Capítulo 30 - Sobre monstros e diferença

Sabe quando tudo está bem e do nada o "mundo" começa a ruir como ruínas? Sabe quando as coisas estão ótimas e uma avalanche vem e rouba os sorrisos? O que sentimos é desolação por ver as estruturas se abalarem como uma pólvora, assim que encosta no fogo... E foi exatamente isso que senti quando ouvi sua voz e vi o sorriso no rosto do meu amigo morrer.

Viro-me após notar o olhar de raiva de Mattheus. Queria poder expor a alguém como eu me sinto em relação a ela... Minha amiga, definitivamente, não é mais a mesma.

- Oi, casal! - Louise gritou. Isso foi motivo das reações mudarem.

- Lou, como você está? - Me aproximo dela, mas a morena se esquiva seguindo até o corpo de Mattheus.

Viro a tempo de vê-lo se afastar dos braços erguidos de Louise e o suposto abraço que ela lhe daria.

- Boa noite para você também, Louise. E não, não somos um casal. Você deveria respeitar sua amiga e ser educada quando ela for te cumprimentar. - Matt responde com uma expressão nada boa.

Lou revira os olhos, sorri irônica e diz:

- Vocês são tão bobinhos! - Ela balança a cabeça em negativa e prossegue dizendo enquanto ri: - Tá na cara que se gostam! Por que não param com a frescura e se beijam logo? - Ela gargalha e completa: - Ah, é, Letícia é puritana.

Arregalo meus olhos e percebo que Lou está trocando os próprios pés.

- Você está bêbada? - Pergunto incrédula.

- É claro que não! - Ela se defende e franze as sobrancelhas. - Assim você me ofende! - Diz e arruma os longos cabelos: - Vou saindo porque estou atrasada para uma sessão de fotos... Beijos! - Ela passa por nós e aperta o botão do elevador que imediatamente abre suas portas.

Vejo Louise acenar e mandar um beijo na direção de Mattheus. Ele abaixa a cabeça e a balança, provavelmente, incrédulo com o que acabou de acontecer, assim como eu.

- Eu discordo das coisas que ela disse sobre você, tá bom? Só não me intrometi no assunto porque estava, e ainda estou, com os nervos exaltados. - Ele me observa e depois de um tempo suspira pesadamente.

- Está tudo bem. Me desculpe por você ter que ouvir essas coisas. - Digo alisando meu braço, deixando nítido meu desconforto.

- Não me peça desculpas por um ato que nem foi seu. Eu iria te defender, mas não sairia nada bom da minha boca, então preferi mantê-la fechada. - Tento sorrir para amenizar o clima, mas não sei se dá certo.

- Vamos entrar e comer alguma coisa. - Sugiro e seguimos rumo ao apartamento.

Assim que adentro, noto que Lucas não se encontra.

- Parece que seu irmão não está em casa. - Matt diz, enquanto sigo em direção as portas que dão para a varanda.

- Estava pensando isso agora mesmo. Ele saiu às pressas do hospital, coitado. - Abro as portas e viro-me para meu amigo. - O que acha de pedirmos comida após um banho? Preciso tirar essa roupa e acredito que você também.

Mattheus assente e segue em direção ao seu quarto. Vou para o meu, notando como o dia de hoje foi longo e cansativo. Acho que se fosse uma história daria vários capítulos repletos de drama e chororô.

Assim que entro no cômodo noto a bagunça que Louise deixou; roupas espalhadas, portas do guarda-roupa abertas, cama dessarumada, sapatos espalhados pelos cantos e maquiagem na cômoda. Um suspiro abandona meus lábios, enquanto as dúvidas sobre o comportamento de minha amiga tomam minha mente.

Resolvendo deixar isso de lado, junto rapidamente a bagunça que está no quarto e tento amenizar a desordem. Pego uma bermuda jeans e uma blusa de manga, enquanto escuto mensagens chegando em meu celular, mas ignoro todas seguindo para o banho.

Assim que adentro em baixo da água fria, sinto os músculos tensos relaxarem, enquanto o peso de tudo que aconteceu no dia de hoje cai sobre mim. Susurro em oração pedindo mais forças a Deus e o agradecendo por tê-lo em minha vida. Eu reconheço que sou fraca e que se não fosse pela força do Senhor sobre minha vida, eu não conseguiria aguentar nada, então somente agradeço-o por me sustentar e, acima de tudo, amar.

Assim que retorno para a sala vejo Mattheus sentado no sofá com o olhar distante. Ele está pensativo e seus olhos estão focados na tevê desligada.

- Tudo bem? - Indago me aproximando. Ele nota minha presença assentindo com a cabeça.

- Não sei como ainda consigo viver todos os dias.

- Por que está falando isso? - Pergunto sentando-me ao seu lado no sofá.

- Letícia, eu sofri muito no decorrer da minha vida e eu não consigo, simplesmente, esquecer o passado e seguir em frente. - Sinto a dor em suas palavras.

- Mas você não precisa esquecer o passado para prosseguir, até porque, não conseguimos esquecer nossa vida. Você só tem que entender que passou... Ficou para traz e que você não vive mais naquela situação... Não é possível apagar nossa memória, então precisamos aprender a lidar com ela. Mesmo que doa, as lembranças estão em nós para sabermos o que podemos melhorar e de onde viemos. O que somos hoje é o resultado do nosso passado e mesmo com nossas falhas, erros e acertos foi o passado que construiu quem somos hoje.

"Os erros ficam para nos alertar do que não podemos fazer novamente. Os acertos são a base do nosso crescimento. Somos o que somos porque temos um passado. Imagine como uma pessoa sem memória vive? Ela não tem uma base, um respaldo para se guiar. Não sabe o que gosta, não entende porque certas coisas são tão importantes para ela, porque o modo que ela poderia entender se perdeu junto às memórias. Eu não sei o que aconteceu na sua vida, mas sei que você precisa aceitar ou perdoar o que aconteceu para...

Mattheus se levanta rapidamente e sai as pressas para a sacada. Pisco meus olhos tentando entender o que acabou de acontecer e me levando seguindo-o.

- O que houve? Desculpa se falei algo errado. - Matt está em pé com o braço apoiado no vidro e de costas para mim.

- Como eu posso aceitar um erro, Ruiva? - Tento controlar as batidas do meu coração, pois estou sentindo a tristeza dele no tom de sua voz.

- Você não deve aceitar um erro, Matt, até porque isso é errado. Mas você precisa entender que coisas erradas acontecem e nem sempre podemos mudar isso. Mas não significa que aceitamos o erro, só entendemos que não temos o controle do mundo nas mãos.

- Eu-eu... - Me aproximo de seu corpo e o abraço pelas costas. Mattheus funga e só então noto que está chorando.

- Você pode conversar comigo, Matt... Eu sou sua amiga e posso tentar te ajudar, ou pelo menos te ouvir. As vezes só precisamos aliviar o peso do peito.

Ele se vira e me abraça novamente, enquanto chora em meus braços. Sento-me no chão e o trago junto comigo. Nos encostamos na parede, enquanto Matt está com a cabeça no meu pescoço e os braços ao redor de minha barriga. Ele chora intensamente e eu permaneço fazendo carinho em seus cabelos, enquanto começo a sussurrar uma canção:

- A noite chegou e eu estou a clamar
O medo chegou e eu estou a chorar
Mas tua palavra diz:
"Que o choro pode uma noite durar
E pela manhã a alegria virá"
Mas senhor a noite é longa e demora passar
E os meus inimigos estão a zombar de mim
Porém olho para o céu de onde me virá o socorro

Então ouço a Tua doce voz a me acalmar
Eu estou contigo não te deixarei
Durante a noite tua voz ouvirei

Passo a noite contigo pra te guardar
E pela manhã minha promessa em tua vida
Se cumprirá...

Eu sou o Deus do dia o Deus da noite, da madrugada
Eu sou o teu abrigo estou contigo
Não te deixarei...
Eu estou contigo não te deixarei
Durante a noite tua voz ouvirei
Passo a noite contigo pra te guardar
E pela manhã minha promessa em tua vida
Eu estou contigo não te deixarei
Durante a noite tua voz ouvirei
Passo a noite contigo pra te guardar
E pela manhã minha promessa em tua vida
Se cumprirá...
E pela manhã minha promessa em tua vida
Se cumprirá...
E pela manhã minha promessa em tua vida...
Se cumprirá...

Assim que acabo de louvar, ouço sua voz arrastada:

- Se-será que o meu a-amanhã vai... Chegar pra-pra mim algum dia? - Ele levanta seu rosto e me pergunta, enquanto gagueja por causa do choro que não cessa.

- Te dou a certeza com toda minha vida. - Digo secando suas lágrimas. Mattheus se afasta de mim somente para se sentar corretamente e olhando em meus olhos começa a dizer:

- Eu fui tomar banho como combinamos e... E, eu senti, como em todas às vezes, as mãos deles passando em meu corpo e me tocando. - Suas lágrimas descem, enquanto eu processo suas palavras e luto contendo as minhas. - Eu nunca esqueci de nenhum momento da minha infância porque as marcas que eles deixaram em mim ficaram enternizadas em meu interior...

"Quando eu ainda era um piralho de nove anos, minha própria mãe começou a me vender para os homens em seu bordel. O lugar que eu deveria chamar de lar era conhecido por casa vermelha e por "despertar o prazer oculto do corpo". Esse era o letreiro na sala... - Suas lágrimas rolam, enquanto as cenas passam em minha mente e meus olhos se enchem de lágrimas. - Eu não entendia nada no início, mas depois comecei a entender que eu era um comércio para ela; onde era alugado por horas, oferecendo prazer para homens que só queriam se satisfazer... Todas as vezes que eu me recusava a fazer o que ela mandava, era uma surra que recebia dos seus "seguranças". Minha vida e meus sonhos foram todos roubados para que a satisfação deles fossem consumidas... Eu comecei a me isolar e achar que todos os homens na rua me desejavam. - Um soluço abandona seus lábios e ele esfrega o rosto tentando controlar o choro".

- Vo-você não precisa terminar se não quiser. - Digo controlando minhas lágrimas. Não quero que ele se sinta mal por eu derramá-las.

- Eu-eu preciso dizer para você... Tem muitos anos que não falo sobre isso com ninguém. - Assinto com a cabeça e ele prossegue dizendo: - Eu andava com medo pelas ruas e isso só diminuía quando eu estava com o seu irmão... Lucas foi o único que me ajudou e notou todas as mudanças. Ele percebeu que eu não saía mais nos finais de semana, não queria participar das aulas de educação física, que eu amava, e que eu nunca mais podia jogar bola na rua com ele... Ághata tinha tantas restrições... Se eu não fizesse as coisas como ela mandava, ou se os "clientes dela" reclamassem que eu havia chorado ou gritado de dor, ela me proibia de ver minha avó e de ir para a escola... E ela só não me tirou porque levantaria suspeitas... - Ele tenta controlar os soluços, enquanto esfrega o rosto.

"O pior eram os machucados que ficavam tanto na minha alma como na pele. Eu não aceitava tudo que ela fazia comigo por isso diversas vezes tentei fugir, mesmo sabendo que levaria uma surra, mas como sempre fui teimoso, eu sabia que valeria a pena se conseguisse sair daquela casa... Existia um cômodo no final do quintal com ferramentas e eu nunca me esqueci de nada, mas essa foi uma das piores porque foi uma das primeiras... Eu tentei escapar, mas os seguranças me pegaram e ela os autorizou que me levassem para lá e fizessem o que quissesem comigo... Nesse dia eles me deram uma surra e em seguida abusaram de mim..."

Matt para sua fala, pois seu choro aumenta. Trago-o para meus braços, enquanto ele se entrega ao choro compulsivo. Aperto-o no abraço, tentando mostrar que ele não está sozinho e tentando aplacar sua dor. Oro em pensamento pedindo forças ao Senhor, porque sem Ele eu não consigo.
Matt se afasta um pouco, tentando controlar o choro e prossegue dizendo:

- Eu me lembro desse dia porque um pouco depois disso ela começou a me ameaçar dizendo que eu nunca mais veria a minha avó. Quando eu levava as surras, não podia sair e quando alguém chegava de surpresa, ela mentia dizendo para todos: "Como ele é levado! Caiu tentando pular da janela dizendo ser o homem aranha..." As pessoas riam falando que eu era um adolescente inocente, que ela devia agradecer porque eu não estava na rua metido com pessoas erradas, e mal sabiam eles que eu morava com monstros dentro de casa... Eu me lembro também que eu não tinha medo dos monstros debaixo da cama, porque talvez eles me protegessem dos monstros da humanidade. Incontáveis foram as vezes que pedi para que eles me buscassem apenas para eu ter uma noite tranquila de sono... Eu-eu ainda recordo das vezes que ela me elogiava dizendo que eu era o preferido dos seus clientes e de como eu era sortudo porque eles queriam me dividir... Uma vez eu entrei dentro do quarto pensando que teria paz... - Ele funga e liberta uma leve risada amarga, dizendo: - Como eu era bobo, achava que quando eu fechasse a porta do meu quarto iria poder chorar e me ver livre de todos, mas por vezes tinham dois ou três homens dentro do cômodo escuro me esperando... Eles me obrigavam a fazer tudo que satisfizessem a eles, alguns gravavam, outros pediam por mais horas... Eu vivia preso naquela vida e pensava que nunca me livraria... Quando eu ia para a casa da minha avó, tinha pesadelos e por isso aquele quarto na casa dela me traz tantas lembranças ruins... Por vezes pensei que eles iriam atrás de mim lá, que eu entraria no cômodo e eles me surpreenderiam me encurralando... Eu vivi minha vida com medo. A única forma que eu achava em me livrar da tormenta dos pensamentos era me cortando... A primeira vez foi quando aconteceu no início de tudo porque eu não estava sabendo lidar com o que acontecia. Ver o sangue saindo de mim, aliviava as feridas internas que estavam em minha alma... Era masoquista o pensamento que eu tinha; amava e ainda amo, quando consigo arrancar a dor do meu corpo e ver o sangue escorrer, pois eu me fixo tanto na dor do corte que as feridas que habitam em minha alma se calam..."

"Quando eu comecei a beber e me drogar foi o ápice do alívio, porque a ilusão do corte estava sendo tão passageira e eu sempre queria ficar mais tempo "inconsciente" das dores da minha alma, então eu ficava bêbado... Isso me dava satisfação e era algo meu e ninguém se importava em tirar, a não ser o seu irmão. Lucas foi um amigo que me sustentou e eu nunca vou esquecer sua ajuda, seu apoio e dedicação... Minha avó não sabia de nada e... Tadinha, ela se preocupava tanto comigo. - Ele para de falar e puxa sua blusa esfregando no nariz. Matt tenta controlar o choro, mas está impossível."

- Matt... - Ele balança a cabeça em negativa.

- Eu consigo terminar... Eu-eu preciso, Ruiva. O peso aqui dentro do peito está muito grande. Não estou conseguindo suportar mais... Eu-eu... - Puxo-o para os meus braços novamente e dessa vez seu corpo despenca sobre o meu. Balanço-o entre meus braços, enquanto ouço seu choro e tento conter o meu. Continuo clamando pela presença do Senhor e pedindo Seu consolo. Matt começa a dizer de novo, mas dessa vez ele permance no abraço, com a cabeça em meus braços: - O meu tio me resgatou quando eu tinha dezessete anos. Ele sempre viajou muito para estudar e aumentar o dinheiro que ficou da herança de seus pais, meus bisavós tinham uma renda boa que adquiriram no decorrer de suas vidas sendo cirurgiões plásticos, eles se conheceram na faculdade e tiveram um casamento longo e feliz... Acho que ser médico está na genética da família. - Ele soluça e continua lutando para falar tudo: - Minha avó foi o oposto e sempre amou ser costureira e ela até tinha sua própria confecção, mas desistiu de tudo quando Ester nasceu... Então, meu tio estudou e trabalhou muito e quando ele voltou para o Brasil começou a achar estranho o comportamento da Ághata e meu distanciamento. Com a ajuda do seu irmão, eles acabaram com o bordel da casa vermelha... - Matt para sua fala e se afasta puxando a blusa e esfregando novamente no rosto. Ele permance em silêncio e suas lágrimas descem pelas bochechas pingando em seu colo. - Eu-eu nun-nunca me esqueci de nada, Ruiva... - Diz soluçando.

- Chega por hoje, tá bom? - Digo secando suas lágrimas e ele assente.

Puxo-o novamente para os meus braços e o abraço apertado tentando consolar seu coração.

- Eu posso fazer uma coisa? - Pergunto fazendo uma carícia em seus cabelos. Ele assente somente, enquanto soluça. - Paizinho, eis-me aqui em Tua presença, primeiramente, te agradecendo por cuidar das nossas vidas e zelar pela nossa saúde. Nos perdoa pelos nossos pecados, pensamentos e por todas as vezes que viramos as costas para a Tua palavra... Paizinho, O Senhor conhece o meu coração e sabe como ele se encontra neste momento e também sonda e conhece o interior do Matt... Paizinho, a alma e o espírito dele precisam tanto da Sua cura, do Seu acalento e do Seu consolo, Senhor... Clamo por Sua presença nesta hora, para que o Senhor faça aquilo que homem nenhum pode fazer, que Seu poder e Amor adentrem nos lugares mais profundos do coração dele e supra a necessidade de sua alma... Eu Clamo nesta hora, em nome do Seu filho Jesus, para que O Senhor abra os olhos dele e a mente do meu amigo, Pai, para que ele compreenda que, infelizmente, não temos o controle do mundo nas mãos e que a culpa não é Sua, Deus, pela maldade do homem. Tome meus lábios e que O Senhor venha me usar da forma que quiser... Te louvo e rendo graças ao Teu nome porque sei que O Senhor vai conceder o desejo do nosso coração, em nome de Jesus, Pai. Obrigada por tudo, amém.

Abro meus olhos e percebo que o corpo de Mattheus relaxou sobre o meu e acabo notando que ele dormiu. Assim que tenho a certeza deixo meu corpo relaxar e as lágrimas deslizarem. Meu coração se enche de compaixão pela vida dele e o peso de tudo que confessou deixa meu interior cheio de tristeza por ele. Temendo que Matt acorde, permaneço no mesmo lugar e na mesma posição segurando-o entre os meus braços.

(..)

Pisco meus olhos sentindo-os pesados de sono, mas não me deixei guiar por ele. Mais de uma hora se passou e Matt não mudou sua posição. Confesso que meu corpo está doendo e com câimbras. Já mexi um pouco os pés, mas tenho medo de acordá-lo. Minha barriga ronca novamente e dessa vez Matt remexe-se e levanta brutalmente com os olhos arregalados.

- O-o que aconteceu? - Ele estica o corpo e eu aproveito e faço o mesmo, não conseguindo evitar uma careta de dor. - Eu dormi?

- Sim, mas não tem problema. - Digo lhe dando um sorriso.

Matt me observa atentamente e eu lhe observo de volta. Seus olhos passeiam pelo meu rosto observando cada traço.

- O que foi? - Digo esticando minha mão e juntando com a sua.

- Obrigado. - Ele aperta minha mão de volta e eu olho para os nossos dedos entrelaçados e franzo o cenho olhando-o novamente.

- Por que está me agradecendo? Eu não fiz nada.

- É por isso mesmo, Ruiva. Você não me lançou um olhar de pena e nem de discriminação... Pode parecer loucura, mas são coisas que passam em minha cabeça. - Suspiro entendendo o que ele quer dizer.

- Somos amigos e sempre estarei aqui para te ouvir e tentar ajudar. - Digo apertando novamente nossas mãos unidas. Inesperadamente Matt puxa-me com o outro braço e me abraça apertado, enquanto continuamos sentados no chão da sacada.

Permancemos assim até meu estômago roncar novamente e Matt se afastar com um pequeno sorriso nos lábios e olhos inchados por causa do choro.

- O que você acha e pedirmos a comida que tínhamos combinado? Também estou com fome e nem lembro qual foi minha última refeição.

- Só almoçamos na sua avó, lembra? - Ele assente e se ergue, puxando-me junto ao seu corpo.

Seguimos em direção a sala e Matt pega seu celular e se senta no sofá, acompanho seus atos e me junto a ele.

- O que acha de pedirmos um X-Tudo? - Pergunto sorrindo.

Matt me observa com os olhos centrados. Percebo que ele tenta esquecer tudo que me disse a mais de uma hora atrás, mas é difícil.

- Uma médica como você querendo comprar um "podrão"? - Sorrio dando de ombros.

- As vezes podemos inovar. - Ele balança a cabeça negando.

- Concordo com você. - Ele diz e faz o pedido. - Daqui a quinze minutos vai chegar. - Meneio a cabeça em concordância e relaxo meu corpo no estofado. - Cansada?

Abro os olhos que tinha acabado de fechar e viro a cabeça para olhar o rosto de Matt.

- Um pouco. O dia hoje foi corrido, né? - Indago tentando tirar o foco de mim.

- Sim. - Ele suspira e joga a cabeça nas costas do sofá, imitando meu gesto e relaxando o corpo. - Já tinha visto minha vida de cabeça para baixo várias vezes, mas quando se trata da minha irmã... Eu fico sem chão.

- É normal se sentir assim... Foi sua irmã, sangue do seu sangue e uma criança. A gente fica abalado quando acontecimentos assim ocorrem. Mas graças a Deus que ela está bem e fora de perigo. - Tento amenizar os danos de tudo que aconteceu hoje.

- Não sei o que seria de mim sem você. - Ele me observa de volta e sorri sem mostrar os dentes.

Nos meus pensamentos eu gritei: "Quero ver quando você notar isso sobre o amor de Jesus". Mas preferi guardar o comentário para mim, por enquanto.

Até porque depois que experimentamos do amor dEle, tudo muda em nós.

- Somos amigos e estamos aqui um para segurar a mão do outro. - Ele assente com a cabeça e olha para o teto, enquanto divaga em pensamentos.

Apreciei o silêncio que pairou no ar e deixei o assunto se calar da mesma forma que estamos.

(..)

Assim que a campainha soou Matt e eu quase pulamos assustados com o barulho. Permanecemos em silêncio assim que ele parou de me responder e entendi que meu amigo só queria ficar pensando.

Nos levantamos dando risada porque quase tombamos do sofá.

- Pode abrir a porta, por favor? Vou pegar uma coisa que esqueci. - Assinto para ele enquanto vejo-o seguir para o corredor.

Abro a porta depois de ver Matt sumir entre as paredes e vejo o rapaz pronto para tocar novamente a campainha.

- Boa noite. - Ele diz sorrindo e abaixando a mão que estava levantada.

- Boa noite. - Ele retira uma pequena caixa de dentro da mochila térmica e fecha abrindo um zíper lateral, retirando de lá um refrigerante. - Quanto deu?

- Vou conferir o pedido, só um instante. - Ele me entrega os lanches e puxa do bolso papéis com os pedidos. - Desculpa demorar tanto. Não queria fazer uma mulher linda como você esperar, mas me perdi no prédio.

- Ninguém te perguntou. - Tomo um susto com a voz de Mattheus atrás de mim e automaticamente ponho a mão no coração, ficando atrapalhada com o lanche. - E você dá em cima das clientes no ambiente de trabalho?

Vejo o rapaz ficar vermelho de vergonha e totalmente sem reação.

- Desculpe. - Ele diz e Mattheus lhe entrega uma nota de cinquenta reais.

- Fique com o troco. Vamos, Ruiva. - Mattheus pega as coisas de minhas mãos e volta para dentro. Olho-o andando apressado e bufando e quando viro para me desculpar com o rapaz ele está dentro do elevador com uma expressão amedrontada no rosto.

Tento falar algo, mas as portas se fecham tão rápido que eu mal tenho tempo para processar tudo que aconteceu.

Volto para dentro do apartamento e vejo Matt, bem pleno, arrumando os pratos na bancada, um de frente para o outro.

- O que acabou de acontecer aqui, Sr. Bipolaridade? - Cruzo os braços indagando.

- Não sei do que você está falando. - Ele diz e abre o armário pegando os copos.

- Só isso que você vai dizer em sua defesa? - Me aproximo da bancada com o cenho franzido.

- Quem faz defesa é o Lucas e não eu. - Cerro meus olhos em sua direção, mas o bipolar nem me olha de volta.

Sento-me na cadeira de forma brusca e fico calada. Mattheus abre o refrigerante e coloca nos copos. Fico em silêncio e começo a comer o X-Tudo evitando comentar como o lanche está bom. Matt foi um ignorante na forma que falou com o rapaz, e mesmo não gostando do modo que ele se direcionou a mim, não justifica tratá-lo mal.

Se tem uma coisa que eu aprendi é que não devemos tratar o mal com o mal. Se somos filhos de Deus, devemos explanar amor e dar bom testemunho, independente das falhas e erros. Não somos melhores do que ninguém. Cristo morreu e ressuscitou por amor a nossas vidas e o que devemos fazer é viver o evangelho verdadeiramente, não de forma rasa e nem nos sentindo superiores a ninguém. Devemos amar como Cristo ama a igreja.
Precisamos olhar para dentro do nosso eu e reconhecer que não existe nada em nós que justificasse Cristo se entregar à morte por nossas vidas, mas por sua graça e misericórdia recebemos a dádiva da vida; o privilégio de renascer nEle e ter uma vida abundante.

Se não existe nada de bom em nós, por que vamos olhar com olhos julgadores e acusadores para aqueles que cometem erros e falhas? A verdade é que somos idênticos àqueles que falharam quando cometemos o erro de julgar e o que nos separa deles é o fato de sermos filhos de Deus, por termos aceitado a Jesus. Contudo, quando cometemos o erro de julgar e condenar, estamos, novamente, recusando a nova vida que Cristo nos deu na cruz do calvário. É tão fácil, simplesmente, condenar e apontar o dedo para os pecados dos outros que isso acaba nos cegando a tal ponto que achamos que somos os santos, só por termos aceitado a Jesus em nossas vidas, sendo que Cristo veio por todos e por amor a todos, principalmente, aos pecadores e não aos que se acham justos, então devemos parar com essa mania de criticar e achar que somos os donos da razão, pois tudo que há de bom em nós, vem de Jesus. E a partir do momento que saímos da posição de amigo e nos colocamos como juízes de vidas, abandonamos o que existe de bom em nós... Que é Jesus!

Então, que venhamos voltar as práticas do amor, reconhecendo que todos merecem ser compreendidos e corrigidos, mas isso com sabedoria e com base na palavra de Deus e não com nossos achismos e opiniões. Que venhamos entender que o mundo peca pela falta de conhecimento da verdade e cabe a nós levarmos a palavra aos perdidos e aos sozinhos. Cristo nos chamou para pregarmos a palavra para toda criatura, então precisamos de discernimento e sabedoria para saber que ao invés de julgar devemos levar a palavra e o amor dEle a toda e qualquer vida... É isso que o mundo precisa!

(..)

Levanto assim que acabo de comer e lavo tudo que usei. Matt colocou os utensílios na pia e virou as costas e saiu da cozinha. Puxo fortemente a respiração e controlo a vontade de gritar que ele não tem educação. Não tem nada pior para quem está acabando de lavar louça, alguém vir e colocar mais coisas na pia!

Após organizar tudo, apago as luzes da casa e sigo para o meu quarto. Vejo a tela do celular acessa e constato uma mensagem de meu irmão dizendo que está na casa do nosso pai. Agradeço a Deus por ele estar bem e sigo para um banho demorado, orando e pedindo forças a Deus para continuar me sustentando com tudo que tem acontecido.

Após sair do banho e escovar os dentes, me ajoelho orando, mais uma vez, e desabafando com o Senhor:

- Paizinho, O Senhor sabe como estou triste por tudo que ouvi hoje... Saber que existem mães que entregam seus filhos para sofrerem para ganharem dinheiro, entristeceu meu coração. Sabemos que prostituição, consumo de drogas e violências acontecem todos os dias, mas quando percebemos que isso acontece perto de nós, nos espanta de outra forma, Senhor... - O choro chega aos meus olhos tão forte que sinto as lágrimas pingarem em minhas mãos. - Deus, enquanto falo contigo as cenas se passam em minha mente e... E isso mexe comigo... Pai, peço teu socorro, o teu auxílio e ajuda, Espírito Santo de Deus, clamo por Sua presença nesta hora, pedindo para socorrer a alma do Matt, Senhor. Faça aquilo que o homem não pode fazer e vá no profundo de sua alma... Não permita, Paizinho, que minha alma se entristeça, mas te peço para continuar me sustentando, em nome de Jesus, Pai, te louvo e te agradeço por tudo, em nome de Jesus, amém.

Deito em minha cama sentindo as lágrimas escorrerem por meu rosto, mas com a certeza que Deus vai agir em favor da vida do meu amigo.

(..)

- NÃO!

Levanto da cama assustada, ouvindo o grito de Mattheus. Sinto meu batimentos acelerados e novamente ouço seu grito:

- NÃO!

Saio correndo da cama, tropeçando entre o lençol e notando que Louise ainda não chegou. Assim que chego na porta do seu quarto noto que ela está aberta. Empurro a madeira sem pensar e vejo seu corpo em cima da cama se debatendo.

- Ei, Matt. - Me aproximo rápido com lágrimas nos olhos, enquanto sinto sua dor através dos gritos.

Assim que me aproximo noto seu rosto molhado pelas lágrimas que escorrem. Sento-me ao seu lado na cama e puxo-o com todas as minhas forças trazendo-o para os meus braços.

Mattheus arregala os olhos e se desvencilha de mim piscando os cílios e tendo sua respiração descontrolada. Assim que ele me reconhece se joga em meus braços e começa a chorar. Abraço-o apertado controlando o choro que tenta sair de dentro de mim.

Ele permanece agarrado ao meu corpo chorando e soluçando em minha blusa. Clamo pela presença de Cristo e sinto-o me sustentando. Vejo o dia clarear sentada na cama com Matt agarrado ao meu corpo. Assim que ele se acalma, levanta os olhos inchados e perdidos em minha direção dizendo:

- Eu-Eu preciso de ajuda.

(...)

"Confessar que necessita de ajuda para sair de uma situação não é um ato de incapacidade, mas sim de coragem para se libertar do que te aprisiona".

Thayla Fernanda.

E aí, gente, tudo bem?

O que acharam do capítulo de hoje?

Palpites?

Beijos e fiquem com Deus!

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