De quantos segredos se fazem as cores?

Era quase outono. Os campos já pintavam-se das esperadas cores da estação. Ainda havia flores, é claro, e essas são sempre selvagens. Nascem onde querem e quando querem. São numerosas e existem em colônias espalhadas pelo terreno sempre acidentado, de infinito sobe-e-desce. São como arbustos coloridos espalhados pela paisagem, pequenas porções de delicadezas que embelezam os extremos até onde alcançam os olhos.

Os dois turistas daquele dia não se controlavam com tamanha beleza. Nem eu, para falar a verdade. Sempre que descíamos do carro para uma caminhada, nos braços um do outro confessavam amores e trocavam beijos longos e muitos, como devem ser todos os beijos. Entre poses e gargalhadas que só paravam para que as línguas pudessem emendar-se, eu clicava os passos do casal, mas também me lembrava de deixá-los um pouquinho a sós, curtindo um momento tão deles e que no fundo eu invejava um pouquinho só.

O mais jovem era o mais animado e também o mais bonito. Sempre elétrico e expansivo, apressava-se em achar um bom lugar, em pedir outro ângulo. Só mais um clique enquanto eu beijo meu amor, dizia.

- Talvez abraçados também, não é?

É, talvez abraçados, eu concordava.

Movia-se rápido, sempre excitado. Tinha os braços curtos, como todo o corpo e encaixava-se dentro do abraço do maior, o mais velho. O sorriso deixava exposta sua jovialidade. Era bonito e vívido. Amoroso também. Com os olhos brilhando exibia a aliança no dedo e fazia o marido mostrar-me a sua. Orgulho de ser, eu vi.

- Acabamos de nos casar, mas essa não é nossa lua de mel. Já tivemos esse momento.

- Enquanto a rotina não pousa entre vocês dois, a vida será sempre uma lua de mel - eu respondi enquanto fazia aquela foto. O grande abraçava o pequeno por trás, mantinha os lábios pousados no pescoço curto. Devia ser quentinho e macio...

- A rotina não terá vez - respondeu-me aquele que parou o carinho para falar. O mais sério. - Esse aqui é tão rápido quanto um disparo.

- Então é mesmo impossível de segurá-lo - eu ri. - Segurá-lo e prever quando acontecerá.

- É... - Ele respondeu de lá, nitidamente desconfiado.

Foram muitas poses, beijos, abraços carinhosos e enrijecimentos desavisados. Eles não ligavam em demonstrar desejo em momentos íntimos e não seria eu o chato a avisar que em quase todas as fotos conseguia vê-los excitados.

Depois daquela tarde entre campos de marrons, verdes-musgo e outros pontinhos de cores mais vivas, eu os deixei na porta do hotel e ganhei, além da quantia combinada, um beijo quentinho e muito animado de cada membro do casal. Até do grandalhão de aparência sempre séria, mas que guardava um sorriso bonito e muito sincero. Prometi que ainda naquele final de tarde eles receberiam as fotos por e-mail e por isso corri ao café do Velho Baldur. As horas corriam e anoiteceria por volta das oito horas da noite.

Eu ocupava uma mesinha de madeira, o Velho Baldur sempre ancorado ao balcão passava os olhos pelo amarelado de um livro que pela capa entrega se tratar de uma antiga saga e ríamos toda vez que um turista entrava no local e expressava contentamento ao encontrar café quentinho. Sabíamos que ele somente mantinha o local aberto por minha causa e pelas fotos que já estavam sendo exportadas diretamente do programa de tratamento para o e-mail dos apaixonados de invejável beleza e comemoração.

Novamente ouvi o ranger da porta e mantive-me ansioso por descobrir, sem ver o dono dos passos, se esse era outro turista asiático. E não era. Não era mesmo. O cabelo curto e escuro escapava do gorro acinzentado e quase se escondia para dentro da gola da capa de chuva amarelada. Eu reconheci as costas, porque as vi enquanto caminhávamos, eu e ele, juntos para dentro de um veleiro noutra noite.

James, eu sussurrei para a tela que iluminava meu rosto. Se pudesse falar, perguntaria onde eu estive em todas as noites depois daquela em que fugira como fogem os bichos da noite quando o sol aponta no nascente.

Ele conversou alguma coisa com o Velho e riu-se inteiro de um assunto que era só deles. O café escolhido era um dos gigantes e vi que ele fora servido numa caneca de alumínio que carregava consigo. Quando virou-se, para não encontrar-me observando seus lentos passos, tive que desviar o olhar apressado e encontrei na tela justamente uma das fotos que acabou sob a infelicidade de não viajar com os pombinhos beijoqueiros. Mas não era eles ou o beijo e demais carícias o que chamou minha atenção, mas algo ao longe. Uma figura composta somente de contornos, como uma sombra. Vi um homem quando aproximei a imagem. Ásmundur. Não poderia ser outro.

O meu fechar abrupto do notebook revelou o susto que James tomou ao ver-me ser violento daquela forma, e revelei assim o meu susto ao vê-lo dividindo a mesa comigo, o que não fazia antes.

- Te assustei. - Era uma afirmação mesmo.

- Não foi você - disse no meio do leve tremor. - Digo, não me assustou não.

- Eu não queria falar com você, mas Baldur pretende fechar o café.

O Velho que aparentemente sempre sabe demais sorriu convencido de que fizera um bom trabalho ao me passar o recado através do homem de olhos penetrantes e inacreditavelmente azuis.

- Não queria falar comigo? - Já juntava minhas coisas e guardava na mochila que carregava comigo.

- Você disse que sabia onde me encontrar e achei que isso fosse uma promessa de retorno, mas não apareceu em nenhuma das noites seguintes. - Eu sorri silenciosamente e contido em minha arrumação. - De qualquer forma - ele continuou -, não queria incomodá-lo. De verdade.

A última frase foi dita enquanto já caminhava ao exterior do pequeno café. Ainda carregava algum líquido na caneca, e por isso os passos eram ligeiros, mas inseguros. Eu o acompanhei deixando um sorriso de agradecimento ao Velho Baldur que me cedera um pouco da sua internet e fiz James parar na calçada com um único toque sobre os ombros protegidos pela capa de chuva.

- Eu não apareci porque você é bom demais para mim. Bom demais para tudo o que sou. É isso!

- Pior forma de dizer que queria somente alguns beijos.

- Beijos? Ainda quero, mesmo achando que você é bom demais para qualquer um de nós desse lugar de coisas extremas e densas.

- Eu só salvo animais, Andri. Isso não é bondade, é obrigação.

- Agora você me calou por cem anos inteiros.

- Não era minha intenção - ele desculpou-se com o olhar, levando também a mão à testa como se demonstrasse merecer punição por isso. Eu poderia fazê-lo sentir-se ainda mais culpado, se quisesse.

- Calma que eu estou só brincando. E devo um pedido desculpa por deixar a promessa no ar.

- Você deixou. Aquilo lá foi sim uma promessa.

Notei que mesmo empenhado em manter aquela conversa, James olhava para o céu acima de nós sem disfarçar sua inquietação. O crepúsculo, eu observei. O sol também apressava-se naquele dia.

- Eu levo você até o porto. - Fui logo tornando impossível uma recusa por parte dele.

Depois de atravessarmos a vila até o porto, James saiu do jipe antes mesmo de completamente parado. Sem nenhuma palavra vi-me obrigado a segui-lo pelo longo píer até o final do caminho, junto da proteção que nos impede de cair na água gelada. O homem que estava naquele ponto olhou-me interessado por acompanhar o observador em igual pressa e silêncio, entregou o binóculo e saiu dali para junto dos outros que vi próximo do veleiro ancorado. Dali ouvi as vozes do que parecia ser o grupo de pesquisadores. Homens e mulheres. James deixava-me um pouco de lado para observar e contar em altura cada barbatana avistada.

São muitas. Muitas!, falou ao rádio que segurava junto dos lábios enquanto mantinha meu olhar no enquadro do seu. Mantinha-me ali mesmo quando eu sentia crescer o desejo em deixá-lo outra vez. Era a força que eu queria, mas não podia sentir. Era inteiro o nosso perigo.

- O que disse, princesa do mar? - Repetiu o homem do outro lado.

- Muitas. Ouso dizer que chegaram todas.

- E ainda estamos consideravelmente longe do inverno - observou a ruidosa voz sem rosto.

- Anote isso - disse o meu companheiro. - Que maravilha... - Terminou em um sussurro contente.

- Isso é obviamente algo bom.

- É ótimo - ele concordou comigo. - Sinal de que as minke consideraram que as águas estão seguras. Em outras palavras, nossa presença afastou os caçadores que esperam pelos animais antes mesmo do retorno deles à costa. Agora finalmente se sentem em casa.

- Isso é realmente ótimo - respondi em sussurro. - Só mostra que você é mesmo muito bom para nós. Para mim, especificamente.

- Deixe de tanta besteira e veja isso.

Entregou-me o binóculo, mas não só isso: também colocou-se atrás de mim unindo seu peito às minhas costas. Suas mãos deixaram o objeto para que pudessem estar em minha cintura e depois um pouquinho mais embaixo na altura dos quadris. Senti também que além de observador era um aproveitador nato: inspirava qualquer perfume que desprendesse da minha pele, pois sua respiração estava próxima da minha nuca descoberta. Talvez por respeito temesse um contato da sua boca com a região alvo dos seus minuciosos estudos.

- Os beijos ainda é uma opção?

Como não?

- Sinto que são ainda mais prováveis que uma desavisada fuga - eu confessei.

- Não ouse. Se eu acho baleias no vasto oceano, acho você pelo cheiro. Não duvide de mim.

Depois de tamanha ameaça eu só não beijaria o homem de lábios sorridentes se fosse louco - o que eu, de qualquer forma, admitia ser em primário nível. E então nos beijamos. Um de frente para o outro. As baleias alheias ao que fazíamos existir. Primeiro de forma vagarosa, deixando vir a lembrança de como era o nosso beijo, do sabor que tínhamos noutro dia e comparávamos com o forte gosto de café ainda presente daquele momento. Depois as línguas foram nosso foco. Uma dança tão bonita como a própria dança dos gigantes atrás de nós, no azul que dividia a profundidade com a noite quase totalmente formada. Não demorou e fomos um carinho louco que invadia a roupa quebrando seguranças construídas e camadas de nós mesmos, dedos que encontraram minha pele e instigaram intensa troca de calor, e por último, quando éramos suspiros ansiosos, o canto mais bonito dos mundos: o das baleias.

O riso de James encontrou o meu e entendemos o chamado sem precisar de outra bronca. Deliciosa bronca, aliás. A natureza nos exigia atenção e isso era justo. Não estávamos ali por elas?

- O meu segredo é ser bondoso demais, como você disse. O das baleias é, talvez, guardar todos os mistérios e respostas do mundo e eu diria que se comunicar com seres de outros planetas. - Ele riu outra vez abraçando minhas costas enquanto deixava-me observar as últimas movimentações visíveis dos bichos. - E qual é o seu segredo?

- O que guardo é sujo demais para alguém tão amável. Desista!

- Eu já enfrentei uma corja de homens armados, já saqueei um barco em movimento e em alto mar para salvar pescados de uma espécie em extinção, já levei uma manifestação à frente da ONU durante uma convenção e em todos esses momentos eu coloquei minha vida sob o risco da morte. Acha mesmo que temo um segredo seu?

Por achar que o meu riso fora de provocação, James apertou minhas costas em seu corpo e distribuiu beijos em minha nuca até que o meu cabelo se desmontasse inteiro. Nem isso parou o sedento por detalhes: continuou entre cabelos e carinhos que acordaram minha pele e os arrepios que moram nela.

- Eu vou fugir. - Anunciei.

- Agora?

- Está tarde. A proximidade com o inverno cria perigos que eu não quero enfrentar. Quanto mais próximo dele, mais horas de total escuridão. Bem-vindo ao extremo de todas as coisas. Bem-vindo ao meu extremo.

Já um pouco distante do homem que ficava, eram dedos ainda cruzados que nos mantinham ligados. James queria um pouco mais de mim.

- Eu posso te esperar? - Ele deixou pairar até mim.

- Quer mesmo correr esse risco?

- Por tais beijos, sim.

- Espere. - Consenti. - Eu sei onde encontrá-lo.

skies untold, day 188. belle.

Dessa vez ele sorria enquanto assistia o meu distanciamento. Mesmo em quase completa escuridão, os olhos ainda eram vivos e vistosos de onde eu estava. Eram vivos e completos, como era aquele homem que abraçava minha promessa. Outra que eu não pretendia cumprir.

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