Eldur


Tão forte era o vento que as janelas, mesmo feitas de resistente madeira, rangiam como se algo de proporções muito maiores que elas as quisessem arrancar e tornar livre o caminho para dentro do pequeno quarto. Os assobios provocados pelas rajadas e o arrastar das coisas soltas no celeiro tornavam aquela madrugada ainda mais fantasmagórica, como se fosse possível.

Saltei da cama em desassossego quando ouvi movimentação no interior da casa. As vozes, por sorte, eram conhecidas. Minha mãe terminava de passar os braços pelo interior das mangas de um pesado casaco e meu pai procurava pelo chapéu que emolduraria seus cabelos. Assustaram-se com minha presença, mas sem muito enrolar pediram para procurar por algo que me protegesse da crueldade do vento. Sairíamos, eu entendi.

Não precisei perguntar pelo motivo que nos fizera de pé, pois calei abrupto quando avistei ao longe, na vila, chamas que lançavam-se obstinadas ao vazio da noite a encontrar o céu. Na altura dissipavam-se em um vermelho menos vivo, mas não menos assustador. Arregalei os olhos na direção da minha mãe e ela também encarou-me apreensiva.

Era difícil prever o que nos esperava lá embaixo, mas sabíamos que alguém poderia precisar de ajuda, e senão isso, apoio era sempre bem-vindo. Por pequena, a vila é unida e mesmo sob a face do ódio aquela ainda era nossa casa. Os nossos, os não de sangue, precisavam de bondade e ela já existia enquanto nos aproximávamos. Os meus dedos da mão estavam presos aos dedos da minha mãe. Ela era prece enquanto eu era instinto.

As chamas nos mostrariam o caminho se a vila não coubesse dentro do nosso campo de visão. Chegamos em pouco tempo e já sob o olhar de todos. Os rostos iluminados pelo vermelho vivo, as roupas regidas pela ventania, as labaredas desprendidas e os poucos bombeiros tentando domar a situação com a ajuda dos outros homens. Tivemos que enfrentá-los, eu e minha mãe. Meu Senhor correu na frente e atravessou a multidão para saber o que acontecia sob as chamas e o que as teria causado, minha mãe fez questão de manter-me junto ao seu corpo e tomou rumo à família que perdia para o fogo. O abraço das duas mães pareceu alertar aos demais que estávamos ali por paz e por bondade. Viraram-se todos e só assim consegui respirar.

Ganhei um abraço da mulher que logo voltou aos braços do marido e com a proximidade pude ver que as labaredas consumiam apenas a extensão da casa, como um cômodo à parte. Por sorte os vizinhos foram rápidos e conseguiram isolar as chamas àquele compartimento que rangia e estalava como se fosse algo vivo e reclamasse por um pouquinho mais de vida.

- Foi Ásmundur! - fez questão de cuspir o homem daquela casa quando minha Senhora perguntou a origem do desastre.

- Ásmundur? - Eu a vi tremer.

- Aquele animal - confirmou o homem com a boca cheia de ódio. - Tentou invadir o cômodo pela janela que era baixa. Achava que encontraria algo de valor e quando viu que ainda estávamos acordados, assustou-se como um bicho acuado. Tudo aconteceu muito rápido: não vi o rastro da aberração quando saí, mas as chamas lá dentro já corriam para todos os lados. Aquela besta...

Minha mãe suspirou pesarosa e puxou-me outra vez para a lateral do seu corpo. Mesmo em igual tamanho, o abraço dela ainda era seguro e me protegeria não mais dos olhos daquela gente, mas do homem que causara aquele novo alvoroço.

- Tomem cuidado no retorno, ele mostra-se ainda mais descontrolado. Talvez tenha sido a volta de...

- Eu já entendi. - Vi minha mãe frear qualquer intenção de uma mulher que se aproximava ferozmente. Faminta. Os olhos colados em mim eram curiosos e julgadores. As mãos seguravam um tecido grosso ao redor do pescoço e região inferior do rosto, cobrindo assim sua boca. - Tomaremos cuidado. Obrigado pela preocupação. - Ela emendou.

- Melhor mesmo. Há loucos na vila - a mulher sussurrou em claro deboche.

- Sei que você espera ver-me considerar a sua provocação, mas sinto em dizer que perdeu seu maravilhoso tempo. Eu não farei isso e não farei principalmente por você. Respeite-se - segredou minha mãe em resposta, ainda mais decisiva e direta. - Ponha-se para longe daqui - ela completou. - Este é um assunto encerrado. Há anos!

- Eu não dizia nada. - Mesmo parecendo desculpar-se, a mulher mantinha um riso na voz. Orgulhava-se da sua própria postura como um cão que chafurda o lixo dos outros e tenta espalhar a sujeira pela rua.

- Antes que você seja o próprio fogo...

- Mãe...

A mulher saiu sem chamar nenhuma atenção, mas ainda ria baixinho enquanto falava algo que propositalmente não era audível de onde estávamos.

- É dessa atitude que estou falando quando peço que evite a vila - ela continuou para mim, incitada.

- Procure outra pessoa olhando para nós - eu disse. Ela correu o lugar com os olhos. Mirou os rostos avermelhados que admiravam o fogo, as crianças aninhadas às pernas dos adultos, os homens combatendo as chamas que perdiam o tamanho e deixava que só os homens fossem violentos em suas defesas. - Não há outra pessoa se importando com nossa presença. Isso não quer dizer que não nutram por nós algum ódio, mas já é alguma coisa. Podemos mudar isso com o tempo. Olha lá, o pai está empenhando em mostrar bondade. Somos apoio e essa gente reconhecerá isso.

Ela suspirou, não aliviada, mas de guarda desmontada. De um paredão rigoroso, era naquele momento um arbusto ao vento. Bela, como era. Mãe. Eu a beijei carinhosamente na bochecha e a puxei para um apertão respeitoso, o que fez a Senhora sorrir.

- Eu disse que ficaria tudo bem.

- Não. - Ela respondeu apressada.

- Não?

- O fogo Andri.

- Ásmundur... - Deixei sair em um sopro.

- Ele quer chamar sua atenção.

Mesmo diante das chamas que ainda possuíam considerável poder de destruição, um arrepio passeou pela minha espinha e gelou todo o meu corpo. Revivi a sensação de estar próximo de algo que guardaria o desejo pela violência. De potencial maldade. O mais próximo que cheguei de enxergar-me no outro.

.

Era um dos dias da época em que a noite faz-se presente por quase as vinte e quatro horas. Era o meu aniversário e em poucos dias também era o de Ásmundur. Aos vinte a vida é um incêndio em dia de ventania. Sabíamos disso.

Estávamos escondidos naquele celeiro que alguma família abandonara ao deixar a vila e rumar para as terras menos perigosas. Fazíamos completos por nossa presença: seu corpo quente sobre o meu e ambos sobre um colchão velho que carregamos para o local a fim de termos algum conforto naquelas fugas não tão raras. Estávamos sujos de nossos pecados e gostávamos de experimentar nossos cheiros. Éramos beijos, apertões firmes e marcas de força estrategicamente medida, pois deveriam sumir em pouco tempo.

Com uma mão segurava o cigarro que tragava próximo ao meu rosto e com a outra mantinha aceso o isqueiro que usava. Divertia-se com a possibilidade de manter a chama acesa sem esforço. Era só abri-lo e deixar queimar. Gostava de assistir o fogo. A dança vermelha. Abaixo dele e da quentura, eu assistia àquilo através dos seus olhos iluminados. Queimávamos cada um em seu próprio corpo.

Aproximava a chama da língua exposta e fingia lamber o fogo. Dizia que adorava o sabor dele. Sempre depois do gole, um beijo. Queria assim dar-me uma prova do seu sabor recém aquecido. Era excitante o beijo e a vitalidade exercida em outras transas subsequentes à principal. Pedia-me para provar do fogo, mas não era essa minha vontade: eu gostava de vê-lo experimentar aquilo. Gostava de ser o expectador e às vezes o dono da mão que levava o isqueiro à boca macia que entregava-me beijos violentos.

Numa dessas brincadeiras o isqueiro escorregou da minha mão e caiu do alto da elevação de onde estávamos sobre um amontoado de coisas secas deixadas ali ao tempo. Em segundos havia uma chama que consumia em rapidez a madeira velha da parede. Aos risos nos vestimos, ainda cheirando a sexo, e nos deliciamos do fogo. Éramos a labareda que nos envolvia. A excitação da destruição, do beijo vermelho e quente e das chamas que quase tocavam nossa pele. A encenação do grito de dor de Ásmundur e o meu riso. Da nossa corrida para fora da armadilha quando esta deu sinais claros de que ruiria sobre nossos corpos miúdos e a excitação explícita do beijo em frente à imensa fogueira que restou.

house warming, lolrel.

Feliz aniversário, ele disse tendo o rosto iluminado pelas chamas que eram nossas.

- - -

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top