Capítulo 54

6408 Palavras

Estou apreensiva e muito inquieta, caminhando de um lado ao outro já a alguns minutos. Faz algum tempo que notei como tudo ficou mais pesado e hostil de segundo ao outro, algo que me deixa desconfortável como nunca antes aconteceu.

Um sentimento de aflição queima em meu peito, algo que não consigo aplacar de forma nenhuma. Tento respirar fundo e me acalmar, porém não importa o quanto eu tente, a sensação simplesmente não vai embora.

Caminho da sala para a cozinha, me servindo de uma bebida quente e fumegante, e sigo até a porta, espiando do lado de fora.

Não me atrevo a sair, já que esfriou muito mais. Parou de nevar, mas o céu está carregado de nuvens escuras, e um forte e constante vento está agitando as árvores e as plantas que conseguiram permanecer livres da neve. O clima está muito frio e não é uma boa ideia ficar fora de casa.

Suspiro devagar, me preocupando com Klauss. Sei que ele ainda deve estar na cidade, realizando seu trabalho de vigilância constante, mas agora que essa aflição surgiu, não consigo ficar bem sabendo que ele não está em casa, mas sim lá fora e exposto a riscos.

Volto para a sala devagar, onde encontro Mel brincando de rabiscar um livro de desenhos para colorir que Klauss trouxe para casa nos últimos dias. Mel escolhe cores diferentes para cada parte, nesse momento que espio sua nova pintura, ela pinta um passarinho de azul escuro com amarelo e um bico rosado.

Ela está tão entretida que não percebe quando me sento no sofá atrás de si, e ali permaneço. Espio o livro que ainda não terminei a leitura, não conseguindo ter a menor vontade de continuar.

De repente ouço o som do motor do carro de Klauss e ele estacionando em frente de casa. De imediato me tranquilizo em saber que ele está de volta, e finalmente tendo alguma leveza em mim, finalmente consigo respirar aliviada.

A porta é aberta e me levanto em um pulo, indo receber Klauss da mesma maneira que nossa filha também faz, porém diferente de Mel que abraça suas pernas assim que as põe dentro de casa, me detenho ao notar a feição do anjo. É notável a tensão marcando seu rosto e toda a preocupação presente no âmbar de seus olhos.

Ele sorri leve ao ser recebido por Mel, a pegando no colo e ganhando um abraço de nossa pequena, um gesto tão genuíno que mesmo sua profunda tensão parece se aliviar por um curto instante que ele devolve tal afeto, e volta seu olhar a mim, onde todos os sentimentos que vi quando ele entrou parecem ter retornado de uma vez.

- Klauss... Está tudo bem? – Pergunto me detendo no lugar.

Ele continua me observando, calado, mergulhado em um aparente conflito que acontece dentro de si, quando um suave gesto para que eu me aproxime ocorre.

Agora, igualmente tensa, me aproximo devagar, quando o único braço livre do anjo me envolve em um demorado abraço, um onde posso sentir todo o seu calor e cuidado, e que ainda assim retira minhas reações. Mesmo com tal gesto, ele ainda não se pronuncia – Nunca te vi assim... Aconteceu algo?

Ele confirma com a cabeça – Infelizmente sim Mika.

- Me conte, irei te ouvir. – Digo sussurrando.

- Apareceram... – Ele hesita e espia Mel de canto de olho e se volta a mim, como se decidisse o que dizer – Algumas pessoas bem ruins na cidade, não sei dizer quantas ao certo...

Entendo o que ele quer dizer, e isso explica porque tudo se tornou tão assustadoramente diferente tão de repente. Demônios entraram na cidade. – Eu... Percebi a mudança, será que são muitos?

- Ainda não sei, mas parece um grupo grande, e tenho a sensação de que não serão os únicos a vir para a cidade. – Ele diz e agora fico tensa como antes, ao saber que minha preocupação é real.

- Isso já aconteceu antes? – Ele simplesmente nega com a cabeça – Isso não é algo bom, você precisa tomar cuidado Klauss...

- Voltei para casa somente para te avisar o que houve, Mika. – Ele desfaz o abraço sem se afastar de mim e toca meu rosto, um toque que por algum motivo me pareceu hesitante – E quero pedir que se mantenham seguras.

- O que irá fazer? – Consigo perguntar.

- A presença de algumas dessas pessoas é mais fácil de distinguir que a de outras, arrisco dizer que estão reunidos. Então, irei atrás deles antes que causem problemas. – Ele explica e tenho um aperto no peito, uma aflição incômoda com seu bem estar.

Sei que não tenho como impedir que Klauss vá, é arriscado mas esse é seu trabalho. Além disso, quanto mais eu o observo, mais tenho a sensação de que existe alguma coisa que ele não está me contando – Promete que vai ficar bem?

Ele confirma com a cabeça, deixando Mel novamente no chão e dando um pequeno carinho nos cabelos da nossa filha e lhe dando um sorriso. Quando se levanta e me dá um pequeno beijo na testa – Eu volto logo.

A contragosto concordo, e vejo o anjo sair novamente pela porta. O som do motor pode ser ouvido novamente e então o arranque do carro pode ser ouvido, tão brusco que até me lembra das primeiras vezes que tentei dirigir, e então tudo retorna ao silêncio.

Cruzo os braços, apertando meus dedos em minha blusa, sabendo que pode haver mais alguma coisa, mas isso não é o que mais ocupa meus pensamentos. Demônios agora estão na cidade e não sabemos o número exato deles, e Klauss vai caçar cada um deles, e pensar o risco que ele está exposto me deixa nervosa.

- Ei Mel, o que acha de comermos alguma coisa? – Convido como uma maneira de me distrair.

- Eu quero, o que mamãe? – Ela pergunta com um brilho nos olhos, enquanto seguimos a cozinha.

- O que acha de... Bolo de caneca? – Sugiro, e ela mais do que de imediato aceita. – Acho que temos tudo para fazer, você me ajuda?

- Sim, sim, sim, o papai me ensinou como fazer, eu já vi tantas vezes que aprendi certinho. – Mel diz empolgada, já indo até os armários e fico um pouco intrigada com o quão precisa ela é ao pegar os ingredientes no armário e deixar sobre a mesa. Klauss realmente a ensinou bem – Ei mamãe, teve um dia que o papai me deixou fazer tudo sozinha, e ele ficou me olhando e dizendo como eu podia fazer. Ele só não deixou eu fazer a cobertura de chocolate, era o que eu mais queria preparar mas ele não me deixou nem chegar perto da panela, fiquei triste mas ele me deixou colocar tudo na panela, e ainda me deu a colher com um pouco da cobertura de chocolate para poder experimentar, e aí eu fiquei feliz de novo.

- Não sabia de nada disso, filha. – E verdadeiramente não sabia. – Mas acho que também fico feliz com uma colher cheia de cobertura.

- Ei mamãe, por que você vive dizendo que não é o papai que prepara as coisas? – Ela pergunta inocentemente, uma pergunta que já se repetiu outras vezes.

- É uma brincadeira nossa filha. – Digo ao terminar de pegar o que preciso, e iniciando a preparação de nossos bolos – A gente faz desde que a gente se conheceu, faço para provocar seu pai e vê-lo tentar se explicar de como preparou algo é divertido. Às vezes, até acho que ele espera que eu pergunte.

- Mas você sabe quando o papai prepara alguma coisa? – Ela pergunta enquanto, um pouco perdida, olha para as coisas que separei para o bolo e me entrega o que acredita ser o próximo ingrediente.

- Sei, tem duas coisas que sempre me fazem saber quando Klauss preparou algo, ou quando ele comprou. – Mel aguarda que eu diga em expectativa – Seu pai capricha muito quando prepara alguma coisa para nós, quando compra algo, não tem o mesmo sabor. – O rosto da minha filha se ilumina aos poucos quando tudo parece fazer sentido – Além disso, as vezes sinto cheiros agradáveis aqui na cozinha.

Mel não parece ter ouvido a segunda parte, mas a entendo. Talvez eu também só daria atenção na primeira parte também.

Mel fica em silêncio e, fitando seu rosto infantil, encontro um semblante pensativo, que não esperava encontrar. Ela parece procurar um meio de juntar os pontos – Mas mamãe, se você sabe quando é o papai quem faz alguma coisa, por que fala que não acredita?

- Virou uma coisa nossa filha, que fazemos desde quando éramos... Apenas conhecidos... – Explico, deixando totalmente de lado o fato que no começo, éramos inimigos – Hoje em dia virou algo que sempre fazemos, nós dois sentiríamos falta se eu parasse de provocar ele de repente.

Ela continua se mostrando pensativa, e gostaria de ter uma ideia de quais coisas Mel pode estar pensando agora. – Mamãe, o papai é um anjo né, mas não sei o que ele faz. Eu sei que você faz auroras no céu, mas o papai nunca contou o que ele faz.

Reflito rapidamente a melhor maneira de responder a esse pequeno questionamento – Seu pai é membro de um grupo chamado de Legião, eles são anjos responsáveis por cuidar das pessoas.

- De todas as pessoas? – Confirmo com a cabeça.

- Klauss cuida de toda a cidade sozinho, nada nunca aconteceu porque ele sempre protegeu a todos de qualquer perigo. – Espio Mel e é notável como ela está boquiaberta – Uma vez a tia Layla disse que Klauss é uma lenda no Paraíso.

- O que é uma lenda mamãe? – Pergunta curiosa.

- Lendas são histórias incríveis de algo que seja misterioso que passa pelos anos, onde poucos puderam ver acontecer de verdade. – Tento explicar da forma mais simples que posso – Seu pai é uma lenda porque muitos sabem dele, mas poucos anjos o viram. E também, acho que ele é um dos anjos mais fortes da Legião.

Mel para alguns segundos, me olhando e piscando algumas vezes – Uau, o papai é muito importante.

Solto um pequeno riso com sua conclusão, e concordo com sinceridade – Ele é sim.

Termino de preparar a massa, e antes que pense em pegar algo para levar nossos bolos ao microondas, Mel está parada em frente ao armário onde ficam as canecas, tentando se esticar ao máximo para alcançar, mas mal chegando perto de conseguir.

Aproximo dela e a levanto no colo até que fique na altura certa, e Mel, balançando os pés no ar, alcança um par de xícaras largas que sempre usamos quando fazemos bolos.

Com a massa pronta e as xícaras em mãos, despejo uma boa quantidade na primeira xícara e levo ao microondas para que fique pronto. Penso em pronunciar qualquer coisa, quando um som esquisito inicia do lado de fora de casa.

- Espere aqui Mel. – Instruo e vou à porta da cozinha, a abrindo devagar e encontrando duas figuras familiares, ambos que não vejo há algum tempo. Layla e Ion'Alia.

Ver Layla novamente depois de tantos dias, me deixa alegre, mas tudo se apaga quando sei que Ion'Alia está bem ao seu lado, causando um desconforto muito estranho.

- Viemos à procura de Ka'Su. – Ele se pronuncia, aproximando-se em passos pouco suaves.

- Ele não está aqui, Klauss foi para a cidade. – Digo mantendo minhas defesas altas – Podem ir, eu aviso que vocês vieram.

- Isso não será possível, é um assunto sério e precisamos avisá-lo. – Ele insiste, parando a certa distância de mim.

- Isso é urgente Mika. – Layla para ao lado de Ion'Alia, tentando apaziguar o clima entre nós – É verdade Mika, precisamos falar com ele... Com vocês dois.

- Ela não precisa saber. – Ion'Alia a corrige – É um assunto pertinente somente aos anjos da Legião.

- Senhor Ion'Alia, eu respeito muito sua opinião e jamais o contrariaria, mas dessa vez o farei e espero que me perdoe pelo que estou para dizer. – Ela recebe um olhar questionador do anjo – Mika é a namorada do Ka'Su e mãe da filha dele, se acontece algo que envolve ele, Mika precisa saber.

Minha atenção é desviada deles quando Mel abraça minha perna, espiando com curiosidade – Tia Layla?

Layla percebe a criança e abre um sorriso sincero, estendendo os braços para a menina – Vem cá menina mais linda da tia.

Mel dispara até Layla e a envolve em um abraço, e tirando do chão de uma vez. Dou risada com a cena enquanto Ion'Alia assiste a isso incrédulo – Lay'L, o que é isso?

- Eu também não sei muito bem, mas a Mel vive me chamando de tia. – Layla salta seus ombros – Então, eu assumi que sou uma tia para ela.

- Não se trata disso, mas sim, que comportamento foi esse? Contenha-se. – Ele soa mais pasmo do que verdadeiramente irritado.

- Deixe-a, Ion',Alia. – Minhas palavras voltam sua atenção a mim – Não tem nada de errado no comportamento da Layla, além disso, minha pequena gosta da tia que não vê a dias.

O anjo me encara alguns segundos, fitando a criança alguns instantes e então a mim novamente, com a forte desconfiança inflamando seu olhar perfurante – Essa é a mesma criança daquele dia?

Prefiro não dar tantas explicações ou quaisquer detalhes a ele, ainda assim, afirmo com um balanço de cabeça – Se deseja conversar, façamos isso lá dentro. Está frio demais e isso pode adoecer a Mel.

Recuo um passo e abro a porta com as costas da mão, Layla sem hesitar avança para dentro, já Ion'Alia ainda me encara em plena desconfiança. Mesmo assim, ele entra após alguns , posicionando-se ao lado da mesa.

- Tia Layla, eu e a mamãe acabamos de preparar bolos de caneca, quer um pouco? – Mel pergunta de repente, mas Layla sequer tem tempo de responder, já que minha pequena desenfreada começa a falar em sua voz infantil e embolada – Eu ajudei, sabia? O papai me ensinou como fazer bolo, e hoje eu ajudei a mamãe a preparar. Quando eu for maior quero tentar fazer um sozinha, um bolo grandão, com uma cobertura bem gostosa para combinar. Eu ainda não sei qual bolo vai ser, mas quero que seja um bolo doce, bem doce, igual a cobertura. Se for salgado eu não faço, deve ser horrível, imagina existir um bolo salgado tia Layla, eu não comeria nunca.

- Acho que eu também não comeria Mel, nunca ouvi falar sobre bolos salgados. – Ela responde, ainda com a criança no colo. Nos olhando rapidamente, Layla faz um discreto gesto de que irá para a sala – Você desenhou mais alguma coisa Mel?

- Sim, desenhei e estou pintando, o papai trouxe um livro com muitos desenhos e estou pintando eles. – Enquanto Mel fala, Layla começa a caminhar para a sala devagar – Quer ver? Eu sei pintar muito bem...

- Eu quero, me mostre tudo que pintou até agora. – Layla finalmente deixa a cozinha, restando somente a mim e Ion'Alia, que se manteve calado até então.

- Agora que minha filha não está mais aqui... – Começo, e ele volta as atenções em mim – Fale, por que vieram?

- Não me sinto confortável em dizer qualquer coisa a uma caída que se aliou ao submundo... – Ele dispara tais palavras ásperas, e a sensação ruim desse assunto voltando à tona me incomoda. – Mas, visto que Ka'Su não está aqui, creio não haver outra alternativa. Creio que percebeu a presença demoníaca que surgiu recentemente.

- Estou ciente, Klauss também contou a respeito, mas não sabe ao certo quantos podem ter vindo. – Cruzo os braços na altura do peito – Ele está investigando quantos vieram, e disse que irá eliminar cada um deles.

- Isso é um problema... – Ion'Alia diz de forma preocupada, caminhando de um lado ao outro.

- O que você sabe? – Questiono apertando os olhos.

- Foi sentida a chegada de aproximadamente cinquenta demônios de uma vez, e dentre todas essas presenças, suspeitamos que possa haver um dos três juízes entre eles. – Fico em choque com o que ouço do anjo – Conheço Ka'Su e sei que ele não ficará de braços cruzados com essa chegada... Mas caçar todos eles, ainda mais sozinho, é loucura.

Fico perdida com o que ouvi, tentando absorver essa informação. Sinto-me tonta por um momento – E você veio para avisá-lo a não fazer nada?

- Vim para dizer que irei ajudá-lo. Mas se Ka'Su já saiu para lidar com esses demônios, ele está sob grande perigo. – Ele caminha de um lado ao outro com um nervosismo palpável – Devo ir atrás dele, e impedir que faça alguma loucura.

- Eu irei com você Ion'Alia. – Me pronuncio, para seu completo espanto.

- O que a faz pensar que irá comigo? – Ele franze o cenho, criando uma aparência muito estranha em um anjo possuidor de uma aparência tão bela – Isso é assunto da Legião. Uma caída não irá se envolver.

- Por que eu deixaria Klauss nas mãos do grupo que atacou ele há poucos dias atrás? Eu estaria louca se fizesse isso. – O anjo à minha frente salta suas sobrancelhas – Ele é meu namorado e parte da família que criei nesse mundo, eu não vou deixar que a segurança dele fique nas mãos da Legião!

- O que disse? Ka'Su foi atacado pela Legião? – Ele claramente não acredita em mim.

- Foi... – Olho devagar em direção a sala – E ele não foi o único.

Ele emudece e assim permanece. O anjo caminha devagar em direção a sala, mas se detém antes de entrar, e volta o olhar apertado a mim novamente – O que houve?

- Não tenho certeza se realmente sei todos os detalhes. – Começo, torcendo a boca – Mas foi algo muito sério, ambos chegaram muito machucados, e receberam ordens de matar a mim e... Uma outra pessoa que conhecemos.

O anjo parece refletir sobre algo, voltando até a mesa e apoia seus punhos na mesma. A dizer por sua reação tensa, imagino que ele não saiba o que tenha acontecido.

- Não tenho com quem deixar a Mel, a não ser que Layla fique aqui cuidando dela. – Digo já decidida – E não tenho certeza se Layla está bem para fazer algo assim.

- Estive pensando o mesmo, de dias atrás até hoje, pressenti que algo a preocupa. – O anjo solta um suspiro – Tudo bem, concordo que vá comigo.

- Ótimo, será melhor se formos de carro. Seremos mais discretos. – O anjo me encara de canto de olho – Quer avisar a Layla?

- Sim, podemos partir logo em seguida. – Ele está prestes a seguir para a sala, quando se detém. Imagino que ele vá dizer qualquer coisa, mas isso não acontece. Tudo que vejo em Ion'Alia é que ele está notavelmente incomodado, e querendo dizer algo, porém não o faz.

De qualquer forma, sigo para a sala, querendo dizer a Mel somente que voltarei logo.

*****

Já faz alguns minutos que tenho dirigido tendo somente as orientações de Ion'Alia sobre a presença de Klauss se tornar ou não mais forte. Quando diz isso, ele retorna a seu sepulcral silêncio.

Sinceramente esperava que ele dissesse qualquer coisa que fosse, mas isso não aconteceu. Ele permanece calado, e toda vez que espio seu rosto, apenas constato o obvio, alguma coisa está incomodando o anjo.

- O que está havendo? – Decido perguntar.

- Nada. – Seu rosto desvia ao lado, e não tenho certeza do que ele está encarando.

- Tem certeza? – Insisto.

- Não há problema algum. – Responde sem me olhar.

Suspiro por um momento, apertando o lábio – Quer falar sobre Layla?

Estudo suas reações. Ele não responde e sequer me olha, mas percebo que apertou seu punho. Tenho a certeza de que é isso que o está incomodando.

- Disse que foram atacados pela Legião. – Ele finalmente diz.

- Sim, eu queria poder dizer que é mentira, mas vi como os dois voltaram. – Solto um suspiro demorado e o encaro de canto – Aquilo não foi só um ataque, foi um castigo.

- Mas punidos pelo que? – Ele finalmente volta seus olhos a mim, e agora que presto atenção, não me lembro se alguma vez já vi essa expressão no rosto dele. – O que fizeram de tão grave para serem punidos pela Legião?

- Klauss foi punido por abrigar uma caída, se apaixonar e ter uma família com ela. Já Layla foi punida também por se apaixonar por alguém. – Desvio meu olhar de volta para a rua a minha frente – Agora, eles receberam uma ordem. Klauss deve me matar, e Layla deve matar aquele que gosta. Somente assim serão perdoados, caso não o façam, serão vistos como traidores.

- Não fazia ideia que algo assim havia ocorrido. – Diz com pesar – Por que Lay'L não me disse nada?

- Talvez não queria que se preocupasse. Ou então, esteja procurando por uma maneira de resolver essa situação – Apesar de dizer isso, sei que não é de toda a verdade. Existe mais um motivo óbvio do porquê Layla não contou nada a seu mentor. – Acha que ambos fizeram por merecer para serem tão severamente castigados?

Ele cruza seus braços e assume um denso silêncio, e algo me leva a crer que ele se fechou completamente a qualquer diálogo comigo. Ele tenciona o maxilar e seus dedos apertam as vestes brancas e seu olhar sombriamente percorre de um lado ao outro – Não, o castigo não condiz com o crime.

Me encosto no banco e continuo a dirigir, entrando em partes que não imaginava existir no terceiro distrito. Uma região tão afastada que pouco existe aqui, apenas uma ou outra casa distante, que mal apresentam qualquer movimento. Não vim nenhuma vez aqui, parece ser o limite do distrito.

- Está sentindo a presença do Klauss? – Questiono.

- Sim, ele está perto daqui, porém será difícil acompanhá-lo. – Encaro o anjo de canto de olho, buscando entender porque será difícil – Não está longe, mas está se movendo muito rápido. Além disso, existem demônios próximos também.

- Talvez devêssemos seguir a pé daqui em diante, não acho que tenha muita estrada para nós. – Explico olhando em volta, onde tudo que existe são poucas construções cobertas por neve, e uma estrada sem fim à frente, que provavelmente nos levará para longe de Klauss.

- De acordo, vamos. – Diz e abre a porta, no exato momento que paro meu carro.

Saio também, recebida pelo vento frio e um lugar desconfortável de tão quieto. Parece não haver nada aqui além do som natural, não ouço vozes, passos, músicas, nada.

Fito o anjo, esperando que ele diga qualquer coisa. Ele começa a caminhar aparentemente sem rumo, e sem entender muito bem, apenas sigo atrás dele.

- Ka'Su está naquela direção. – Indica com os olhos apertados – Haviam algumas presenças perto de onde está, que acabaram de desaparecer.

- É um alívio saber que ele está bem, vamos achar ele logo. – Começo a caminhar, quando tenho um pressentimento repentino que faz com que eu interrompa meu avanço bruscamente.

- Algum problema? – Questiona, mas não o respondo. Meus olhos permanecem indo de um lado ao outro, procurando por algo que ainda não sei o que é.

Vou de um lado ao outro, analisando o ambiente que nos rodeia, não tendo certeza do que existe de errado aqui, mas sei que existe algo, e me atentando a um detalhe importante, volto meu olhar rapidamente para as construções aqui, especificamente para as janelas.

Meu olhar foi quase certeiro, não sei quem é, mas sei que vi alguém se esconder nas janelas de uma das casas mais próximas de onde estamos, e isso me deixa em alerta.

- Sabem que estamos aqui. – Digo sem desviar minha atenção – Acho que vi alguém nos olhando daquela casa bem ali.

Ion'Alia se aproxima e para ao meu lado – Tem razão, existe alguém ali dentro. É mais de um.

- Eu vou até lá, você me espera aqui. – Digo começando a caminhar, quando uma surpresa toma conta de mim. Ion'alia está segurando meu pulso, impedindo com que eu avance – O que está fazendo?

- O que a faz pensar que a permitirei ir até lá? – Pergunta frio.

- Quero saber quem são, e tentar convencê-los a ir embora, senão... – O anjo ergue meu pulso em um tranco repentino.

- Senão o que? O que fará contra eles? – Ele cerra os olhos frios – Vai enfrentar a todos, ou quem sabe entregar minha presença?

- O que? Por que eu faria isso? – Questiono, e mais uma vez encontro a desconfiança e desprezo no olhar do anjo. É cruel e severo, entrega todo um desconforto que guarda em si por estar aqui comigo, e só agora me dou conta de como ele está tenso em relação a mim – Por que não confia em mim?

- Como confiar em uma caída igual você Mi'Ka? Alguém que ousou trair o Paraíso e se rastejou para o submundo, que abriga o destrutivo pode dos demônios dentro de si. – Ele joga isso na minha cara, parecendo entalado em si a mais tempo do que eu imagino – Você ser uma caída nunca foi um problema, mas quando te vi novamente e senti o poder do submundo dentro de seu corpo, tudo mudou. Você deixou de ser um anjo e passou a ser uma ameaça, tão baixa quanto os demônios, que pode nos colocar em perigo a qualquer momento.

- Eu nunca faria isso com Klauss ou com a Mel, são minha família. – Rebato – Não tenho intenção alguma de fazer mal a eles, nem a aqueles que são meus amigos.

Algo pesado cai na nossa frente, nos surpreendendo e interrompendo nossa discussão. A figura se ergue devagar, trazendo consigo uma aura flamejante e um forte odor de queimado que espalha por todo o ar. A figura endireita sua postura e nos encara com uma risada debochada – Acho que ninguém confia mesmo em você, sua caída imunda, nem seus colegas de asas. Não que isso seja uma surpresa.

- Stefan... Digo num sussurro.

- Esse é o Stefan? – Ion'Alia questiona, preparado para entrar em confronto.

- Espera, não faça nada Ion'Alia. – O detenho erguendo um braço – Vai atrás do Klauss, eu cuido dele sozinha.

Ele me encara com uma feição estranha – Ficou louca? Eu não vou deixar você sozinha.

- Eu dou conta dele. – Digo firme, encarando o demônio à minha frente – E você não veio aqui por causa de mim, mas sim pelo Klauss. Vá e encontre ele logo, não perca tempo.

- Não precisa se incomodar de ir atrás do anjo, ele virá até aqui. – Stefan esboça um riso, retirando algo do bolso de sua calça e levando a boca – Apenas quero lhe dizer algo... Obrigado por trazer mais um anjo para a festa.

Antes que eu diga qualquer coisa, Stefan bate suas mãos no chão, e um mar de chamas emerge repentinamente. Algo tão extenso que se tornou impossível enxergar qualquer coisa por trás das densas chamas.

O calor é tão sufocante que torna-se difícil respirar aqui. Começo a tossir e sentir minha visão embaçando cada vez mais.

- Divirta-se caída, nós nos veremos outra vez. Traga mais anjos para queimarmos Mika. – Ouço a voz distante de Stefan, enxergando sua silhueta sumindo por entre o fogo, mas apenas ignoro. Precisamos sair daqui o quanto antes.

- Ion'Alia! – Chamo e o encontro tampando o rosto com a mão – Temos que sair do meio desse fogo.

Ele me encara de canto de olho, abrindo suas asas e saltando ao céu. Faço o mesmo e, em um pulo, também escapo das chamas, observando como Stefan conseguiu criar uma imensa fornalha flamejante a céu aberto em questão de segundos.

Procuro por ele entre as chamas, enfurecida que ele tenha feito isso, avançando pelo ar, quando lembro-me do anjo ao meu lado – Você está bem?

- Me atraiu para uma armadilha? – Ele questiona claramente enfurecido.

- O que? Não! – Balanço a cabeça – Eu não sabia que Stefan estaria aqui.

- E o que foram aquelas palavras? – Questiona novamente enquanto vai se aproximando de mim devagar, e percebo o risco de ser atacada – "Trazer mais um anjo para a festa", espera que eu acredite que não era uma armadilha?

- Esquece, eu não tenho tempo de ficar aqui discutindo com você. Vai e encontre o Klauss, eu tenho que ir atrás do Stefan! – Digo já irritada de sua desconfiança constante em relação a mim.

Viro-me prestes a ir no encalço de Stefan, mas Ion'Alia me detém segurando meu pulso – Não irá a lugar algum sem esclarecer o que você está tramando.

- Me solte Ion'Alia! – Insisto, me contendo para não atacá-lo.

O anjo ergue uma de suas mãos e em uma intensa rajada de sua graça, o mar de chamas se afasta e encolhe como se sufocado pelo poder da graça.

O sufocante calor rapidamente se esvai, o brilho do fogo diminui até por fim não haver mais nada, e então, Ion'Alia volta sua atenção a mim novamente – Eu irei levá-la de volta ao Ka'Su, e ele irá decidir o que fazer com você, caída.

- Decidir fazer o que, Ion'Alia? – Ouço sua voz e reparo a presença de Klauss bem próximo de nós.

Sua feição é séria para nós dois, mas o que mais me assusta em sua aparência é enxergar o vermelho forte manchando suas roupas brancas. As mangas de seu terno estão completamente manchadas de vermelho, e não me atrevo a olhar para suas mãos.

Reparando rapidamente posso ver que existem muitos respingos por toda sua vestimenta agora manchada de sangue. Respingos esses que também mancham seu rosto endurecido, que aguarda friamente por uma resposta.

Apenas suas asas permanecem sem manchas, emanando seu branco puro e intenso.

- O que fazer com ela, Ka'Su. – O anjo responde inflexível – Vim para alertá-lo do perigo que está correndo com a chegada de tantos demônios, e me dispor a ajudar a enfrentá-los, e ela me trouxe a uma armadilha.

- Uma armadilha? Do que está falando? – Ele começa a se aproximar.

- Lhe darei um nome, Stefan. – As sobrancelhas de Klauss saltam levemente, e ele me encara – Preciso explicar mais?

- Isso é verdade, Mika? – Ele pergunta me encarando.

- Não, eu não traria ele e nem ninguém para uma armadilha! – Minhas palavras disparam de imediato – Eu vim com Ion'Alia porque não queria te deixar sozinho com alguém da Legião, e o Stefan apareceu aqui. Foi só isso!

- Não falou sobre o que ele disse antes de ir. – Ion'Alia volta a falar e aperto os olhos com força, já irritada em ouvir sua voz. Minha vontade é de socar seu rosto antes que diga qualquer palavra, mas me detenho – Stefan a agradeceu por trazer mais um anjo, e mencionou nos queimar. Isso me soa suspeito.

- Solte-a. – A voz de Klauss soou como uma ordem, a qual Ion'Alia não acata. Os anjos travam uma batalha silenciosa com seus olhares, mas por fim Ion'Alia me solta, e meu olhar se volta somente a Klauss. Não gosto do que encontro em seu olhar, parece haver desconfiança nele, mesmo que isso tenha durado somente por um curto instante – Para onde Stefan foi?

- Não tenho certeza. Ele desapareceu por entre as chamas. – Explico frustrada – Se eu tiver algum tempo, talvez eu possa...

Paro de falar quando Klauss ergue sua mão, e seu olhar pulsa em dourado. Ele observa de um lado a outro em alguns instantes – Posso seguir seu rastro, irei atrás dele.

- Sozinho? Mas... – Klauss se vira e começa a retornar ao chão – Ei, espera!

O anjo toca o chão e começa a caminhar apressado. Pouso logo atrás dele de maneira menos equilibrada e aperto meu passo atrás dele – Volte para casa Mika, eu cuidarei disso sozinho. Não quero que se arrisque.

- E espera que eu deixe que você continue se arriscando sozinho? – Seguro seu braço e o impeço de continuar. Ele interrompe seu caminhar, mas não me olha. – Eu vou com você.

- Estou habituado com este tipo de risco, você não. Por isso deve voltar para casa e ficar com a Mel. – Ele volta seu olhar ao outro anjo – Ion'Alia irá me acompanhar até que o trabalho seja concluído.

- Mas nem pensar, eu sei o que a Legião fez com você e não vou te deixar sozinha com um deles. Ainda mais com um que me odeia! – Rebato, e antes que Ion'Alia consiga concluir sua primeira palavra, rapidamente ergo a mão em sinal para que se cale – Se vai fazer isso, nós iremos juntos.

Klauss olha para mim e então para Ion'Alia. O anjo da lua apenas reflete por demorados segundos – Assim que lidarmos com Stefan, você irá pra casa Mika, eu lidarei com os demais demônios sozinho, e isso não está aberto a discussões. Não quero que se arrisque sem motivos.

Respiro aliviada por não ter que voltar para casa. Ion'Alia para ao meu lado – Tem certeza disso?

- Não há problema, já cuidei de grande parte dos demônios invasores. Restam poucos. – Klauss explica e segue caminhando, recolhendo suas asas e dissipando sua auréola – Stefan está próximo e seu rastro ainda é forte, vamos encontrá-lo.

Ion'Alia passa por mim, me encarando com uma raiva velada e o lábio curvado para baixo, mas nada diz. Ele apenas vira-se e segue atrás de Klauss, quanto a mim, apenas suspiro e vou atrás.

Acho estranho o caminho que Klauss está seguindo, ele está indo não para as construções próximas, mas sim para fora da pista, pisando de forma pesada sobre a grama e avançando, mergulhando em meio às árvores. Olho para trás uma última vez, me certificando de que não estamos sendo observados por ninguém, e por não achar nada, sigo atrás dos anjos.

O caminho é feito em silêncio, onde somente o cantar de alguns animais e nossos passos pode ser ouvido, além claro do som natural daqui. Olho de um lado ao outro conforme caminhamos, não encontrando absolutamente nada que indique alguma movimentação, mas tudo parece estranhamente quieto.

Tenho um mal pressentimento quanto a isso.

- Então Klauss... – Decido romper o silêncio que já está me incomodando – Você está bem?

- Estou, não me feri enquanto caçava os demônios. – Ele responde, sinto que sua voz demonstra calma, mas parece haver uma seriedade escondida em seu tom – Muitos já foram eliminados, mas existe algo me preocupa.

- O que seria? – Questiono apertando os olhos.

- Alguns deles apresentaram uma fúria assassina que presenciei por poucas vezes, pareciam dentro de um frenesi destrutivo , além disso, eles estavam acompanhados das invocações de Aecos. – Lembro-me de imediato daqueles seres em roupas negras e máscaras brancas que surgiram de repente em nossa casa, e um deles só não atacou a Mel porquê Klauss conseguiu impedir e o eliminou.

- Isso quer dizer que o juiz pode estar na cidade? – Ion'Alia questiona seriamente.

- Não tenho certeza, porque não senti a presença dele em momento algum. – Ele responde. – Mas isso foi algo que chamou minha atenção.

- Devemos acabar com isso o mais breve e iniciar uma investigação. – Ion'Alia sugere e Klauss apenas assente – Stefan está longe?

- Não, ele... – Klauss para um momento – Ele parou de se mover tem um tempo, está bem a nossa frente.

Ele apenas parou de se mover?

- Klauss, você está sentindo a presença de mais alguém onde Stefan está? – Pergunto incomodada com toda essa situação, e como resposta, ele apenas balança a cabeça de forma negativa.

Passamos pelas últimas árvores e a densa vegetação, chegando a um local um pouco mais aberto que o caminho que fizemos até aqui, quase como uma clareira. Não muito longe de onde estamos, consigo ver Stefan de costas para nós, com um braço apoiado em uma árvore, e levemente encurvado para frente.

- Stefan! – Klauss anuncia com uma mão erguida e uma quantidade de sua graça manifestada sobre a mão se sua mão, e assim que o demônio se vira para nos olhar, é imediatamente atingido no ombro por um feixe luminoso lançado pelo anjo.

Seu corpo é impulsionado para trás e ele bate contra a árvore onde se apoiava, em um grito surpreso e interrompido pelo impacto.

- Me atacando sem nem avisar...? – Stefan diz entre risos secos e gemidos de dor. Ele leva a mão ao ombro ferido, onde uma fumaça surge do local atingido como se acabasse de ser queimado pela graça, e seu olhar fulminante vem de encontro a nós, quando finalmente se volta a mim – Olha só, que caída asquerosa... Além do anjo, você também trouxe o namorado... Dois anjos, isso não podia ser melhor...

- Você é um dos últimos que falta. – Klauss anuncia se aproximando em passos calmos, mas apesar de sua aparente calma, ele está completamente concentrado em Stefan.

Ainda com sua mão erguida, uma nova quantia de graça surge entre seus dedos, cintilando sem uma forma clara e difícil de distinguir, mas intensamente luminosa.

Um novo e último ataque está sendo preparado por um anjo inflexível e impiedoso, direcionado a alguém que antes já nos representou tamanha ameaça, e eu mesma espero que tal ataque seja desferido, acabando com isso de uma vez por todas. Porém algo me preocupa, mesmo ferido, Stefan não deixou de sorrir mostrando os dentes e em um olhar feroz como as chamas que manifesta, ele está calmo demais.

- Você não está se achando muito, só porque matou alguns fracotes por aí...? – Stefan provoca rindo, fechando um de seus punhos, enquanto Klauss e Ion'Alia param próximo dele, mas não o suficiente para serem pegos caso um contra ataque ocorra. Já eu, estou parada pouco atrás.

- É atrevido demais para alguém que já está morto. Chegou o momento de se arrepender do que fez com nossos irmãos da Legião. – Ion'Alia diz seco.

- Morto? Eu? – Stefan questiona com um sorriso crescendo no canto de seu lábio, e nesse momento tenho a impressão de ouvir passos próximos de nós. – Não sou eu quem está morto aqui... Por acaso você já reparou em quem está à nossa volta?

Essas palavras me assustam e imediatamente viro meu olhar para onde escutei os passos de antes.

Ali, entre as sombras da vegetação, consigo enxergar suas silhuetas. Três figuras mortais que sequer tentam esconder suas presenças nos observam, me causando o mais puro terror por finalmente entender nossa situação. Era uma armadilha.

Estamos cercados pelos três juízes.

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