Subtração
Quase cinco dias inteiros dentro da fazenda fizeram-me crer que passava da hora de enfrentar alguma realidade diferente daquela. E eu já conseguia prever que realidade encontraria lá embaixo, no centro da vila.
Durante o habitual café da manhã, Jón, o sobrinho, aninhava-se embaixo da mesa junto aos meus pés e brincava com os cadarços da minha bota. Vez ou outra eu tinha que lhe servir uma fatia de pão e um raso gole de leite morno. Mesmo diante dos meus chamados, o pequeno gostava dali e todos defendiam tal desejo. Crianças são seres livres, afinal.
Mas o momento não fora só felicidade.
Minha Senhora torceu o lábio, desgostosa, quando ouviu-me pedir o jipe de Anton emprestado. Deve ter pensando que eu queria visitar algum local nas proximidades, mas quando entendeu minha pretensão de descer até a vila, foi o caminho da mesa até a pia que ela cortou com os pés pesados, em passadas vigorosas. Sua intenção era mesmo entregar o desagrado. Essa era outra coisa a qual eu precisaria acostumar: islandeses nunca são diretos. As outras nações incentivam a mensagem direta, de significado claro, mas a Islândia parece não ter entendido isso.
- Anna. - Ouvi o meu Senhor sussurrar em claro tom de advertência.
- Mãe... - Anton suspirou lá do outro lado da mesa.
- Se a vila é seu destino, por aquela porta eu não o permito sair - ela sentenciou jogando na pia as xícaras que carregou consigo. Ajeitou ao longo dos ombros aquele tecido grosso que servia para espantar o frio e o vento quando lá fora saísse.
- Um dia ele voltaria à vila, Anna. Você acha mesmo que ninguém saberia do seu regresso? - Foi meu pai quem defendeu minhas vontades.
- Mãe, não transforme isso em algo muito pior.
- Você já fez isso há muitos anos, Andri. - Ela quase gritou e por isso fez chorar o pequeno Jón, que eu vi se arrastar até os pés da mãe que o retirou dali sem fazer muita cena. Ela sabia que aquele assunto era só nosso, mesmo sendo parte importante da família. Eu a acompanhei com o meu olhar e retraída ela sorriu para mim. Era sua forma de demonstrar apoio. - Não quero dizer que você fez algo errado, antes de todas as coisas - continuou minha mãe, mais calma -, mas você sabe que lá estão aqueles que fizeram você sair daqui. E se não fizesse isso, bem sabe que provavelmente eu teria um filho morto. E não é isso que eu quero. Não queria e ainda não quero.
- Não é muito cedo para antecipar o medo, mamãe? As coisas podem ter mudado um pouco - tentou amenizar Anton, que recebeu da senhora ruidosa um olhar de repreensão.
- Medo? Medo eu tive quando vi minha família ser odiada e ainda hostilizada por alguns. Medo eu sinto quando desço até a vila e ainda vejo virarem os rostos para outros lados. Anton, isso não é sobre medo. É sobre querer paz. Eu não quero que aquilo tudo acorde novamente.
- Eu não deveria ter voltado, afinal - sussurrei em uma resposta que não foi pedida.
- Não é isso - ela gritou de lá.
- Não?
- Não é isso, Andri - sussurrou o meu Senhor. - Seu regresso é festejado, mas em parte entendo o desejo da sua mãe. Talvez seja melhor Anton ir até lá algumas vezes e tentar sondar alguma coisa.
- Então o que virou isso aqui? Um serviço de espionagem? Precisamos mesmo disso, mãe?
E pela primeira vez naqueles dias eu quis chorar. Não por tristeza ou por mim, mas por eles. Por aquilo que eu fiz aos outros e à minha família. A situação que eu criei na vila.
Novamente o gosto amargo inundou minha boca e mesmo se eu ainda estivesse comendo, nada mais desceria pela garganta apertada. Pela primeira vez naqueles dias eu quis novamente não existir, e como o pequeno Andri quando era privado de descobrir o mundo por causa do péssimo tempo que chegara ou o cuidado excessivo de Anton, levantei dali e fui para o quarto. A porta eu não bati com força. Ainda havia respeito em mim.
Adormeci descoberto e olhando os monstros que eu criei numa época em que a vida mostrava-se menos cruel do que realmente era, e quando acordei, estava seguro embaixo do pesado cobertor. Presumi que pouco devia ter passado das onze da manhã. Percebi que não tinha movido um centímetro sequer e ao meu lado, em um espaço intocado do colchão, repousava uma chave, que imediatamente pensei ser a do jipe de Anton. Àquela altura quem diria o que era realmente certo fazer? Sem respostas, não esperei por ninguém e também não dei satisfações.
Minhas mãos tremiam, é claro. Meus pés, mesmo protegidos pelas botas, suavam e pareciam ter perdido qualquer elo com os comandos que saíam do meu cérebro. Mas isso não foi suficiente para me manter ali.
Eu saí sem pressa tomando conhecimento dos comandos do carro, que na verdade eram bem simples, e sem a intenção de mostrar qualquer estresse em deixar ainda mais preocupados aqueles que ficavam. Antes da saída avistei o meu Senhor ao longe e ele ficou olhando-me por algum tempo. Talvez pedisse a natureza que protegesse o filho, talvez fosse um Deus o alvo do seu olhar cansado. Eu fiz minha qualquer prece dele, por mais mentirosa que parecesse.
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Antes mesmo de chegar à vila já avistamos um rochedo além do pequeno porto. Uma enorme pedra que se estende como um braço e adentra o mar. Sobre ele, um pequeno farol pintado de amarelo que orienta aqueles que chegam de barco. Antes do porto uma sequência de muitas casas e todas elas pintadas das mais variadas cores. Algumas são verdes de telhados vermelhas, outras carregam o azul em suas paredes e amarelo em seus telhados. É divertido olhar para elas, tanto pelas costas da vila, a visão de quem chega, quanto de frente, visão daqueles que escalam a grande pedra.
"reykjavík", krystopher woods
Existe ali uma única rua principal onde se localiza a prefeitura da região, e em outros tempos, um único mercadinho e um café. Com a horda curiosa de turistas, os moradores viram a oportunidade de crescer economicamente e por isso surgiu alguns hotéis de pequeno porte ao longo da vila, outros pequenos mercados, cafés, lojas de artesanato, casas de carnes e verduras - produto que chega de barco e que por isso é sempre caro - e outros estabelecimentos.
Sete anos passaram desde que eu fora obrigado a sair dali e tudo parecia igual, o que me permitiu dirigir com facilidade até uma rua mais isolada, onde morava um antigo amigo. Tudo que eu precisava fazer era ignorar uma parte da vila. A região onde moram as memórias. Se eu tivesse sorte, ele ainda teria o mesmo posicionamento de antes e ainda estaria do lado contrário aos que se colocaram contra mim. Tudo era possível e para todas as possibilidades, mesmo com pesar, eu estava preparado.
Desde a infância a casa do Einar sempre fora longe do centro. Desde quando nos encontrávamos na única escola e caminhávamos, entre brincadeiras intermináveis, ao isolamento social preferido por seus Senhores. O crescimento da vila fez com que as casas fossem parar até onde eles moram e agora até asfalto a rua possui, mas o silêncio que vem lá de dentro e o pouco movimento na rua ainda transmitem a paz daquela querida família.
Vazia ou não, eu ainda tremia por estar na rua e por isso corri até o portão baixo, abri nervosamente e coloquei-me sob a proteção acima da porta. Eu estava ainda mais gelado que o vento daquele começo de tarde ensolarado e para a minha alegria só precisei bater duas vezes. Era claro e esperado o espanto no rosto da Senhora do meu amigo. Primeiro ela levou a mão à boca, usando de nítida força para continuar calada. Depois suspirando pesadamente ela as escorregou ao peito e massageou a região coberta pelos tradicionais vestidos de linho.
Andri, meu querido, eu ouvi em um sussurro penoso e feliz ao mesmo tempo.
Ainda havia compaixão em seu rosto, como eu sempre vira. Ainda havia cuidado nas mãos que me colocaram para dentro e nos olhos que miraram a rua deserta por um instante. O cuidado se personificou quando ela ligeiramente cobriu meus ombros com uma manta pesada e deixou-me sentar no pequeno sofá da sala escura. Eu ri da excessividade daquela Senhora que sempre fora assim . Quando chegávamos da escola, eu e o seu filho, era ali que ela nos colocava até que meus os senhores pudessem me buscar. Era ali que ela nos servia chocolate quentinho enquanto brincávamos de descobrir quem era o preferido daquele dia pela quantidade de chocolate colocada no copo. Com a espuma fazíamos bigodes e longe dos olhos cuidadosos dela, éramos vikings em uma guerra violenta. Eu sobre um braço do sofá, Einar sobre o outro. Somente um poderia ser o sobrevivente, e por causa da minha delicadeza no trato, nunca fora eu.
- Meu Deus - ela sibilou. - Quando tempo passou. Como você está diferente.
- Só diferente mesmo, porque crescer nunca será meu forte - eu ri.
- Deixe de brincadeiras, menino. - Ela finalmente aceitou o meu riso. - Sentimos a sua falta. Como foi dura a sua partida.
Eu tossi e deixei meu olhar viajar pela casa ainda igual. Explicitava que não era sobre minha partida que deveríamos conversar. Ela retraiu-se ao entender que aquele não era o momento.
- E o Einar? - perguntei-lhe.
- Ah, o Einar. - Suspirou ainda mais pesadamente.
- O que aconteceu com ele?
- Calma. - Ela estendeu-me a mão.
Como mulher simples e de poucas palavras, levou-me ao corredor que eu bem conhecia e depois colocou-me à porta do Einar. Lá dentro ele estava sentado de costas para a entrada e mirava a janela, inócuo. Ela emoldurava uma cadeia montanhosa que naquela época coberta por um verde escuro misteriosamente bonito, mas ainda ominoso. Nenhuma reação ele pareceu esboçar quando entramos e ali continuou, talvez nos ignorando. Num susto sua mãe viu suas calças ao chão e sorrindo foi na frente.
O que é isso, meu Einar? Não está com frio?, dizia enquanto vestia o meu amigo que continuou imóvel e apático.
- Venha aqui, Andri.
E eu fui, mas cautelosamente. Alguma coisa estava bastante diferente por ali.
Einar não me olhou quando próximo dele eu me coloquei. Ele não me estendeu a mão quando sentei na cama ao lado da cadeira onde estava sentado e toquei seu joelho direito. Ele não esboçou reação alguma quando eu cochichei um pesaroso "meu amigo". O que aconteceu com ele, o subtraiu a um corpo. Só isso: um corpo. Não parecia existir uma alma ali dentro. Nenhuma chama de vida. Nada. Só um corpo que olha ao distante. No que pensava, seu rosto não dava uma única pista.
Um corpo.
Com os olhos eu pedi uma explicação à Senhora que ficou atrás de nós despretensiosamente arrumando algumas coisas sobre uma pequena bancada.
- Ninguém sabe, mas alguma coisa aconteceu. - Antecipou-me. - Começou com alguns esquecimentos. Era o casaco, o jantar, que dia e o horário de ir ao porto. Coisas simples, mas que passam sem chamar atenção, pois dizemos que todo dia nos ocupamos de mais coisas e essas novas coisas nos fazem esquecer outras.
"Foi piorando com o tempo. Um dia ele acordou atordoado, nervoso e de voz embargada. Olhava-me sério. Parecia desesperado em querer falar, mas nada saía de sua boca. Depois de uns minutos, mesmo preocupada eu até cheguei a rir da situação. Deveria ter sido um pesadelo. Isso aconteceu algum tempo depois que você foi embora. Anos mais tarde vivenciamos uma crise. Uma que nos antecipou muita coisa. Ele saiu ao centro e não voltou cedo como havia prometido. Algumas horas passaram e ele se viu ao pé das montanhas. Outra vez desesperado. Dessa vez falava e não tinha sentido nenhum nas palavras. Disse que não sabia onde estava, o que fazia ou quem era. Um completo estranho. Um amigo da família o reconheceu e o trouxe de volta para casa com muito custo."
- Desde então ele está assim? - Outra vez eu deixei no joelho um carinho e outra vez fiquei sem reação da parte dele.
- Ah, não. Eu imagino que a última crise foi muito pior e até hoje agradeço aos deuses pelo que fizeram.
- Foi tão horrível assim?
- Nunca saberemos, mas deve ter sido, Andri. Ele saiu cedo de casa nesse dia. Era temporada de pesca, mas ao invés de embarcar naquele barco que levaria todos os outros, ele pegou o pequeno barco da família. No porto ninguém suspeitou de nada, por isso não foi abordado. Ele voltou horas mais tarde. Desgovernado, o barco avançou sobre o porto, destruiu parte do píer, quase atingiu alguns turistas e o meu Einar por pouco não morreu. Pensamos que talvez ele tenha ficado desacordado antes mesmo de atingir o píer e com o impacto ganhou essa cicatriz no rosto.
Eu não precisava, mas ainda assim pedi permissão ao Einar para virar seu rosto e observar a cicatriz que desce pela face ao lado da orelha esquerda. Tem alguns bons centímetros e o vermelho acentuado contrasta com sua pele extremamente alva.
- Nunca mais ele falou, ou esboçou reação, ou pareceu pensar de forma clara. Nunca mais ele caminhou como antes e nem mostrou aptidão a conviver em sociedade. Quando em multidão, ele mostra nervosidade e pode até ser violento, por isso evitamos sair, não é meu Einar? Melhor assim.
- Sobre as memórias... - Comecei em um sussurro. - O que sabem sobre elas?
Absolutamente nada, ela respondeu enquanto eu observava cada pequeno e novo traço no rosto daquele que um dia fora cheio de vida e excitação.
Ficamos ali algum tempo. A mãe organizava o que tinha para organizar, Einar continuou preso às montanhas que ao fundo também nos observava e eu curtia algumas ideias. Nada mais existia além da ponte invisível entre os olhos do meu amigo e a natureza afastada por um vidro não tão límpido assim. Eu precisava fazer uma coisa.
Nós vamos sair, já fui avisando antes de chegar na cozinha.
- O que você disse? - Como eu previa, a senhora assustou-se.
- Foi isso mesmo que você escutou - Ri consciente e seguro. - Nós vamos sair. Eu e o Einar.
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