Perto das memórias livres
Naquela manhã eu acordei primeiro que meus os Senhores. Aparentemente, antes até da energia incontrolável que era o meu sobrinho. Meu corpo ainda não tinha se acostumado com os fusos, as mudanças climáticas, o regresso e todas as menores coisas que constituíam aquele momento. O retornar.
Evitei sair do quarto e parecer uma sombra que caminha deslocada pela casa, e continuei ali trancado entre as coisas que falam de um menino que um dia fui e o homem em que me transformei. A cama de madeira grossa e escura poderia ser pequena, mas eu não tinha crescido tanto assim, então ela ainda me servia e isso sempre é engraçado. Um móvel que sempre existiu e resiste.
Dada a simplicidade da família e a distância dos islandeses de um sistema que impõe estilos e padrões de comportamento, meu quarto não guarda nenhuma decoração, senão a básica. Uma pequena bancada, um tapete colorido ao pé da cama e umas grossas taboas presas na parede oposta ao móvel velho que serviam de apoio às pequenas coisas que eu costumava guardar.
As que não deterioram-se, ainda estavam ali: pedras de vários tamanhos, objetos quebrados resgatados da inutilidade, alguns brinquedos feitos em madeira pelo meu Senhor, desenhos que revelam monstros imensos a devorar a infância dos desobedientes e um boneco de pelúcia.
"gentle monsters in the woods", marion (galaxy draws).
Esse provocou em mim um riso feliz, como em muito tempo nada arrancava de mim a reação.
No rosto dele um botão servindo de olho bem no meio da testa. As pernas e braços são longas e finas, nada combinando com a parte redonda que lhe serve de tronco. Por escolha daquele eu de pouca idade, minha Senhora usou tecidos variados na criação daquilo que chamei de Pequena Coisa Elementar. Ninguém jamais chegou a uma conclusão de onde aquele nome teria saído. A verdade é o brinquedo velho era meu elo mais forte com o outro tempo. Aquele em que acreditamos na fantasia e que a vida não passa de uma deliciosa aventura. Um elo com o eu inventor e descobridor da minha própria existência. Uma porta ao mundo onde o pequeno Andri acreditava em bichos reis do mundo, em monstros que habitam a sombra dos fiordes, o céu de nuvens falantes, o chão de musgos traiçoeiros e brincalhões. Duendes. Elfos. A natureza física da Islândia era uma invenção minha e não uma extensão cruel do que os homens são por dentro, a natureza do dentro.
A Pequena Coisa Elementar era o eu pulsante antes do descobrimento da natureza extrema do homem.
- Vejo que já achou o velho amigo - disse a voz mansa que vinha da porta.
Nada eu respondi quando girei mostrando sorridente o velho companheiro.
Minha Senhora sorriu em resposta. Trazia em uma de suas mãos uma caneca com chá e na outra uma escova junto de um pequeno pote. Por conhecê-la, sabia que aquilo era um creme que fazia com as próprias mãos, para os próprios cabelos.
Eu bem sabia também qual era a sua pretensão e por isso joguei-meno chão, ao pé da cama e sobre aquele tapete de pele que ela mantinha ali. Os pés são importantes, ela dizia em minha pouca idade. Eles precisam de cuidados ao sair da cama. Nunca pise o chão frio.
Jamais conheci alguém que morreu por pisar o chão frio, mas mãe é sempre mãe, e mães sabem mais que qualquer um.
Sentou-se cuidadosa atrás de mim. O tecido grosso do vestido que usava tocando meus ombros, os dedos pequenos descendo pela extensão média do meu cabelo escuro, o creme amornado na palma e depois colocado sobre os fios. Os dentes da escova descendo por ele, desembaraçando-os.
Cuidado e saudade em um só gesto.
- Lembra das tantas caminhadas feitas com ele? - perguntou entre uma escovada e outra.
- Ele, o boneco?
- Ele, o boneco.
- Claro que sim. Quando escapava de Anton eu corria aos limites da vila, onde as outras poucas crianças eram proibidas de ir e quando abordado por algum adulto preocupado, com voz impostada eu dizia ser o mais adulto daqueles que pisaram por ali.
- Com frequência eu via chegarem ao portão com você nos ombros ou sobre as caçambas daqueles carros antigos, como transportam as ovelhas - relembrou.
- Sempre achei mais divertido ir ali ao sabor do vento. Eu era impossível, não era? - Tive um pouquinho de pena da senhora acima de mim naquele instante de vida.
- Não diga isso com pesar, pois o único momento em que me preocupei foi quando você mostrou-se... Como posso dizer? Diferente.
Existiu um pequeno e muito palpável silêncio. Ela ainda escovava cuidadosamente meu cabelo já arrumado, mas em menor velocidade e força. Parecia viajar em pensamentos.
- Eu sempre tive medo de ver nascer em você a vontade de ser longe. Já naquela idade, quando você pouco crescido era, muitos eu já tinha visto sair daqui. Muito se discutia sobre essa vontade de negar as origens, mas eu entendo. Somos velhos, antigos mesmo, e nossa cultura não é mais tão divertida como quando éramos jovens e o mundo ainda evoluía. Agora a capital é muito mais atraente. Ou melhor, as outras nações são muito mais atraentes.
- Mãe... - Eu murmurei. - Todos nós sabemos que, por mais inventivo ou fantasioso que eu fosse, eu sempre pertenci a esse lugar. Aqui é minha casa. Sob esse céu de dia longos e às vezes noites estendidas. Viver da terra não é um problema. Nunca foi. Tudo bem que eu era um pouquinho mole...
- Bastante molenga - ela brincou ao me interromper.
- Bastante molenga - eu completei -, mas daqui só saí por motivos outros, mãe.
- Shhh! - Lá das minhas costas ela cobriu meus lábios com uma das mãos.
Os dedos velhos, mas macios. O cheiro suave de leite e tempo. A força que fala da vontade de manter dormindo um assunto indesejado. Calou-me por mim e por ela. Por todos nós.
Eu a vi sair do meu quarto gelado carregando poucas e sentidas lágrimas. Ainda na porta disse-me que o café estava servido na cozinha e esperava por mim.
Depois de arrumado e vestido em um agasalho grosso feito de lã e bordado pela mulher de lágrimas sentidas, gostei do cabelo penteado e outra vez hidratado que o meu reflexo do espelho mostrava. De café ainda tinha aquele pão feito em comemoração ao regresso, porém não mais tão fresco, Skyr em um potinho rústico de madeira, leite morno, chá, queijo, parma e salsichas de ovelhas. Por serem feitas das vísceras do animal, estas permaneceram intactas até a chegada do meu Senhor, que as devorou sem receios. Eu sempre fiz questão de ficar longe delas.
Passei o resto daquele dia entre visitações às lembranças e vários passeios pelos fundos do terreno. Em cada novo metro conquistado, uma memória revivia. Infância e juventude. Espaços misturados.
Conferi as grandes pedras que para o pequeno Andri pareciam montanhas. A cerca que ali só serve para delimitar o espaço e impedir que as vacas tenham liberdade, pois perigo nenhum a Islândia oferece. De gente pacífica, a terra é o único perigo sempre à espreita. Os elementos, quando quase vilões, ainda são Deuses. O fogo esfomeado dos vulcões, a água que chega com violentas tempestades, a terra que se abre em fendas e revelam o interior do nosso mundo e o vento que arrasta consigo a vitalidade. Natureza selvagem, como o próprio tempo.
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