Palhaço invertido

Pela vila, onde aventurava-me às claras em alguns poucos momentos, falavam de um Ásmundur de comportamento ainda mais provocativo e insolente. Viam-no com mais frequência e ele não tinha nenhum medo de ser pego cometendo algum delito ou rindo de forma estridente, assustando os menores que por um único segundo se desprendiam dos pais. Foi isso que disseram: que ele saía dos becos apertados e fétidos, e tão sujos quanto os espaços que habitava eram suas roupas e seu rosto de contornos sempre assustadores. Como um rato, revirava o lixo dos outros e espalhava sua imundice pela rua, às gargalhadas desmoderadas. Era um palhaço invertido.

Assustava-me saber que alguém pudesse transformar-se naquilo, mas todas as memórias gravadas em minha pele deixavam-me saber que esse era o seu destino. A completa loucura sempre foi algo que deitou entre nós dois.

Eu estava na vila justamente para a finalização de um roteiro feito com uma família inteira. Os viajantes felizes iam sempre à frente num carro alugado e eu os acompanhava com o jipe eficiente de Anton. Por indicação - e expertise - minha, paramos todos no café do Velho Baldur, que outra vez teve que fechar as portas mais tarde para que eu pudesse tratar e entregar todas as fotografias feitas mais cedo naquele mesmo dia. Os pequenos da família divertiam-se com o Velho contador de histórias assustadoras e a daquele dia eu já escutara, e por isso conhecia bem: uma baleia alimentava-se do medo das crianças fracas e de tão gorda, quando um dia resolveu deitar sua cabeça sobre o continente, por pouco não fez virar a Islândia inteira. Tiveram que chamar os homens de longe. Muitos deles. "Um exército inteiro de destemidos guerreiros", o Velho sussurrou aos baixinhos sempre guardados pelo olhar protetor e curioso dos pais. Disse que mataram a baleia e nunca mais tiveram fome. Foram dias e noites de luta. Cada vez que o bicho movia sua cauda, de tão forte e tão grande, fazia ventar por toda terra, arrasando vilas inteiras instaladas nelas. Tiveram então que se curvar aos deuses vingativos, que mataram a baleia com um único sorriso torto. Os homens e as crianças ainda fracas nunca mais sentiram fome, pois teriam carne por uma eternidade inteira. "Querem um pedacinho só?", ele curvou-se para pegar a prova de uma torta que restara e os pequenos se contorceram inteiros quando pensaram que poderiam estar diante do bicho mais temido do mundo. Mesmo que apenas o resto do que ele fora um dia.

O Velho fizera rir os adultos e pais que estavam ali atentos ao que dizia, mas foi outra risada mais encorpada e irritante que fez todos olharem para fora do local em sobressalto.

Todos vimos pelas grandes janelas um homem que terminava de despejar o conteúdo vermelho de um balde sobre o vidro do meu carro e aos pulos sair correndo pela pista atrás de si, fazendo frear bruscamente um carro que passava ali. Ao motorista mostrou seu dedo do meio e voltou seu olhar ao interior do café. Conferia, ainda risonho, se tinha a platéia que espera ter. Se eu era um dos expectadores. Realizado, sumiu por uma viela já escura. Passagem para o seu submundo.

O primeiro a tomar o caminho para o exterior fora o corajoso Velho Baldur, e assim todos nós o seguimos. O cheiro deixado ali era insuportável, o que nos deu a dica de que o líquido era sangue, como aparentava ser e estava tão podre como era de se esperar que estivesse. Ação de um homem tão podre quanto o líquido.

Ásmundur já era morte. Tão morte quanto o bicho que matara para o seu divertimento.

As crianças, horrorizadas e chorosas, pediram para serem levadas dali e os pais, desacreditados, agradeceram pelo serviço em um sorriso forçado. O dinheiro em meu bolso e a certeza de que nunca mais aquela família pisaria ali, deixava-me seguro dos pensamentos que pudessem ter acerca do povo daquele lugar.

Ajudei o Velho a fechar as portas e o vi se despedir em profundo lamento ao que me fizera aquele coitado, como ele mesmo usara. Lamentei também porque teria que rumar para casa e lavar o trabalho de Ásmundur, se não quisesse que o cheiro impregnasse no vidro por tempos, e por isso não veria James naquele crepúsculo, como queria e combinamos.

Antes de sair da vila fiz de questão de passar pelo porto com meu vidro manchado de vermelho e avistei James entre os outros companheiros de pesquisa. Fui rápido para não ser notado e em pouco tempo já estava em casa.

Castigados pela ventania de uma tempestade que se aproximava, Anton e eu usávamos luvas e escovões macios para esfregar o vidro com sabão feito ali mesmo no celeiro. Ele lançava-me olhares denunciosos e enraivecidos, como se soubesse de algo. Como se tivesse dentro de mim por um instante e descobrisse a culpa de tudo. Certamente sentia o mesmo que eu, e por isso entendia-me.

- Poderia deixá-lo fazendo isso só.

- Não preciso de ameaças - eu cuspi. - Me deixe. Vá!

- Seu idiota! - Esfregava cada vez mais forte a lateral do automóvel. - Aquele animal irá farejar o seu rastro. Ele vai perseguir até o odor do seu medo.

- Medo? - Eu sorri ruidoso.

- Se ele pisar os pés dentro da propriedade... Andri, eu prometo que mato você.

- Outra ameaça! - Eu observei. - De fato o único filho útil não é lá tão correto como todos imaginam que seja.

- Já chega disso! - Berrou fazendo ir longe o esfregão. - Deixe essa merda como estava - ele ordenou e esperou proximidade para então sussurrar: - e dê um jeito de sumir com aquele verme.

Sozinho, chicoteado pelo vento e os primeiros pingos grossos da tempestade aprontada acima de mim, terminei de esfregar cada centímetro do jipe e esperei a chuva engrossar. Nem ela, feroz como era, conseguiria desprender do meu corpo as impurezas criadas pela rudeza da natureza humana.

storm over a landscape, 1500, leonardo da vinci.

Mesmo grossas, as janelas de madeira da casa pareciam se partir toda vez que uma rajada mais forte de vento as acertava. Rangiam e o ruído era arrastado pelo corredor através do vazio escuro que era a casa. Mesmo que temêssemos ser levados pela tempestade, sabíamos que elas sempre cessam em algum momento, e por isso continuei acuado sobre minha cama. Nada tínhamos para fazer, senão resistirmos.

Certamente meus pais também ouviam os barulhos que faziam os bichos. Pareciam ser encurralados por algo e eu julguei de imediato que uma das portas do celeiro tivesse sido escancarada pelo vento, como tinha acontecido em uma tempestade noites antes.

Se as rajadas incomodavam-me mesmo estando protegido pelas cobertas, imaginei o sofrimento que era para os animais expostos ao vento que invadia o celeiro e não tinha por onde sair. Antes que o meu Senhor decidisse fazer isso, levantei despreocupado com os ruídos que faria, calcei minha bota, joguei uma grossa capa de chupa sobre a cabeça e ombros e ao sair pela cozinha já constatei que era correto o meu pensamento.

Havia uma pequena lâmpada de luz amarela ao fundo do celeiro que balançava com o vento que entrava. As sombras dos objetos moviam-se depressa por causa do movimento que fazia, mas isso não impediu-me de enxergar com clareza a figura quase corcunda mantendo-se pendurada no cerco do único cavalo do meu pai. O bicho movia-se com rapidez numa tentativa de fugir daquele que o incitava sempre aos risos.

- Deixe o bicho em paz. - Foi o que eu disse.

Eu vi Ásmundur saltar de onde estava e continuar distante de mim, ora sob a luz, ora abraçado pela sombra. Mas ainda assim conseguia enxergar os seus assustadores contornos, a cabeça grosseiramente raspada, o fundo escuro que guardava seus olhos, os ombros ossudos e o pescoço fino de veias saltadas.

- Previsível? - Eu vi que ele segurou o riso.

- Fala do meu pedido? Eu ainda nem pedi que nos deixe em paz.

- Não falo dessa ladainha de paz - cuspiu, raivoso. - Falo do nosso encontro. Vai, me diz. Não poderia ser em outro lugar, não é? - Dessa vez ele não segurou o riso e deu alguns passos em minha direção. Os olhos eram certeiros, mas inquietos. Queriam continuar fixos em mim, mas naturalmente rolavam para o lado junto com a cabeça. Olhando-me de perfil e quando a escuridão deixava-me vê-lo, o sorriso doentio revelava a falta de alguns dentes.

- Não seja inocente e nem procure ainda mais dor para si. Acha mesmo que eu pretendo realizar um super encontro? Em momento algum. Eu sinto muito, mas...

- Como não? Não foi aqui onde nos servimos do pecado? - Em passos rápidos ele foi até um dos cantos do celeiro. Apoiando-se na madeira, movimentou seu corpo doente como se penetrasse alguém. - "Isso!" - ele gemeu. - "Faça isso, meu Ásmundur. Você é tão gostoso." Não era assim que você gemia? Você adorava quando transávamos daquele jeito. Reconhecemos a violência do outro.

- Já chega! - Eu bradei. - Veja o seu estado - disse-lhe apontando para o corpo imundo que carregava.

- Mas não era disso que você gostava? Eu sou sujo! - ele gritou aproveitando o estrondo de um trovão para depois voltar aos sussurros de tom sempre ameaçador. - Eu sou um bicho. Você adorava ter-me assim: como besta. Eu era o seu animalzinho, não era? Adorava domar e mostrar sua força. Gostava do sabor do meu sangue. Será que ainda é tão bom?

Ele nem tinha terminado de falar quando o vi levar os dedos ao antebraço e forçar as unhas descuidadas sobre a pele. Entendi a intenção do seu movimento quando ele começou a machucar a região aos risos. Os golpes eram violentos e se eu não tivesse corrido ao encontro dele, em segundos teria sangue em próprias mãos. E assim, tendo meu corpo tão próximo, segurou a lateral do meu rosto com a mesma mão que antes tentava rasgar a pele. Respirava em meu rosto, forçando em mim seu hálito podre. A boca era também fisicamente suja. A pele e principalmente os olhos assemelhavam-se a boca de um vulcão, pois ardiam como um.

- Era de mim que você gostava. Gostava não... - Foi rápido em corrigir-se. - Você me amava. Eu sei. Eu sei, sim. Você me amava perdidamente. Você não disse isso? Perdidamente? - Ele repetiu eufórico.

- Ásmundur, eu não consigo...

- Amar! - Tão rápido falou que chegou a cuspir em meu rosto. - Você disse. Eu lembro Andri, você não pode amar. Mas você me amou. Amou sim - ele repetiu. - Foi por isso que matamos Pascal.

Muito mais atordoado que o bicho que mantinha-me nas mãos, livrei-me do corpo sujo e pútrido e tomei alguns passos ainda de costas para longe dele, que contente pela minha reação saiu às gargalhadas pelo escuro. Movia-se como uma fera escalando baús, caixas e saltando aos urros.

Você ama! Nós matamos Pascal por amor, gritava.

Assustado, ele só calou quando trombou com o meu corpo e meus dedos em torno do seu queixo. Os olhos guardavam todo o medo do mundo. Tremiam. Ele tremia. Curvou-se expressivamente, mas mantive o homem em pé olhando profundo nos meus olhos.

- Mentira! - Eu fui rígido. - Você não sabe o que aconteceu. Enlouqueceu de vez. - O que saiu dele foi um grunhido. Formava-se um choro em sua barriga e subiu rapidamente para a garganta. Ali eu o segurei com os dedos que estavam em seu queixo. - Não repita isso. Você está completamente louco.

Alegrava-se, portanto, saber que era louco. Sempre fora assim. Por isso ao ouvir-me denotar sua loucura sorriu sua ingenuidade para num segundo transformá-la. O sorriso que servia era medonho. Assustador. Um sorriso de boca suja e dentes podres.

- Você gosta da minha loucura.

- É por isso que ainda caminhas por aqui - eu confessei ao largar o corpo dele e sair de perto da figura transformada.

- Prefere minha loucura que a bondade daquele bonitinho do porto?

- James?

- James. - Repetiu em um sussurro. - James é uma delícia.

- Fique longe dele como eu também pretendo ficar.

- Se pretende ficar longe dele... Você ficará comigo, Andri?

Eu percebi que o inquieto Ásmundur estava paralisado atrás de mim enquanto eu verificava as trancas do cerco do cavalo. Esperava minha voz como eu esperava que ele partisse do celeiro. Para isso existia uma resposta perfeita.

- O que você acha?

Novamente aos pulos ele moveu-se pelo escuro do lugar. Inventava a certeza das coisas. O vento ainda era forte, a tempestade se demoraria por mais algum tempo. Gritava aos bichos e objetos que eu o queria. Seu riso era outra vez estridente. Assustador como sempre fora.

- Você me quer. Você me quer!

- Agora suma! - Eu ordenei. - E não volte aqui. Sequer passe perto da cerca.

- Você me quer - ele repetiu. - Será como nos nossos planos: eu, você, aquela cabana entre as montanhas e Pascal sob a Islândia.

"Esqueça Pascal", eu tentei dizer, mas Ásmundur já corria dali para fora do celeiro listando em voz alta algumas coisas que só ele entendia. Deixou-me sozinho sob a lâmpada que continuava dançando acima da minha cabeça transformando as sombras de tudo que alcançasse com sua luz.

Mesmo morto e enterrado sob o extremo da ilha, Pascal parecia respirar e fazer o cheiro de sua vida chegar a mim. Como se ao ser citado pudesse revirar-se e da terra brotar-se como planta e sob a chuva caminhar em minha direção. Sedento. Apaixonado. Furioso.

Eu corri dali e para trás deixei a porta do celeiro bem trancada. Alimentava a esperança de que a ideia de seu renascimento continuaria tão trancada quanto mantinha inacessível as memórias da sua morte.

a deluge, 1517-18, leonardo da vinci.

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