A tarde (ou a vocação)

- Você não come? - Do outro lado da pequena mesa em um dos cantos da cabana sem janelas, olhou o prato ainda intocado que servira quando sentou para devorar a sopa que fizera de almoço.

Sabia que adentrávamos a tarde porque poderia verificar meu celular. Ásmundur não era nenhum idiota e tinha noção que naquelas partes da montanha não tínhamos nenhum sinal. Estávamos isolados, como são os bichos tantos e tão selvagens daquele lado. Como é a vegetação em estação outra e como é também aquela neve que fora tocada pelo louco. Estaríamos sozinhos se não fosse o vento a correr pelas paredes da cabana e a cantar suas músicas assustadoras. Quando os ruídos externos eram maiores que os feitos ali dentro, o louco gritava às paredes como se elas pudessem escutá-lo. Como se o mundo lhe desse alguma atenção. Às vezes ia até a madeira e grunhia como bicho acuado. A testa sempre colada aos rachões de secura e morte, a boca a dizer coisas inaudíveis, chorava como se assim pudesse sentir pena aquele que pesasse a mão sobre nós e depois ria. Gargalhava.

Sabia também que havia alguma claridade lá fora. Contávamos sempre as poucas horas de luz, pois seria noite quando os deuses novamente tomassem para os seus a alegria do sol. E no dia seguinte teríamos menos luz, e no outro também, até que o ano fosse completo e terrivelmente não houvesse luz por um dia inteiro. Mas ainda havia alguma claridade lá fora, e esse saber contrastava com a escuridão que Ásmundur servia.

- Eu perguntei se você não vai comer - ele engrossou a voz, tornando-se imediatamente medonho. Vi então que era isso que fazia para assustar por diversão. Tornava-se outro. Sempre outro e mais louco.

- Não sei o quanto é confiável sob esse seu estado emocional.

- Como combinamos em outros tempos, eu reparei uma cabana, um cama, uma lareira e até aquelas velhas poltronas. Eu não envenenaria sua comida. Isso é coisa de esposa traída.

- Esqueceu do revólver apontado para mim.

- Ah, isso - ele disse arrastando os dedos pela extensão do cano daquilo que descansava ao lado do prato vazio. - Não gosta dessa brincadeira?

- Não quando aponta em minha direção o que está sempre ao alcance dos seus dedos.

- Teme alguma coisa? Não foi com um parecido que matou Pascal?

- Eu já disse...

- Você atirou no meu irmão! - gritou ao interromper a negação pronta que eu serviria. - Você, Andri. Não sou tão louco assim. Há tanta coisa guardada aqui... - Terminou segurando o revólver contra a própria têmpora. O dedo sobre o gatilho. Pronto. Sempre pronto.

- Você é completamente pirado - eu disse em pausas. - Há tanta perturbação, medo, violência e trauma dentro da sua cabeça, que é fácil ter como real qualquer pensamento fantasioso. Você atirou em Pascal!

- Não era eu o homem que segurava o revólver sobre a barriga do meu irmão. Nem era meu o dedo posto no gatilho. Não eram os meus olhos colados nos dele e nem o meu corpo a ser coberto com o sangue depois do disparo.

Que cena bem montada, deixei sair num sussurro.

- Era inverno? - Ele perguntou.

- Não vamos reconstituir a cena do crime. O seu crime.

- Era inverno, Andri? - Ele insistiu novamente pegando a arma deixada em repouso sobre a mesa. Apontava outra vez na direção do meu peito. - Diga-me a estação que atravessávamos.

- Você sabe que era inverno - concordei finalmente.

- Sabia que ouvi os gritos antes mesmo de chegar às janelas daquela casa? Foi você quem primeiro notei através dos vidros e os seus olhos eram furiosos naquela noite. Você mataria aquele homem de qualquer jeito. Estava certo disso. Ele tentava, manso como sempre foi, tirar as roupas que você colocava euforicamente naquela bolsa. Cada peça que arrancava das araras era rapidamente tomada por ele. Quão ágil ele era em controlá-lo. Era a força dele contra a sua manipulação.

Ainda sentado e tendo a sopa fria sobre o meu lado da mesa velha, vi Ásmundur levantar e passear pelo pouco espaço livre do interior. O resto era lixo e entulho coletado ao longo dos dias. Era vagaroso com as palavras. Era outro, portanto. Queria minha atenção e queria que o escutasse com clareza. Desfrutava do prazer de confrontar-me e de reviver a violência daquela noite.

- Foram tantos os abraços que ele cedeu nas muitas tentativas de fazê-lo parar aquilo que fazia. Coitado! Em todos os abraços ele teve o peito estapeado, o rosto arranhado e a força que empregava para segurá-lo deixava marcas em seus braços. Eu vi dali. Aliás, como estava frio lá fora. Quase inventei um convite para entrar. Imagina, Andri, marido e amante no mesmo quarto? Mas você é cruel - ele disse gargalhando antes de continuar. - Você é muito cruel. Adoraria vê-lo descobrir dos nossos encontros e de como gostava de ser comido de verdade. Penso sobre o porquê de nunca ter dito de uma vez que tínhamos um caso de amor.

- Caso de amor? O que tínhamos sempre foi uma relação que nasceu da destruição. Éramos o fim do outro. Sempre estivemos prontos para o fim.

- "Não consigo encontrar um motivo para ir embora", me lembro de ouvir do seu marido. Sabe o que sempre imaginei como a resposta perfeita, Andri? "O pau do seu irmão" - respondeu em outra gargalhada estridente. Essa pôde ser ouvida além das paredes. Além da nevasca que não era mais uma força presente, mas algo que diminuía vagarosa. - O meu pau - ele fez questão de gritar no meio da risada. - O meu pau!

- E então o mundo começou a girar ao redor do seu menino - eu deixei escapar em um sussurro.

Voltado para mim e sério, caminhou lento e torto, de membros languidos e arrastados e passeou pelas minhas costas. Um animal quase morto a espreitar outro em espera pelo mesmo fim. Qualquer movimento meu arrancaria do louco uma reação de impossível previsão, então continuei sentado e deixei que ele fosse a proximidade que queria ser. Em contato com a minha pele, as unhas arranharam minha nuca quando ele tentou agrupar entre os dedos a maior quantidade possível de cabelos meus. Forçou o inclinar da minha cabeça e farejou eufórico o meu cheiro. Queria medo, eu observei, mas ainda assim não vi nenhuma frustração quando Ásmundur sentiu que não era isso o que eu exalava. Por inteira vontade, beijou toda a extensão do meu queixo, sentindo a frieza da minha pele com os seus lábios secos e duros.

- Nós pretendíamos fugir naquela noite. Somente eu e você. Somente isso: dois contra a sanidade do mundo. A ideia era bonita, mas perigosa - disse ao repousar seu queixo sobre o meu ombro. O revólver ele deitou sobre o outro desocupado. - Por isso eu carregava aquela arma sempre a cintura como um homem formado. Eu sempre achei que aquilo tornava-me maior. Isso - forçou a dureza do que segurava em meu ombro. - Isso aqui sempre me encantou. Como é bonito segurar tamanho peso. Como é boa essa destruição.

Não esperava de mim nenhuma palavra e por isso continuo mesmo sem motivações para isso.

- Vocês dois saíram ao frio que tudo era o lado de fora da casa. A neve daquela noite cobria e muito o asfalto. Você lembra? Afundávamos até a canela na coisa macia, mas sempre perigosa. Escondido, como sempre você preferiu, eu esperava no canto daquele jardim bonito, mas que morria ao ser coberto pela primeira nevasca. Aquela que nos oferecia a oportunidade de fuga. Mas você parecia ligado ao homem que pouco completava-o. Eu vi quando ele agarrou o seu braço e em suplicas pediu uma explicação, qualquer palavra, mesmo a pior delas.

Dizia as palavras com a clara intenção de fazer-me sentir cada uma delas. Queria a pior das minhas reações e por isso contive-me. Ele continuou, provocativo como era:

- E você parou para escutá-lo. Não parou? - Sua voz saiu tão próxima do meu rosto, que por sobrevivência tive que respirar o hálito escapado. - Você parou. Eu vi. Queria os lábios dele. Um último beijo romântico. Queria demais e você não me deu outra escolha, senão confessar ser a outra parte daquela escapada. A outra parte sua.

Eu suspirei. Era o que tinha para dizer: um suspiro pesado.

- Lembra como reagiu o homem? A total descrença dele foi meu alimento naquela noite. Continuou paralisado por algum tempo. Eu poderia tomar seu corpo naquele instante, que nada ele faria. Eu poderia arrancar sua roupa e tomar seu corpo inteiro, que ele continuaria imóvel como era. Todo tamanho e dor. Eu senti a dor dele. E aquela dor, ao amanhecer, seria ódio. E o ódio disposição. Ele nos procuraria. É claro que faria isso. Ele iria farejar o meu cheiro e nos achar onde fôssemos, porque você era dele. Pensava isso, que você era posse dele. Pensava que isso era amar. Pensava isso do sentimento.

Ásmundur cuspia cada palavra com a força de quem atira ao precipício o que já não cabe mais dentro. Cuspia violentamente. Se a loucura tinha uma face, a de Ásmundur representava bem. Falava enquanto inventava um carinho em meu rosto. De um lado com seus lábios eufóricos, do outro com a arma e o dedo sempre posto ao gatilho.

- Por previsão e vontade, só tínhamos um forma de evitar que o fim nascesse das mãos dele, Andri. - Ainda atrás de mim e inclinado sobre o meu corpo, levou a arma à frente do meu peito e a posicionou como se diante de nós esperasse a vítima. O meu dedo sobre o gatilho, o dele sobre o meu. - Você segurou com firmeza a arma que eu lhe passei à distância do abraço. Segurou e eu vi quando ela viajou ao espaço entre os dois corpos. Seu e dele. Eu vi o quanto tremia e queria aquilo. O quanto queria fazer o disparo atravessar o corpo do seu homem. O meu irmão.

Ásmundur não mentia. Cuspia as palavras com verdade, porque conhecia-me como nenhum outro. Sabia o que tinha dentro, porque experimentara isso diversas vezes. Quando viu-me ser o desejo por morte diante do celeiro em chamas, nas muitas fugas ao escuro da noite e que transávamos violentamente e deixava-me ser estrangulado até quase morrer. Experimentou comigo o começo do fim sempre pensado e a incapacidade de amar. Do sentir.

- Só o disparo separou os dois corpos. O dele guardava um buraco no peito. Rasgado, profundo, minava sangue em abundância. O seu era casa do sangue jorrado. Mas você era pequeno demais para a força de ser morte, e por isso apagou, menos morto que o meu irmão.

- E você deixou-me lá - eu disse ao largar a arma e sair de dentro dos braços que emolduravam meus ombros. Ele sentou no meu lugar e passou a observa-me. Vigiava cada passo e movimento. Previa-me.

- Alguém precisava ser culpado por aquilo. Melhor que fosse o menos louco de nós dois. Ninguém sabia o que escondíamos, a motivação da fuga e a tentativa dela. Ninguém poderia culpar um jovem de vinte anos que precisou matar por sobrevivência. O marido era violento - ele disse em sussurro, risonho. - O marido violento e você a vítima. Sempre gostou de ser Sempre guardou a loucura dentro, enquanto eu a exibia. É minha vocação - ele gargalhou.

Longe do homem, eu virei meu corpo em sua direção e o flagrei às gargalhadas. Pendia o corpo para trás, deixava cair a cabeça. O peito inflava, os olhos apertava. Gargalhava ao irmão morto e reivindicava a parte da morte que merecia. Ofertava-me, sem saber, o pescoço limpo de qualquer proteção. A grossura dele, a estrutura muscular, a pele esticada. Conseguia sentir dali a pulsação do sangue, o caminho que fazia, o cheiro tão característico. Por intuição, meus olhos saíram do pescoço para o fogão e sobre ele descansava a faca que o louco usara para preparar os legumes usados na sopa.

Se a vocação de Ásmundur era ser lugar de onde nasce a loucura, a minha era matar.

artyom tarasov.

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