. Não parecia ser de alguém que vivia na roça; calças modernas, tênis estiloso, camisa de sair no domingo… Estava todo ensanguentado e sujo, era verdade, porém se percebia que o garoto era de boa família. Mas o velho também não podia julgar muito por isso; sabia que os trajes que usava eram ultrapassados, da moda de quando ainda era jovem e tinha lá seus vinte anos.
— E a sua família? — O velho foi pego de surpresa pela pergunta do garoto. Olhou para ele, que o encarava, curioso, depois voltou a face novamente para a estrada. O silêncio pareceu ganhar vida, como um espectro sobrenatural. Prolongou-se por tempo o suficiente para brincar na corcunda dos animais e fazer de seus rabos, balanço; até que Dom voltou a falar: — Tá indo encontrar com eles?
Algumas lembranças emergiram do subconsciente do homem, que, como se defendesse de um golpe, balançou a cabeça, retornando os pensamentos para seus devidos lugares. Retirou o chapéu e coçou a cabeça; o garoto assistia a tudo, calado.
— Cê é de alguma religião? — Pietro questionou.
Dom corrugou o supercílio, confuso.
— Não, senhor — respondeu, mesmo sem entender o motivo da pergunta.
— Bem… Mas sabe a importância de Nossa Senhora para os católicos? — O rapazinho respondeu a pergunta com um acordo de cabeça. Pietro acompanhava os movimentos do menino pelo canto de olho, sem deixar de enxergar a via a sua frente. — Eu sou católico — prosseguiu. — Tinha uma festa de igreja lá em Trindade, a romaria de Nossa Senhora Aparecida. Durante toda a minha vida, todo ano, eu fiz esse trajeto… Quando eu era menino, meu pai me trazia, depois que cresci, arrumei meu próprio carro e ía eu mais ele. Nos tempos da adolescência, eu só ia pra ter um motivo de sair da roça, ir na cidade grande, ver as minas, como falava na minha época — riu. — Mas depois que meu pai morreu, eu vi que precisava continuar. Por ele. E por Nossa Senhora, claro. O tempo foi passando… passando… e quando eu vi, tinha me tornado um romeiro fiel. Esperava todo ansioso pra chegar a época de romaria. É uma festa bonita de se ver, bão demais da conta, dá até uma emoção só de lembrar. — Olhou para Dom, que escutava a história como um ouvinte espetacular. — Uns tempo pra trás, andei meio adoentado, foi então que jurei ir em toda romaria, até o fim da minha vida, enquanto eu pudesse andar com minhas próprias pernas. E como cê pode ver, minhas pernas funcionam que é uma beleza.
— Mas… — o menino começava a entender a situação. — Não vai ter romaria esse ano.
Pietro riu alto, fazendo com que o som ecoasse pelas serras ao redor.
— A igreja continua lá, eu continuo aqui, meus companheiros continuam vivos e fortes, Nossa Senhora continua me protegendo… A romaria já tá acontecendo, garoto.
— Mas… — Começava a entender, e não gostava do que entendia. — Pra chegar em Trindade, o senhor vai ter que passar por Goiânia. A cidade tá cheia de gente infectada, tá infestada de bactéria pra tudo quanto é lado.
— Eu sei disso.
O menino parecia diante de uma situação que jamais imaginara ver.
— O senhor não tem medo de morrer?
— Olha em volta de nois, Dom. Quantos carros cê viu passar pela gente? Quantas pessoas vivas? Tá todo mundo morrendo. — Olhou para o sol, que já começava a descida para o horizonte. Teria que parar em breve em um lugar que pudesse passar a noite. — E quem tem medo de morrer, tem medo de viver.
Caminharam por mais um bom tempo, preservando o silêncio durante quase todo o trajeto. Pietro realmente estava certo, Dom era um garoto de poucas palavras, que se inclinava mais a observar a paisagem, as árvores e as poucas aves que sobrevoavam sua cabeça, do que para expressar a admiração que sentia para terceiros. As poucas vezes em que uma voz humana fora escutada durante aquele meio tempo, essa era do velho, o qual tentava puxar alguma prosa sobre o trajeto com o menino; foram raras as vezes que funcionou.
Depois de muito andarem, o sol começou a dar sinais de esgotamento, insinuando que se aproximava a hora do anoitecer. Olhando para o asfalto, Pietro percorreu com a visão cada pequena rachadura, cada buraco que se encontrava ao seu alcance, procurando pelas tão temidas marcas. E então, depois de muito procurar, lá estavam elas. Não eram grandes, nem estavam tão fortes, pois o sol ainda não tinha se posto, contudo pequenas pintas azuis fluorescentes decoravam o concreto cinza. Não eram motivo de preocupação, senão para indicarem que, naquela região, já havia passado um infectado ou dois. As manchas ficariam mais nítidas com o cair da noite, era até belo de se ver… A fraca radiação sendo emitida, ofuscando o brilho dos vaga-lumes e da lua. Porém, ele não estava encorajado a ficar ali para apreciar tal beleza sombria. Onde tinha pintas azuis, tinha perigo.
Parou os bois com a vara pela qual dava os comandos.
— Precisamos arrumar nossa barraca de posar — avisou a Dom, já pulando da carroceria.
Dom fez o mesmo, apesar de não saber o que deveria ser feito. Entretanto, Pietro sabia bem; tinha treinado por dias, aprimorando a técnica que ele mesmo tinha inventado para aquela viagem. Soltou os bois, para que pastassem perto do acostamento e, após, retirou da carroceria quatro pedaços grossos de madeira.
— Ajuda eu aqui, garoto — pediu, ao passo que erguia, com toda a força que tinha, um dos lados da carreta. — Coloca duas toras de madeira aqui — explicou, entre os grunhidos de força.
Dom, meio perdido, obedeceu prontamente; posicionou os dois primeiros troncos verticalmente, de modo a servirem de alicerce para o carro de boi. Sem pestanejar, Pietro correu para o outro lado e agiu da mesma forma, erguendo o outro lado na mesma altura. Com um sinal de cabeça, o velho indicou para que o menino repetisse o trabalho usando os demais troncos. E, então, o carro fora erguido; as rodas não tocavam mais o chão.
— Num vai ficar muito bão — Pietro tirou de cima do carro um saco com uma espécie de lona espessa e tão negra como a noite. —, mas vai ter que dar pro gasto.
Haviam ganchos pregados em todos os lados do carro de boi, que o homem tinha colocado especialmente pensando naquela ocasião. Pietro começou a produzir uma barraca, prendendo a lona em todos os ganchos e fincando-a bem na terra vermelha. O resultado final não era um hotel cinco estrelas, porém servia como uma luva para se esconder do que aparece na beira da estrada.
— Aproveita pra fazer suas necessidades antes de nois entrar, porque ninguém vai sair durante a noite não — ele adverteu, enquanto colocava um colchão fino dentro da barraca e enfiava para dentro sua espingarda.
Ele olhou para o céu, os últimos raios banhavam o horizonte. Depois fitou o asfalto; o azul se intensificava, mostrava-se cada vez mais, anunciava que o período de caça estava aberto. E o velho sabia que eles não eram os caçadores.
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