Capítulo 50
7123 Palavras
Meus dedos percorrem pelas plumagens brancas lentamente, e meus olhos percorrem com cada mínimo detalhe que até poderia ser irrelevante, mas de certo não é.
Mesmo que já o tenha feito antes, é como uma primeira vez. As sensações que suas asas transmitem são muito parecidas com as de antes, as diferenças, apesar de haverem, são sutis o bastante para que passem facilmente despercebidos.
Suas asas perderam o tom e brilho dourado vindo do submundo e assumiram novamente o brilho branco que os anjos possuem, mas ainda é possível enxergar que ainda existem resquícios do poder do submundo. Entre o branco das plumas, ainda podem ser encontradas pequenos fios que reluzem em um ouro ardente que percorre timidamente pelas asas de Mika, mas são tão discretas que somente um olhar atento o bastante pode notar.
Além disso, outros anjos liberam resquícios cintilantes de suas graças quando manifestam seu poder ou alçam vôo, já as asas de Mika são diferentes também nesse aspecto, emanam uma fina aura branca por toda sua extensão, que se assemelham a pequenas chamas.
Mesmo sua auréola mudou, antes havia o aspecto de selvagens chamas em si. Já agora, são suaves e muito menores, e também possuem o tom presente em outros anjos.
Esse é o resultado de unir os poderes do Paraíso e do Submundo dentro de um único ser?
Nunca imaginei que pudessem coexistir de uma forma tão equilibrada como estou vendo com Mika.
Ouço uma pequena risada de Mel, que está entretida em uma brincadeira com Mika, algo simples sobre causar expectativas com cócegas que surgem de repente, mas que faz nossa filha se divertir muito.
Meus olhos deixam de percorrer suas asas, mesmo que meus dedos ainda as explorem, e vão ao pequeno anjo à minha frente. Mika despiu apenas a parte de cima de seu vestido e puxou seus cabelos loiros sobre o ombro, o bastante para que eu veja com clareza cada pequeno detalhe de suas costas.
Devagar uma de minhas mãos deixa as plumagens e avançam para as costas de Mika, em um toque que me permite sentir a suavidade de seu corpo, junto a um pequeno susto que pareço ter causado.
Vagarosamente reconheço a sensação suave do corpo dela, percorrendo por suas costas até os ombros, e tenho a impressão de ouvir um suspiro relaxado vindo dela.
- Ei Klauss – Mika me chama baixinho, virando a cabeça devagar e me olhando sobre o ombro – Está tão quieto...
Observo seu rosto e a maneira como me olha. O pequeno anjo me olha com uma curiosidade nada discreta, e por um curto instante me perco no azul de seus olhos e nos detalhes de seu rosto. – Estou apenas pensando.
Ela vira seu corpo devagar, apenas o bastante para seu olhar focar em mim – O que pensa?
Dou um riso nasal – Em você.
- Em mim? Mesmo comigo aqui? – Assinto e ela aparenta refletir um pouco, quando então se ajeita na cama e se senta de lado para mim – Sabe, eu também estava pensando, em uma coisa que você ainda não fez...
- O que não fiz? – Apoio os cotovelos sobre as pernas.
- Uma história sobre seu passado. – Arqueio as sobrancelhas e ela sorri travessa, voltando a se ajeitar na cama e endireitando a postura – Vai, escolhe uma história sua.
- Qualquer uma? – Ela confirma com a cabeça – Tudo bem, vejamos...
- Me conta quando você viveu aqui. – Sugere de repente – Pensei bastante nisso, e fiquei curiosa.
Minha mente divaga para anos atrás, algo tão distante do agora que poderia até dizer que fora esquecido com o tempo.
- Tudo bem, irei contar. – Digo enquanto minhas mãos voltam ao encontro de suas asas.
*****
A mulher escreve algo sobre uma folha já faz alguns minutos, sem emitir quaisquer ruídos além de sua escrita, e sequer erguer seus olhos a mim.
Disseram que ela iria me receber assim que chegasse, mas essa foi a única coisa que não aconteceu desde que coloquei meus pés aqui. Na verdade, começo a me questionar se realmente existo.
Isso me deixa levemente inquieto, dividido entre somente aguardar e esboçar qualquer ação que chame sua atenção a minha presença. Tanto tempo aqui sem falar nada está sendo algo desconfortável, tanto pelo ambiente desconhecido como por aguardar por uma coisa que não sei muito bem o que é.
Sorrateiramente desvio meu olhar dela por um curto momento e encaro o cômodo à minha volta. Existem muitos objetos que nunca vi antes, quase todos na realidade, já que nada semelhante existe no Paraíso. Imagens estáticas nas paredes, torre com números emitindo um barulho esquisito de "tic tac" que rompe o silêncio, estranhos baús altos, tudo é muito estranho.
Isso aqui é muito diferente do que temos no Paraíso, tem muito mais coisas do que nossos quartos, pra que tudo isso? Quais as utilidades dessas coisas?
- Seu nome é Ka'Su, não é? – Ela diz de repente com uma voz áspera e volto meu olhar apressado a ela, temendo ter sido pego cometendo algum erro que desconheço por completo. Mas para minha surpresa, ela sequer mudou sua posição.
Minha outra surpresa é como alguém com uma voz tão macia possa soar tão dura como ela o fez.
- Sim, isso mesmo! – Respondo firme, ou ao menos tentando parecer firme. Não sei se consegui.
A mulher solta o objeto sobre a mesa de madeira escura, e ergue um par de olhos severos a mim enquanto encosta na poltrona – Para ser recomendado diretamente por um arcanjo, deve ser alguém muito bom. Mas não esperava uma recomendação justo de Ka'Ruel.
Ka'Ruel, o Arcanjo responsável pela Legião e a proteção do Paraíso. Nunca troquei uma única palavra com ele, é de longe o mais assustador dentre todos os Arcanjos, mas não deixa de ser uma surpresa descobrir que foi ele quem me recomendou para este lugar.
- Não estou certo dos reais motivos que me trouxeram para este lugar. – Digo tentando escolher as melhores palavras, mas não sei se consigo.
- Se foi enviado para cá, é porque ainda não está pronto para a Legião. – Ela diz juntando as mãos, e ouvir isso me surpreende um pouco.
- Como? – Pergunto, sem saber se essas são as palavras certas.
- Ainda não está pronto Ka'Su. Este lugar irá forjá-lo para ser um verdadeiro membro da Legião. – Seus olhos escuros me estudam em cada palavra dita – E eu irei monitorá-lo enquanto estiver aqui.
- Estou certo de que sim, estou sob seus cuidados. – Respondo com uma pequena reverência a ela, e torno a endireitar minha postura.
- Muito bem. Não me apresentei a você de uma forma adequada, eu me chamo Ju'La, o anjo responsável por esse setor. Mas entre os humanos, me chame de Giullia. – Aceno em concordância, apesar de estranhar que possua dois nomes – Você já escolheu um nome para si?
- Um nome para mim? – Questiono apertando os olhos. – Devo fazer isso?
- Deve, pois é a forma como se apresentará aos humanos, e como será chamado quando estiverem presentes. – Diz simplesmente – Planeja se apresentar a eles com seu nome real?
- Não podemos? – Pergunto sem entender o motivo disso.
- Não, eles não devem saber sobre nós, ou que estamos entre eles. – Ela continua me analisando, buscando minuciosa por qualquer mínima reação minha. Tenho a sensação de que estou sendo estudado – Recomendo que escolha um nome antes de interagir com eles.
Baixo meus olhos ao chão, tentando entender a real razão disso – Eu escolherei, Ju'La.
- Ótimo, faça isso. – Ela fica de pé, saindo detrás de sua mesa – Venha comigo Ka'Su, mostrarei o lugar, e também onde você irá repousar.
Agora que está de pé, tenho uma real noção de como ela é. Ju'La possui uma aparência relativamente jovem, de uma humana que recentemente entrou na idade adulta, de pouca altura, pele clara, cabelos negros cheios na altura dos ombros e pouco ondulado, sendo bem mais encorpada do que demais anjos que já vi.
Suas vestes se diferenciam dos anjos, ao menos nas cores. Enquanto eu e outro anjos mantemos roupas de cores brancas, ela veste algo semelhante a um vestido longo de um tom vermelho bem escuro, uma cor e tom que não recordo se já vi alguma vez. A única coisa que remete ao branco dos anjos é a faixa que tem enrolada em torno de sua cintura, com uma ponta de tecido caída ao lado de sua perna.
Ela deixa a sala primeiro e sigo logo atrás, com meu olhar atraído por várias coisas diferentes ao redor. É interessante que este lugar tem tons escuros rompidos pela luminosidade passada pelas amplas janelas que dão vista para uma região com chão de terra batida e muita vegetação, e ao longe enxergo outra construção humana que segue um padrão visual muito semelhante a esse onde estamos.
Humanos passam por nós e nos cumprimentam com acenos discretos com a cabeça, e imediatamente seguem seu caminho desconhecido a mim.
Entramos em um corredor onde não existem muitas janelas, apenas portas de ambos os lados. Ju'La para frente a uma, e bate as costas da mão na madeira da porta – Este será seu quarto, deve se recolher em todo o anoitecer e repousar aqui. Se certifique de não deixar que ninguém entre, e sempre mantenha as janelas fechadas.
Ela procura algo guardado dentro da faixa em sua cintura, e me entrega um objeto de tom cinza escuro com um molde estranho. Pego o objeto e o giro entre meus dedos, tentando entender exatamente o que seria isso.
- Essa é a chave do seu quarto, somente você pode entrar aqui. – Ela faz um gesto para que eu avance e entre.
Procuro o que fazer com essa chave e como usar ela para abrir a porta. Demoro um pouco para perceber um pequeno buraco com o formato parecido com o da ponta da chave, e entender que é ali onde devo usar essa chave.
Destranco e empurro a porta de leve, entrando no espaço que será meu pelos próximos... Não sei bem quanto tempo ficarei aqui.
- As portas daqui são muito diferentes das do paraíso. – Comento baixo, mas sei que ela me ouviu , e vejo que existe alguma mobília aos cantos do quarto, algo quadrado muito estranho ao centro, parece ser macio como os dois objetos esquisitos com adornos florais no tecido, somente sinto falta de uma aura de repouso, é isso que nós anjos usamos para repousar... E não sei se conseguirei repousar aqui. – Os quartos também.
- Lembre-se garoto, não estamos no Paraíso. Este mundo é diferente de onde viemos. – Ela diz, e a observo parada ao lado da porta. – Por isso, devemos ter certos cuidados.
Baixo meu olhar ao chão, torcendo a boca de leve, e algo me vem em mente – Existe alguém que sabe sobre nós?
Ju'La não responde. Ela apenas me observa em silêncio.
- Humanos que sabem sobre nossa presença, ou ao menos sabem da nossa existência? – Reformulo minha pergunta, esperando obter qualquer resposta que seja.
Ela vira seu olhar ao lado, ponderando por alguns segundos, e tenho a impressão clara de que ela está escolhendo como responder a isso – Talvez... – Diz finalmente.
Aguardo por qualquer nova palavra dela, mas isso não acontece. Ju'La se perdeu em pensamentos que não tenho a menor ideia de quais sejam, e acredito que não seria de bom tom com um superior meu tentar sondar qualquer nova informação quanto a isso. Algo me leva a pensar que, se ela pudesse dizer algo, ela diria.
- Muito bem Ka'Su, você é livre para transitar pelo local, e também pela região. – Ela começa a caminhar para fora do quarto – Quando convocado, você deverá comparecer independente do que estiver fazendo. Fui clara?
- Sim. – É tudo que digo, e ela parece satisfeita com minha resposta.
O anjo deixa o quarto, e mais uma vez observo o espaço ao redor, buscando me familiarizar com tudo aqui. Sei que se trata de um outro mundo, mas é impossível não comparar com o Paraíso.
Caminho pelo quarto com alguma curiosidade, tocando primeiro o grande objeto que toma grande parte do espaço daqui, e com uma das mãos decido confirmar se é tão macio como parece, e para minha surpresa, até é. Uma mistura de rigidez com maciez que me soa muito esquisita e não compreendo ao certo sua utilidade.
Vago em passos silenciosos até o par de objetos de tecidos adornados, e já eles são muito mais suaves ao toque, e acho intrigante descobrir que posso apertar essas coisas de tantas formas diferentes que, apesar de deformado, é muito fácil fazê-lo retornar a sua forma original. Pra que os humanos possuem algo assim?
A princípio me sento, percebendo como meu corpo afunda devagar, e logo me deito com os olhos mirando o teto, com um misto de conforto e estranheza em mim. Me debato um pouco, tentando me familiarizar mais com essa sensação tão diferente, mas é difícil conseguir me acostumar tão rápido.
Estou achando que não vou conseguir repousar nem um pouco nesse lugar. Terei mais sucesso se tentar me enrolar nas nuvens e permanecer ali por algum tempo.
Batidas discretas na porta chamam minha atenção, e num impulso me sento novamente, esperando ver Ju'La, mas ao contrário do que esperava, encontro um homem com aparência mais adulta que Ju'La, usando vestes pretas e brancas muito bem alinhadas, alguns muitos pelos no rosto e um cabelo bem arrumado.
- Com sua licença. – Ele diz sem entrar no quarto, como se esperasse por uma confirmação minha para fazê-lo. Aceno com a cabeça e ele finalmente entra em passos firmes e pouco ruidosos, notando um pequeno pano em suas mãos, contendo algo que emite um brilho em seu interior – A senhorita Giullia me solicitou que entregasse isso em suas mãos.
- O que é? – Estendo uma mão e ele me entrega o objeto, e apenas ao tocá-lo, percebendo a clara ausência de peso e o calor agradável emanado deste algo, compreendo o que é.
Guiado pelo ímpeto de ter certeza começo a abrir o tecido, quando o homem me detém erguendo uma de suas mãos – Por gentileza, não o faça em minha presença.
Pisco algumas vezes – Por que não?
- A senhorita Giullia me foi clara quanto a ser entregue a seu mais recente convidado, e não tenho autorização de ver o que se trata. – Ele diz isso como sendo algo que parece ter repetido outras vezes, tamanha a familiaridade com que notei em sua voz. Por fim, me faz um gesto com a cabeça e recua um passo – Por agora, irei me retirar.
- Ah, certo... – Gaguejo um pouco, o vendo se retirar do quarto – Obrigado por me trazer isso, ah... Desculpe, não sei seu nome.
- Me chamo August. – Ele esboça um sorriso leve que logo desaparece.
Ele está prestes a sair, quando algo me vem em mente – August, espera. Quero perguntar uma coisa.
Ele aguarda do lado de fora do quarto, tendo suas mãos posicionadas nas costas – É claro, o que deseja saber?
- Bom... – Reflito rapidamente como perguntar. Olho onde estou sentado por algumas vezes, batendo uma mão levemente – Para o que serve isso?
Ele salta uma sobrancelha, como se estranhasse tal pergunta – Para repousar.
- Entendi... – Digo voltando a olhar para onde estou, não conseguindo crer que isso seja para repouso. Como será que alguém consegue repousar nisso? – Era somente isso August.
- Para o que precisar, estarei à disposição. – Confirmo com a cabeça e ele se retira, encostando a porta e me deixando sozinho novamente, retornando a atenção ao objeto.
Volto a abrir o tecido bem embrulhado e assim que termino, encontro uma pequena aura dourada muito semelhante às que existem no Paraíso. Uma verdadeira aura de repouso.
Torno a embrulhar a aura de repouso dentro do tecido novamente, e a deposito dentro de um dos móveis presentes neste cômodo. Ver uma dessas aqui me traz grande alívio, afinal, não terei que repousar nessa coisa estranha, mas este não é o momento que desejo dar atenção a isso.
Me levanto e caminho para fora do quarto, lacrando a porta e caminhando pelo corredor, decidido a olhar mais do que existe por aqui, já que ainda não tenho quaisquer coisas a cumprir hoje.
Meus passos me levam para a entrada deste lugar, e deixo esse espaço sem demora. Estou intrigado para descobrir o que mais existe aqui, não pude ver muito quando cheguei, afinal as ordens que recebi dos meus superiores foi de vir para cá de imediato.
Mas agora que olho melhor, não parece haver muito aqui. Algumas estruturas humanas podem ser vistas não muito longe de onde estamos, e no caminho para cá até vi alguns outros lugares, contudo não vejo muitos humanos por perto...
Mas sei de algo que vi perto daqui, enquanto ainda estava no ar, e é a origem de um som que reverbera no ar constantemente. A extensão azul que avança até o distante horizonte.
Espio sobre o ombro uma vez, e certificando de quem não há ninguém me olhando, e avanço para fora do lugar em passos pouco apressados. Lembro-me bem para qual direção fica, e mesmo se não lembrasse, poderia me guiar pelo som, ou então pela brisa que sinto passar pelo meu corpo.
Não precisei andar muito para chegar, nem mesmo foi demorado, mas precisei passar por um caminho um tanto quanto desagradável pela quantidade de vegetação alta presente. Vezes ou outras as plantas enganchavam em minhas largas vestes, tornando minha caminhada um pouco mais demorada do que poderia ser.
Antes mesmo de terminar de atravessar toda a vegetação, tenho visão da imensidão azul diante de mim. A vista é tão marcante que tenho vontade de apenas me sentar para observar toda a composição à minha frente. A forma como a água avança devagar e logo retorna, o vento com um aroma tão diferente, a calma daqui, tudo é tão agradável.
Isso só me incentiva a uma rápida olhada ao redor, me certificando de não haver ninguém aqui, abro minhas asas e salto no ar, ouvindo o som das plantas se partindo com meu movimento rápido, logo alcançando a faixa de areia.
Minha aterrissagem nada suave espalha areia por todos os lados, mas não parece ser algo que chamará qualquer atenção. Este lugar está vazio, e tenho dúvidas se alguém vem aqui.
Caminho devagar até onde a areia é tocada pela água, e não demora muito para que eu sinta o frio em meus pés. Não imaginava que essa água poderia ser tão fria, isso foi uma verdadeira surpresa, mas nada que seja desagradável.
Olho para a água transparente alguns instantes, que aos poucos retorna ao mar carregando consigo boa parte da areia debaixo dos meus pés.
Um lugar como esse é diferente de qualquer coisa que tenha no Paraíso. Não há um lugar assim lá, a menos que eu tenha esquecido de explorar algum lugar distante e desconhecido dentro do Paraíso.
Confortável com o que vejo, levo as mãos atrás do corpo e observo o mar, aproveitando deste lugar até o momento de precisar retornar.
*****
- Foi assim que você chegou ao mundo humano? – Mika pergunta assim que termino de contar.
- Sim, foi meu primeiro dia neste mundo. – Explico e olho para tanto Mika quanto Mel. As duas deitaram na cama e estão com seus olhares atentos a mim – Não fiquei exatamente nesta pousada, mas é bem próximo de onde estamos agora.
- Uau, e como se sentiu quando veio ao mundo humano pela primeira vez? – Ela me pergunta atenta.
- Foi estranho, um choque muito grande por todas as diferenças que haviam entre o mundo humano e o Paraíso. – Digo me lembrando daquela época. – Tem mais que posso contar, ainda do tempo que residi nesta região.
- Sério? – Mel é quem diz, se sentando na cama.
- Sim, vejamos o que posso contar agora... – Reflito alguns instantes, sendo confrontado pelos olhares repletos de expectativas de ambas. Um sorriso me surge, e tomo minha decisão – Já me decidi.
*****
Sentado em frente a uma ampla mesa, com vários outros anjos que também foram enviados a este lugar, aguardamos por algo que ainda não compreendo ao certo.
Ju'La nos convoca para este salão de reuniões sempre ao mesmo horário, pouco após anoitecer, mas nunca entendo bem o motivo. Aprendi a ler as horas humanas graças às instruções que recebi da minha tutora, ela disse ser um conhecimento básico mas necessário enquanto estiver aqui.
Corro meu olhar silenciosamente ao redor, prestando atenção em todos aqui presentes. Alguns apenas conversam entre si, aparentando se conhecerem já a algum tempo, outros, como eu, aparentam estar deslocados e entretidos em suas próprias companhias, ou ao menos tentando.
Não são muitos anjos, contando comigo são quinze ao todo. Tenho certeza que já vi cada um deles em algum momento que estive no Paraíso, mas nunca interagi com nenhum deles uma vez sequer.
Deixo minha cadeira e caminho ao redor, observando as estantes presentes, e a existência de alguns livros aqui. Alcanço um com uma capa muito antiga e leio o título. "A Odisseia".
Considero o nome intrigante e decido por folhear as primeiras páginas, encontrando uma quantidade imensa de textos e mais textos. Levo o livro comigo de volta ao local onde estava antes, abro as primeiras páginas e começo a passar meus olhos, tentando entender o qie é descrito aqui.
Minha primeira surpresa se mostra no conteúdo presente neste livro. Imaginava encontrar incidentes deste lugar que foram documentados por gerações, ou até mesmo coisas a respeito do Paraíso, mas não é isso que encontro. Basta ler as primeiras linhas para compreender que conta algo diferente, mas não faço ideia do que está sendo contado, iniciado ao que parece uma forma brusca.
Conforme mergulho na leitura, os sons ao redor parecem desaparecer aos poucos, as poucas vozes dos anjos diminuem até parecerem tão distantes que poderia até dizer que não estão mais no mesmo ambiente que eu, e é surpreendente como a leitura deste algo que não faço ideia do que seja prende minha atenção.
Ouço o som das pesadas portas sendo abertas e ergo meu olhar. Ali encontro Ju'La, na companhia de August, que nos observa com olhares furtivos – Muito bem, vocês estão liberados.
Alguns anjos comemoram que a espera finalmente acabou e podem deixar este salão, e se movimentam para fora. Já eu, apenas permaneço no lugar. Realmente não faço ideia do que motiva que fiquemos aqui, mas não é algo que faça alguma diferença agora, já que estou mais entretido em descobrir como esse livro continua.
- O que está fazendo? – Ouço Ju'La e viro-me em direção a ela, que me estuda de forma intrigada.
Percebo que August continua ao seu lado, e isso me faz lembrar como devo chamá-la quando humanos estão presentes – Este livro me chamou atenção senhora Giullia. Decidi ler, mas não entendo o que está sendo falado...
Ela não me responde, e isso me faz pensar em outra coisa muito mais importante agora, e faz.com que eu me levante de imediato.
- Desculpe-me, não sabia se tinha autorização para ler tais documentos. – Digo apressado
Antes que o faça, o anjo alcança o livro e, com a ponta dos dedos, vira a capa para si – A Odisseia? Escolheu uma obra interessante para ler.
- Irei colocar de volta no lugar. – Me adianto, mas ela faz um gesto para que eu espere.
- Não tem problema que leia os livros que temos aqui, estão aqui para serem lidos. – Ela explica, retornando o livro para a página que eu estava, pelo menos acredito que seja a mesma página – Disse não entender o que está sendo falado?
Olho dela para August, e então volto a observar o livro – Eu... Não entendo o que está sendo contado, parece que algo está sendo descrito, o começo de uma história eu diria. Mas ainda não tenho certeza, pois nunca li algo assim antes...
- Está certo, este livro não contém registros documentados ou incontáveis anotações, mas sim uma história. Algo muito antigo, um conto épico de figuras que talvez um dia caminharam neste mundo. – Ela esboça um sorriso curioso, e então olha ao homem atrás de si – August, dê a este rapaz o livro que ele escolher, assim que ele terminar este.
- Sim, senhora Giullia. – Ele acena com a cabeça – Me permite indicar as próximas obras que poderá ler?
- Tem sua permissão, confio no seu conhecimento literário. – Ela diz e se volta a mim, pegando o livro e me entregando – Leve consigo e continue lendo. Não são muitos que demonstram interesse em leitura, por isso, quero que você se sinta à vontade para ler este, e qualquer outro livro que temos aqui, tem minha autorização para isso. Será uma parte extra de sua preparação.
- Eu agradeço muito. – Digo pegando o livro devagar, mas o anjo ainda segura o livro.
- Antes que o dispense, me diga, sabe o que é ler um livro que possui uma história? – Me encontro confuso com essa pergunta.
- Eu... Não tenho certeza se realmente sei. – Digo, pensando no fato que nunca li um livro antes.
- Não deve somente ler as palavras que estão aqui escritas. Se permita vislumbrar o que é contado, enxergue os ambientes, sinta seu clima, olhe aos personagens e ouça suas vozes. – Ela finalmente solta o livro, e suas palavras ecoam alto em meus pensamentos, me levando para longe deste salão silencioso – Se permita imaginar, entendeu?
Assinto devagar, decidido a fazer o que ela me instruiu – Entendi.
- Muito bem. Agora vá, não tarde a repousar. – Aceno com a cabeça tanto a ela quanto August, e caminho para fora do salão.
Sigo em passos calmos ao quarto, ansiando por continuar essa leitura. Já realizei todas as minhas práticas do dia, que envolvem todo o controle da minha graça.
Não imaginei que tentar manter um controle tão grande da graça por um tempo tão extenso poderia ser algo tão complicado. Manifestar e comprimir, libertar quando me uno com o ambiente a minha volta para que tal poder flua com maior liberdade, me permitindo expandir e explorar todo o alcance que posso ter, algo que pode envolver ataque, suporte e cuidados.
As graças que nós anjos possuímos em nossos corpos nos permite muitas coisas, aos quais sequer fazia ideia. Sei agora que desconheço todo o real potencial que minha graça possui.
Entro em meu quarto, onde agora a aura dourada ocupa boa parte do quarto, flutuando silenciosamente próxima ao teto. Ainda não aprendi muito sobre a aura, mas tenho a sensação que também a mais para descobrir sobre ela.
Sento na cama e me encosto nos travesseiros, ainda me sentindo bastante desconfortável ao fazê-lo por ainda não me acostumar com isso. Abro o livro e retorno a leitura de onde parei, ou ao menos era essa minha intenção, já que uma luminosidade repentina do lado de fora chama minha atenção.
Deixo a cama e vou até a janela, e quando espio do lado de fora, encontro dois anjos correndo e alçando vôo no meio da noite.
O que eles estão fazendo?
Olho para trás numa espiada rápida, e tomando uma decisão em cima da hora, apoio ambas as mãos no batente da janela e me impulsiono para fora, abrindo minhas asas em pleno ar e seguindo atrás dos anjos. Não da tempo de avisar Ju'La, eles estarão longe demais, por isso prefiro ir atrás deles eu mesmo.
Os dois anjos não voam alto, nem mesmo rápido. Não sei se notaram que estão sendo seguidos, mas tomo minhas precauções de voar mais alto que eles e manter uma distância que imagino que não me notarão.
Eles seguem em direção a praia escura, pousando logo a frente e recolhendo suas asas. Sei disso pois o brilho que ambos emitiam desapareceu de repente, mergulhando tudo novamente nas densas sombras da noite, mesmo assim, consigo ver as duas silhuetas caminhando devagar.
Acelero meu movimento e me aproximo rapidamente, pousando bem na frente de ambos de uma forma brusca e nada silenciosa, o estrondo causado foi tanto que uma rajada de vento carregado com areia se projetou por todos os lados, forçando os dois anjos a protegerem os rostos.
Abro minhas asas para que seu brilho ilumine bem ao nosso redor, e principalmente a ambos, e posso ver suas feições surpresas.
Reconheço seus rostos. Um anjo de pele muito clara e cabelos prateados longos, os traços de seu rosto e corpo esguio são diferentes dos demais, unem traços masculinos e feminino, apesar que é tão alto como eu. Já o outro anjo possui uma aparência totalmente feminina, de corpo pequeno e notável curvilíneo por baixo das longas vestes brancas, de pele clara e cabelos negros lisos e longos, labios grossos e um olhos escuros levemente puxados.
Passo meus olhos de um a outro, e lembro-me que os vi algumas vezes durante nossas tarefas, e também os vi na sala hoje mais cedo, no começo não interagiam muito mas agora parecem mais próximos.
- O que fazem aqui? – Ingado cruzando os braços na altura do peito.
- Não acredito que já nos encontraram. – O anjo de cabelos prateados diz em um sussurro nada discreto, apesar do som do mar e do vento à nossa volta.
- Nós, ah... – Agora é o anjo de cabelos negros que tenta dizer algo, se calando quando endureço meu olhar – Nós viemos dar uma volta...
- Não devíamos estar vagando fora do alojamento, já nos foi dito que devemos nos recolher. – Digo estudando suas reações.
Ela olha melhor para mim, aparentando estranhar o que acabou de ouvir, logo então me encara novamente, agora como se me reconhecesse – Espera... Eu já te vi na sala de jantar e nas práticas... Não é um dos nossos superiores, é um novato igual nós.
- Isso não faz diferença, ambos deixaram o alojamento voando, isso poderia ter chamado a atenção de humanos próximos. – Insisto.
- Como nos seguiu? Também veio voando? – O anjo de cabelos prateados questiona apertando os olhos.
- Se fez isso, então... – O outro abre um sorriso travesso – Então de certo também quebrou as regras, e pode ter sido visto por algum humano próximo. Quem sabe um dos guardas da noite não tenha visto nós três?
Eu não tinha pensado nisso.
Não pensei que ao sair, poderia eu mesmo estar chamando atenção, que algum humano poderia ter me visto deixando meu quarto, que por sinal, abandonei com as janelas abertas. Só agora percebo que estou com tantos problemas igual eles.
Se a senhora Ju'La descobrir, não sei o que vai me acontecer.
Desvio o olhar para o lado, enquanto o anjo menor se aproxima e para a minha frente, levando as mãos a cintura – Agora você não pode mais nos entregar, e nós também não podemos te entregar... Acho que isso nos torna companheiros.
- Como é? Companheiros? – Pergunto surpreso.
- Eu me chamo Ru'Ri, e este aqui é Ion'Alia. Nos conhecemos no primeiro dia de nossa preparação para a Legião. – Ela faz um gesto com a cabeça, apontando ao outro anjo – Qual seu nome?
Fico calado alguns segundos, olhando aos dois anjos. – Meu nome é Ka'Su.
- Certo Ka'Su, o que acha de mantermos tudo aqui só entre a gente? – Ru'Ri sugere.
- Somente se me contarem o que planejam fazer. – Insisto.
- Iremos somente caminhar, nada demais. – Ion'Alia conta fitando a praia.
- Apenas isso? – Questiono novamente.
- Quer vir conosco para se certificar? – Ion'Alia convida, e recebe um olhar de Ru'Ri – Se ele quer uma certeza, daremos a ele.
- Bom, eu estou de acordo com isso. – Ru'Ri volta sua atenção a mim – Vem com a gente?
Solto um suspiro, frustrado por estar nessa situação. Ainda assim, concordo com a cabeça e descruzo os braços – Tudo bem, irei acompanhá-los.
- A propósito, o que estava lendo na sala? – Ion'Alia pergunta, enquanto começa a caminhar. Ru'Ri vai ao seu lado e vou caminhando do outro, um pouco atrás para olhar ambos.
- Um livro chamado A Odisseia, tem uma escrita estranha e parece muito antiga, parece que está sendo contada uma história. A senhora Ju'La me autorizou a continuar lendo, disse ser uma parte da minha preparação. – Vejo suas expressões de estranheza conforme vou falando – Já leram este livro antes?
- Nunca lemos nenhum livro. – Ru'Ri conta, e recordo das palavras da senhora Ju'La. Não são muitos que tem interesse em leitura, ela se referia aos anjos?
- Como é esse livro? – Ion'Alia pergunta.
- Ainda não sei muito bem, comecei sua leitura hoje. – Conto um pouco intrigado com o pouco que li, e sentindo em mim uma estranha vontade de ler – Penso em retornar breve para continuar a ler. Ju'La me instruiu como devo fazer para ler aquele livro, e August irá me acompanhar e propor outros livros.
Ion'Alia me olha com uma sobrancelha saltada, e vira o olhar para Ru'Ri, que caminha ao seu lado – Parece interessante, não concorda Ru'Ri?
- De fato, posso te acompanhar quando fizer algumas das suas leituras? – Pergunta pendendo o corpo para frente e me olhando. Neste momento, por um motivo que desconheço, algo me faz enxergá-la mais como uma humana curiosa do que um anjo. Sua postura e ações difere um pouco dos demais anjos que vi no Paraíso. Ru'Ri parece ser um anjo alegre e até bastante espontâneo.
- Se é assim, também quero acompanhar. – Ion'Alia também se prontifica, tendo um brilho em seu olhar. Ele tem alguma empolgação em si, contudo ele já tem uma postura e comportamentos menos espontâneos do que o outro anjo.
- Não vejo problemas em me acompanharem. – Digo levando minhas mãos às costas, olhando ao redor e buscando entender o que os trouxe aqui em plena noite – Contanto que me mantenham ciente caso decidam fazer mais alguma de suas caminhadas na praia.
- Por que não vem conosco nas próximas vezes? – Ru'Ri sugere.
- Não quero romper as regras ainda mais vezes. – Respondo os fitando de canto de olho. – Me satisfaço apenas com me contarem o que farão.
- Já decidi, te traremos nas próximas vezes. – Ru'Ri diz com um riso baixo – Assim, poderá ficar de olho no que fizermos. É mais fácil.
Não respondo, apenas a olho por longos segundos. Decido por me manter calado, e apenas observar ambos os anjos.
*****
- Ion'Alia e Ru'Ri... – Ouço Mika falar em voz baixa, sua voz soa reflexiva.
- Eles tem nomes tão diferentes... – Mel sussurra e me olha – Eles também são anjos, né papai?
- São sim, foram meus primeiros companheiros quando vim para o mundo humano. Nos tornamos muito próximos desde esse primeiro dia. – Explico as olhando – Mas não os vejo a muito tempo, principalmente Ru'Ri.
- Por que? – Ela pergunta de forma inocente.
A observo por segundos que pareceram se estender por muito tempo, escolhendo como responder sua pergunta – Ela tomou outros caminhos filha, e por isso, Ion'Alia e eu nunca mais a vimos.
- Agora que estou pensando Klauss... – Mika diz de repente – Vocês três eram "anjos da lua", não é? Como receberam esse título?
- De fato éramos, fomos nomeados assim por sempre atuarmos durante as noites durante nossas missões, e a lua sempre esteve presente. Isso fez com que o Arcanjo responsável pela Legião nos reconhecesse dessa maneira. – Conto sendo observado por seu olhar intrigado – E também, como sempre estávamos os três reunidos, isso rendeu aos três os títulos que temos hoje.
- Uau... – Mel diz com encanto.
- Você tinha que ver filha, quando Klauss e eu nos conhecemos, foi uma noite que a lua cheia estava brilhando no céu. – Mika conta para Mel, e lembro no dia que nos conhecemos – Faz total sentido o Klauss ser chamado de anjo da lua.
Levanto-me da cama e caminho até a janela, escutando Mel e Mika conversarem sobre a primeira vez que nos vimos, Mika conta os principais detalhes, sem mencionar o fato que naquele dia nós éramos inimigos claros.
Encaro a região e pensando como o tempo passou, e como esse lugar mudou bastante desde a primeira vez que estive aqui. Apesar das aparências, o ar agradável da região permanece o mesmo, continua sendo tão leve como antes, mesmo que esteja um pouco mais barulhento do que costumava ser.
O vento litorâneo é agradável e relaxante, convidativo a permanecer e desfrutar da agradável sensação que carrega consigo. É bom voltar aqui depois de tanto tempo, e trazer quem gosto comigo.
Mergulhado em meu silêncio e em meus pensamentos, retorno minha atenção a Mika e Mel, e assim fico por alguns instantes, refletindo como as coisas mudaram.
Reflito como antes, a tão pouco tempo atrás, minha existência se resumia a ser um anjo da Legião, um guerreiro incansável, moldado apenas para enfrentar e sobreviver a batalhas infernais à frente dos demais anjos, sempre os protegendo e protegendo aos humanos. Me sentia satisfeito dessa forma.
Não esperava, e nem mesmo queria algo mais além disso. Acreditava que já não havia mais nada para mim, e que morreria em batalha, sem poder conhecer ou viver qualquer coisa além disso.
Contudo tudo mudou em uma certa noite, que conheci um anjo de cabelos loiros ondulados e um inocente olhar azulado, sem saber que era de fato um anjo.
Primeiro Mika, que aos poucos foi fazendo parte dos meus dias, criando tantos momentos, sejam eles momentos bons ou ruins, cada um trazendo algo a mim, um sentimento profundo. Sentimento este que cresceu ainda mais quando Mel entrou de vez em nossas vidas como nossa filha.
Não imaginava isso. Nunca imaginei isso, viver isso que estou vivendo agora. Nem mesmo por um único segundo que fosse, me imaginei estar com alguém ou ter uma filha, construir uma família.
E agora, que tenho tudo isso em minha vida, tenho certeza de algo. Eu me sinto feliz.
*****
Dirijo tranquilamente, faltando poucos minutos para chegarmos em casa. Foram bons dias que passamos na praia, fizemos várias coisas, Mika e Mel experimentaram vários pratos novos, e visitamos vários locais que eram uma novidade até mesmo para mim.
Além disso, compramos muitas coisas para decorarmos nossa casa com algo que lembre a praia. Até tiramos uma foto em conjunto no pier tendo o mar como fundo, e pedimos para emoldurar. Quero deixar essa recordação na estante junto aos livros.
Como sempre estou lendo, sempre mexo na estante. Então, sempre verei nossa foto na praia.
Mas nada como voltar para casa.
Giullia e August até pediram para ficarmos mais um dia ou dois. Mas já haviam permanecido hospedados por três dias, mais tempo que isso seria um abuso com Layla, que se dispôs a cuidar da cidade enquanto estivéssemos fora.
Apesar de aparentar não ter se incomodado nem um pouco, ainda assim, aquela cidade é minha responsabilidade, e não de Layla. Não me sentiria confortável deixando tal trabalho em suas mãos por muito mais tempo, e também, Mika também passou a sentir saudades de nossa casa.
Após as primeiras duas horas dirigindo pela estrada, fui notando como o clima estava mudando cada vez mais. De um agradável céu aberto, aos poucos foi alterado para densas e cinzentas nuvens, junto a um clima frio que cada vez mais foi intensificando, a ponto de até mesmo entrar no carro. No meio da viagem tive que ligar os aquecedores dos bancos e o ar quente para que Mika e Mel não sofressem com o frio.
Arrisco dizer que em breve, começará a nevar.
- Mika, assim que chegarmos em casa, você e Mel tomem um banho quente e se agasalhem. – Instruo conforme entro pelas ruas mais próximas de casa, já dirigindo mais devagar.
- Não sinto mais tanto frio como antes Klauss, não será preciso. – Mika desvia seu olhar de um pingente que presenteei a ela na praia, e me observa com as sobrancelhas erguidas.
- Não foi isso que vi quando você sentiu a água do mar pela primeira vez. – Respondo com um pequeno sorriso surgindo em meu rosto.
- Eu não estava esperando. – Ela se justifica, mas continuo a olhando com o mesmo sorriso, e ela faz uma careta – Klauss!
- Mika! – Respondo da mesma maneira que ela sempre faz comigo – Mesmo que não sente tanto frio, ainda será bom que se agasalhem. O clima está bem frio, e não quero que você e Mel fiquem doentes.
- Mas nem está tão frio assim... – Ela aperta seus olhos.
- Dentro do carro não, lá fora está. – Digo e olho para Mel através do retrovisor, ela apenas acompanha nossa conversa, olhando de um para o outro.
- Tá bom, mas e quanto a você? – Ela ergue suas sobrancelhas – Não vai se agasalhar?
- Não preciso, minha graça me protege do frio. – Respondo olhando para o céu cinzento, refletindo por alguns segundos. Tenho uma sensação, um tipo de pressentimento em mim, algo que não sei ao certo dizer o que é. – Mas também irei me manter aquecido quando chegar em casa.
Entro na rua de casa e vou diminuindo a velocidade, até estacionar em frente ao portão. Deixo o carro primeiro e vou pegar nossas malas no bagageiro, enquanto Mika da atenção para Mel e a ajuda a sair do carro.
- De volta em casa. – Ouço Mika dizer, pegando Mel no colo.
- Verdade, parece que faz bastante tempo. – Pego nossas malas e fecho o bagageiro.
- Nossa, está frio mesmo. – Mika resmunga baixinho – Já vou entrando em casa.
Alcanço as malas e as seguro com firmeza em minhas mãos – Estou logo atrás de você.
Mika avança e abre o portão, e sigo em passos largos logo atrás dela. O pequeno anjo avança para a porta da frente – Layla! Chegamos!
Esperamos alguns segundos. Não há uma resposta.
Mika olha para mim, e então novamente para a porta. – Layla?!
Por mais uma vez não temos resposta. Concentro-me alguns segundos encarando a casa, tentando sentir a presença de Layla, enquanto Mika tenta abrir a porta, parecendo um pouco surpresa com a tranca estar aberta.
Ela abre a porta devagar, revelando a sala de estar escura, exceto por uma única fonte luminosa que não consigo enxergar de onde vem mas permite ver parte do cômodo, porém, não é isso que nos surpreende por completo, retirando qualquer possível reação que podemos ter.
Solto as malas no chão e avanço em passos ruidosos, passando meus olhos pela sala completamente destruída. Os sofás foram tombados e rasgados pelo que parece ter sido causado por lâminas, a mesa de centro parece ter sido rompida ao meio por um forte impacto, a estante com todos os livros foi tombada e danificada, além disso, percebo danos nas paredes, nas escadas, e também vejo alguma destruição presente na cozinha.
Nossa casa foi invadida enquanto estivemos fora... Layla foi atacada, e tentou resistir.
Devagar meus olhos vagam para a única fonte de luz que paira a poucos metros de mim, com um som tilintando tão baixo que é muito difícil ouvir, e conforme o observo, as peças começam a se encaixar na minha cabeça.
Vejo uma orbe com um suave brilho branco ao centro da sala, tendo pequenos pontos cintilantes soltando e caindo vagarosamente até o chão.
Um orbe do Paraíso.
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