Capítulo 7

2101 Palavras

Aproximadamente 100 anos depois...

Um desagradável ruído ecoa em meus ouvidos. Um som que se assemelha a uma contínua corrente de vento bem acima de mim, o qual nunca senti tocar em minha pele.

Vez ou outra, escuro o que se assemelham a gritos em desespero, ou lamentações solitárias. 

Apesar de não haver nada além de mim aqui, sinto o calor sufocante deste espaço, e sinto o suor escorrendo pela minha pele. Um calor que vezes é assim, em outras cresce numa intensa labareda que causa uma dor enlouquecedora, e em outras sinto-me submergir num líquido escaldante que por várias vezes sinto que derreterá meu corpo.

Quando a chama cessa ou o líquido abaixa e desaparece, o calor permanece queimando minha pele, até que eu sinta a dor desaparecendo, e tudo mergulhando no silêncio novamente.

O contrário também ocorria. O frio recaia sobre mim vez ou outra, de forma que sentia meu corpo congelar, e por muito sentia as garras gélidas invadindo meu corpo, e tremores me invadiam, até que por fim o frio desaparecia.

Outras vezes, escuto um ruído alto logo acima de mim. Quando escuto esse ruído, já sei o que se aproxima por entre a escuridão.

Primeiro as várias risadas, maléficas e travessas junto com o barulho de algo arrastando lentamente, ecoando por todos os lados. Logo em seguida, golpes rasgam as sombras e me atingem em vários pontos, impactos e cortes, seguidas por lanças frias que atravessam meu corpo, causando novos picos de dor. E isso perdura, por muito e muito tempo.

Sei que tudo acabou quando os golpes cessam, os sons arrastados se repetem, e uma batida pode ser ouvida não muito longe de onde estou.

E em meio ao silêncio, as dores perduram, até desaparecerem novamente.

Não sei por quantas vezes passei por isso. Perdi a conta de quantas vezes estive à mercê da dor.

A princípio eu reagia. Eu gritava. Debatia meu corpo com as poucas forças que me restavam tentando escapar daquilo que meus olhos não conseguiam enxergar.

Mas nunca adiantou, e então parei de tentar. Parei de gritar. Parei de lutar.

Mesmo que o medo ainda surgisse em meu peito, e ainda tremesse assustada em qualquer ruído.

Parei de esperar por uma salvação.

Não tinha mais força para isso, e em cada nova condição que esse espaço sombrio lançava sobre mim, eu não reagia. Tudo que este lugar recebia era meu silêncio.

Silêncio...

Agora que percebo, o silêncio está durando mais tempo que de costume.

Ouço o ruído logo acima de mim, e sei o que está vindo. Demorou, mas ainda assim veio.

Mantenho meus olhos fechados, preparada e aguardando o que vem a seguir. Entretanto, alguma coisa está diferente. Não existem risadas nem mesmo golpes. O calor cessou, e também não há frio.

- Que interessante... – Para minha surpresa, ouço uma voz feminina. E logo a frente, escuto o que parece alguém pousando bem a minha frente – Bem que tive a impressão de sentir uma presença celestial... Mas não imaginava tal achado no ponto mais profundo do submundo.

A princípio, acredito ser somente minha impressão. Entretanto, algo parecido com passos denunciam uma verdadeira presença, cada vez mais próxima de mim.

Abro meus olhos, e os erguendo devagar, vejo uma silhueta entre as sombras. A escuridão a esconde, mas os detalhes destacam a figura. Os passos marcam o chão em um visível calor intenso, pelo seu corpo existem linhas em um vermelho incandescente que lembram chamas vivas, e olhos que brilham como ouro se destacam e me encaram fixamente.

- Rel'El não toma jeito mesmo. Continua o mesmo sério de sempre. – Ouço suas palavras, seguidas de uma risada debochada.

Mantenho meu silêncio diante da figura desconhecida. Não sei e nem tenho o que dizer nesse momento, por isso, decido apenas permanecer observando a figura à minha frente, aguardando por algo que ainda desconheço.

- Diga, como se chama menina? – A ouço questionar.

Não a respondo. Torno a fechar meus olhos, ignorando suas palavras.

- Hm... Perdeu sua fala? – Ela questiona novamente após alguns segundos.

- Que diferença faz... – Começo, e sinto minha garganta seca arranhar após tanto tempo sem pronunciar uma palavra que fosse – ...O meu nome... Ou se perdi minha fala? ... Vamos... Faça o que veio fazer...

Sua risada pode ser ouvida – Como sabe o que vim fazer menina?

- Desde que... Fui lançada aqui... Tudo que senti foi uma única coisa... – Respondo ainda mantendo meus olhos fechados – Faz sentido... Aguardar algo diferente?

- Uau, estou vendo que Rel'El não perdeu a mão. – Ela diz em tom surpreso – Faz alguns milênios desde a última vez que um anjo esteve neste lugar, e quando vim vê-lo, estava quebrado da mesma forma que você... Na verdade você está melhor que o último, já que ainda consegue falar.

Não a respondo a princípio, mas torno a olhar a figura. Não sei onde isso vai me levar, mas sinceramente, isso não é algo que realmente importa.

- Ainda não me respondeu. – Ela torna a falar – Como se chama?

Hesito em responder, mas sei que agora, não tenho nada a perder – Meu nome... é Mi'Ka...

- Vejo que estamos progredindo, me disse seu nome. – Ela diz rindo baixo, mas a quietude deste lugar me permite ouvir com clareza – Muito bem Mi'Ka, o que a fez ser enviada a um local como esse?

- Faz tanto tempo... Mas ainda recordo... – Começo a falar, e as lembranças saltam na minha memória. – Quebrei as leis do Paraíso...

- E como consequência, acabou expulsa. – Ela diz com um riso de deboche – Típico, são tão regrados que me dá tédio só de pensar.

- Por quanto tempo... Isso vai durar? – Com muita dificuldade minhas palavras saem entredentes – Essa conversa... Vamos.. Faça logo... Já disse que não espero... Nada diferente...

- Você realmente acha que sabe meu motivo de vir até aqui, não é? – Sua pergunta soa brincalhona.

Espero alguns segundos, quando faço a pergunta que ecoa em meus pensamentos desde a chegada desse ser desconhecido – Se não é isso... O que... Veio fazer aqui?

- Quero te fazer uma proposta. – Ela torna a falar após uma longa demora – Diga-me Mi'Ka... O que acha de sair deste lugar?

O que? Sair daqui?

- Está zombando de mim...? – Questiono incrédula.

- Não, de forma alguma. – Ela se aproxima um pouco mais – Estou te fazendo uma proposta genuína. Você quer sair daqui?

Eu nunca quis estar aqui. Nunca imaginei estar aqui.

O que havia em mim era apenas a curiosidade pelos humanos, e de forma impensada, cedi a minha curiosidade e mergulhei naquele mundo, e minha escolha me condenou a este lugar.

Desde que cheguei, desde a primeira dor que senti, a única coisa que desejei foi deixar esse lugar assombroso. Fugir para qualquer outro lugar, um onde eu não estivesse sozinha, não sentisse medo, e não sofresse mais por uma escolha que tomei.

Desde meu primeiro momento, tudo que quis foi sair daqui.

Esperava que tudo fosse uma alucinação, e quando tornasse a abrir meus olhos, estaria segura em meio ao meu dormitório e nada disso teria acontecido.

Mas não, sempre que abria meus olhos, ainda estava aqui, presa no submundo.

E com isso, minhas esperanças de deixar esse lugar foram desaparecendo, até simplesmente já não existirem mais. Essa possibilidade me parece algo irreal e inalcançável.

E agora, uma estranha surge à minha frente, me propondo deixar esse lugar?

- Está tão surpresa que não tem nada a dizer? – Ela me questiona.

- Você... – Consigo falar, absorta em meus pensamentos – Espera... Que eu acredite nisso?

- Em outras circunstâncias, diria que você está testando minha paciência. – Seu tom não é seco, na verdade é calmo. Um tom muito semelhante ao que ouvi do Grão Mestre Arcanjo, mas não sinto a mesma pressão que emanava dele – Mas... Em sua condição atual, não a culpo por ser tão desconfiada.

- Nada... Me leva a... Acreditar em você... – Respondo não aguentando mais as dores em minha garganta. Forçar tanto assim está sendo muito difícil, mas não consigo conter a irritação e a frustração crescente em meu peito. As primeiras sensações que tenho em muito tempo – Você pode... Estar só... Me iludindo com... Falsas esperanças...

Ouço um suspiro duradouro – Pelo visto, precisarei provar a você, pequena caída.

- O que...? – Pergunto sem entender.

- Muito bem Mi'Ka, darei a você uma demonstração de que pode confiar em minhas palavras. – Assim que ela se pronuncia, imediatamente o que aprisiona meu corpo afrouxa e se solta em barulhos altíssimos, e meu corpo cede contra o piso escuro. – Pronto, está livre de suas correntes.

Para minha surpresa, sinto que meu corpo está realmente livre.

As dores recaem sobre meu corpo enfraquecido, e o ardor na minha pele é muito incômodo, mas após tanto tempo sinto que estou livre e posso me mover novamente.

Mesmo fraca e repleta de dores por permanecer imóvel por tanto tempo, lentamente consigo mover meu corpo, e com muito esforço consigo me erguer.

Incrédula olho minhas mãos trêmulas, e as várias marcas na minha pele. A muito desejei isso, e agora que finalmente está acontecendo, tenho medo de tudo isso ser apenas uma grande ilusão da minha mente.

- Não conseguiria se mover naquele estado lastimável, por isso, também restaurei parte de sua condição física. – Ouço a voz novamente, e ainda sem acreditar ergo meu olhar para ela.

- Eu... – Me dou conta de que não sinto a garganta doer ao falar – Eu estou mesmo livre?

- Ainda não, isso dependerá de sua resposta. – Ela me responde em tom brincalhão, e seu olhar dourado pulsa por entre as sombras – E então? Você quer sair daqui Mi'Ka?

Não sei se posso confiar nessa proposta. Na realidade, não confio. Não sei quem ou o que é ela, nunca vi um anjo com as características dela, mas por qual motivo me libertaria? Por qual motivo iria recuperar meu corpo, mesmo que somente um pouco?

Será que tudo isso não passa de uma mentira? Me iludirem com a possibilidade de que poderei sair daqui, mas independente da minha resposta, continuarei condenada a este lugar?

Eu não sei. Sinceramente não sei. Não sei o que pensar ou o que responder.

Mas estou a tanto tempo abandonada em meio a essas profundezas, e apenas dessa vez algo diferente aconteceu. Não sei a veracidade dessa proposta, mas é a primeira oportunidade que tenho de finalmente escapar desse lugar, e não quero desperdiçá-la.

- Sim... – Respondo finalmente, ainda encarando a figura. – Eu quero sair daqui...

- Ótimo menina, muito bom. – O olhar dourado vira-se e, com passos sendo perfeitamente audíveis, observo sua silhueta se afastando de mim, e nesse momento, acredito que fui enganada.

Por um segundo sinto que estou sendo carregada, e essa sensação desaparece tão rápido quanto surgiu, e para minha surpresa, tudo a minha volta acabou de mudar bruscamente.

Não estou mais naquele local escuro, mas sim num grande salão. É um local extenso, prevalecendo tons avermelhados em vários detalhes. As paredes são de tom cinzento, com muitos tecidos vermelhos pendurados por vários lados, tendo como destaque algumas estátuas de pedra estranhas.

Essas estátuas são altas e estão levemente derretidas, tendo um brilho de chamas em seu interior. E algo em comum nessas estátuas, é que todas seguram vasos dourados com fitas vermelhas amarradas, e percebo estranhas flores que de alguma forma emanam pequenas chamas luminosas.

A frente, existe uma espécie de altar no alto de uma pequena escadaria, e bem ao centro desse altar está um grande trono, com vários tecidos também vermelhos com marcas douradas pendurados. E é para esse altar que a figura caminha.

A figura de longos e lisos cabelos negros para frente ao trono, e vira-se para mim, e novamente estou sob o perfurante mas calmo olhar dourado. Ela é alta, de pele pálida como o branco da neve, e traços femininos muito delicados mas repletos de lascívia.

Ela veste um longo vestido bem justo ao corpo repleto de muitas curvas, de gola alta, sem mangas e com fendas nas pernas. Em torno de seu pescoço, pulsos e cintura existem vários adornos dourados que parecem ser a origem dos sons que acompanham seus passos. E além disso, ela usa uma larga e pesada capa de tonalidade vermelha.

Seus braços possuem vários desenhos escuros que remetem a garras e uma criatura de chamas, e em uma das pernas os desenhos se repetem, e percorrendo sua pele também vejo as linhas avermelhadas que antes se destacaram nas sombras.

Mas o que mais chama minha atenção, são os dois pares de asas selvagens presentes em suas costas. São diferentes das minhas asas, essas são de algo que parecem escamas e chamas, além disso, existem chifres negros em cada lado de sua cabeça e uma aureola de chamas.

- Temos muito a discutir Mi'Ka. – ela exibe um sorriso calmo – Mas primeiro, devo me apresentar apropriadamente... Sou a dama das chamas incandescentes, e Arquidemônio líder do submundo. Eu me chamo Raika.

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