Capítulo 5
4644 Palavras
- Mel! – Escuto próximo, e uma humana muito semelhante a menina ao meu lado vem correndo. A única diferença, além dos traços mais velhos de seu rosto, são manchas escuras em torno dos olhos e cabelos com tom marrom.
- Mamãe! – A pequena Mel corre na direção da humana, com seus pequenos braços esticados, e logo ela salta em um abraço apertado. Me aproximo devagar, olhando a cena.
Logo após meu trabalho, retornamos à cidade para esperar a mãe da menina. Entretanto, não pousei em um local conhecido, e não sabia como voltar à praça.
Mel disse que sabia o caminho e foi me guiando pelas ruas, e no trajeto até a praça, a pequena começou a me falar muito de si. Contou que tem cinco anos, que estudava e gosta muito, que ainda não sabia escrever muito bem mas que estava aprendendo, e que adora algo chamado sorvete. Me contou também que vive só com a mãe, e por ela trabalhar muito não podem passar muito tempo juntas, e que ela queria ser veterinária, mas depois de me conhecer, Mel quer ser um anjo também.
Acabei falando que ser veterinária era melhor, mesmo não sabendo o que uma veterinária faz. De qualquer jeito, adorei ouvir a pequena e conhecer mais da Mel... Uma menina encantadora que, sem dúvidas, me proporcionou diversos sentimentos, todos bons e que nunca havia tido antes.
- Onde você estava? Eu fiquei tão preocupada. – Ouço a humana falar assim que me aproximo, e percebo a firmeza com que a mãe segura a filha.
- Eu fiquei na praça, mas não estava sozinha. A Mika me fez companhia. – A menina diz de forma tão alegre, que mal parece ter se perdido de sua mãe.
- Mika? – A humana ergue seu olhar a mim, e a preocupação que toma sua feição imediatamente se converte em alívio – Você cuidou da minha filha?
- Sim, eu... – Hesito um momento, a vendo ficar de pé – Não iria deixá-la sozinha. Prometi fazer companhia a Mel até seu retorno.
A vejo assentindo, tomando uma de minhas mãos com as suas – Muito obrigada por cuidar dela. Não sei o que faria se acontecesse algo com a Mel.
- Não é necessário me agradecer. – Sorrio calorosamente – Adorei fazer companhia a ela. Mel é uma menina surpreendente, de muitas formas.
- E as vezes dá sustos de forma igualmente surpreendentes. – Ela diz e não reprimo um pequeno riso, já que nosso primeiro contato foi da menina me causando um pequeno susto.
- Não tenho como discordar desse fato. – Respondo e olhamos a menina, que nos responde com um sorrir travesso.
- Vamos nos ver de novo Mika? – A pequena Mel me pergunta com brilho nos olhos.
Não sei ao certo o que responder, já que provavelmente, essa é a primeira e última vez que verei esta pequena. Mesmo assim, ofereço meu mais sincero sorriso a ela – Espero que sim Mel.
- Somos amigas agora, né Mika? – Ela me pergunta de forma espontânea.
Apesar de desnorteada pela pergunta, continuo sorrindo – é claro, somos sim.
- Então.. Nós nos veremos de novo. Tenho certeza disso. – Mel diz com doçura.
- Obrigada novamente por cuidar da minha filha Mika. – A mãe me agradece, segurando a mão da menina com firmeza e proteção – Vamos Mel.
- Tchau Mika! – A menina diz alegremente, e enquanto as duas se afastam, ouço Mel começar a falar – Mamãe, a Mika é incrível, viu como nós duas somos iguais? Sabia que ela é um anjo?
A mãe humana olha para a filha com um sorriso – Ela é mesmo... Um anjo igualzinho você filha.
Mantenho meu sorriso ainda vendo as duas se afastando, e antes de sumirem da vista, a pequena Mel vira seu rostinho a mim, ergue sua mão e me faz um aceno, que correspondo sem hesitar.
Permaneço parada, com uma estranha mas agradável sensação em meu interior, de um jeito que não consigo parar de sorrir. É uma sensação de conforto muito grande, junto a um estranho carinho que acalenta meu ser.
Agora sozinha novamente, ergo meu olhar a aurora por mais uma vez. Creio que ainda tenho algo mais que três horas humanas até que meu trabalho esteja de fato completo, e a aurora possa permanecer enquanto minha graça perdurar, o que talvez não seja tanto tempo.
Então, no mínimo, ainda tenho três horas humanas para permanecer na terra.
Devo aproveitar cada momento aqui.
Se bem que, agora, não sei onde ir a seguir. Talvez, deva me concentrar em caminhar pelo lugar, explorando suas particularidades por mim mesma. Ainda tem muito a ver.
Deixo a praça em passos contidos, e não deixo de notar como o lugar agora está mais movimentado. Não nego que estava gostando da companhia de Mel, e agora que estou sozinha novamente, sinto-me um pouco perdida neste lugar.
Tento me distrair olhando para os lugares abertos. Muitas coisas são confusas a mim, como por exemplo, estranhas estátuas sem face usando vestimentas atrás de paredes transparentes, e alguns números grudados nas vestes.
Outros lugares também me intrigam, como um com alguns objetos estranhos de madeira com formatos que me fazem refletir para que servem. Alguns são quatro bancos, logo à frente algo que parece um balcão largo, outros são altos e com portas, mas não faz sentido algum portas que levam para lugares tão pequenos. Humanos entram nessas coisas?
Mais a frente, encontro um lugar imenso muito iluminado. Na entrada deste lugar, vejo o que são estranhos pilares brancos com duas portas, uma em cima da outra, e algumas inscrições estranhas na porta mais alta. Logo ao lado, placas de bordas escuras de tamanhos variados, e ao centro vejo situações distintas, algumas são de humanos correndo num grande espaço verde com linhas brancas, e em outras são paisagens distintas em movimento.
Aproximo-me dessas placas em passos lentos, curiosa com como essas imagens estão presentes em algo tão fino. Cerro o olhar, aproximando bem meu rosto e sentindo o calor emanado por essa placa, e ao me afastar, vou andando ao redor, tentando entender como isso funciona.
- Posso ajudar moça? – Ouço perto de mim, e ergo meu olhar a um humano de baixa estatura e um semblante cansado no rosto.
- Não, ah... Estou apenas observando essa... Placa estranha... – Digo, retornando meu olhar para as imagens que já mudaram.
- Placa? – Ouço sua voz confusa – Você quer dizer... Televisão?
- Isso, televisão. – Concordo para não causar mais estranheza do que já devo ter causado – O nome deste objeto me escapou...
- Ah, certo...? – Ele diz com hesitação e estranheza presentes em sua voz – Se eu puder ajudar com algo, só me chamar.
- Claro, chamarei sim. – Digo oferecendo um sorriso, que ele retribui antes de se afastar.
Endireito minha postura e, percebo que o nome "televisão" está escrito em um papel grudado nesta placa, junto com coisas como polegadas, alta definição, e coisas que não compreendo. Além disso, os demais objetos que vi antes tem outros papéis com os aparentes nomes deles expostos.
Ainda de olhos cerrados, observo o ambiente com vários objetos intrigantes, que nunca vi igual ou próximo disso no paraíso. Humanos precisam de todas essas coisas?
Ignoro minhas reflexões e retorno meu caminhar por esse ambiente que, quanto mais o exploro, mais intrigante ele se torna. Tenho a vontade de interagir com os humanos, da mesma forma que fiz com Mel, entretanto percebo que a maioria dos humanos não aparenta estar disposto a conversar, já que suas feições são fechadas ou então, suas concentrações estão voltadas a pequenos objetos em suas mãos, dando toques e mais toques com a ponta de seus dedos.
Apesar de intrigada, ignoro isso e sigo meu caminhar, até chegar a um local diferente. Bem acima da porta vejo letras destacadas, e os dizeres são "mercado". Sinto uma corrente de ar fria saindo do lugar, e alguns poucos humanos ali, andando devagar e pegando algumas coisas que estão em estranhas e largas plataformas.
Entro no lugar e bem ao lado da porta, noto que dois humanos estão interagindo. Um passando coisas em movimentos ágeis na frente de um tipo de painel, emitindo um ruído a cada objeto passado, e imediatamente informações aparecem em uma versão bem menor da tal televisão, logo a frente de um dos humanos.
Quero assistir a essa interação, mas estou igualmente curiosa pelo ambiente. Caminho pelo que me parecem ser corredores, recheados por uma variedade surpreendente de objetos de múltiplas cores e formatos expostos em mais das várias plataformas.
Corro meus dedos por alguns deles, me permitindo sentir as várias texturas dos objetos. Alguns são bem firmes, outros são estranhamente moles e meus dedos afundam levemente em suas superfícies, causando barulhos estranhos que, a princípio, me assustam e ao mesmo tempo intrigam.
Chego a um local um pouco mais frio neste estranho lugar, reparando baús altos e brancos com portas transparentes, e em seu interior vejo formas peculiares. Alguns amarelos, outros vermelhos, alguns outros verdes. Aproximo-me e olho com mais cautela, buscando entender o que são, por alguns papéis presentes dentro desse baú, e também marcados nesses objetos.
- Refrigerante... – Passo os olhos aos próximos, enquanto vou caminhando – Cerveja... Água de coco... Suco de pêssego...
Paro frente a um outro baú, e nele os objetos guardados são diferentes. Os anteriores pareciam abrigar líquidos pelas imagens estampadas, esses outros parece ser outra coisa.
- Hambúrguer defumado... Pão de queijo... Sorvete com frutas... – Vou balbuciando baixinho, intrigada com cada coisa que enxergo.
Torno a erguer minha postura e, me virando, vejo um baú branco fundo, com algumas formas estampando suas extremidades. Em seu interior, grades se veem presentes, e alguns baús bem menores estão em seu interior, e outros estranhos com formas menores, que já reconheço serem de superfícies frágeis que afundam com o toque.
Ergo o olhar para um painel com vários nomes escritos, mas um que se repete é sempre "sorvete", e cada vez que leio essa palavra, lembro que Mel disse gostar de sorvete.
Olhando através da porta transparente, começo a refletir sozinha... Todos os objetos aqui dentro são esse tal sorvete? Por que tantos deles? Todos eles são diferentes?
Abro o estranho baú, e me arrisco a pegar um deles, me permitindo olhar mais de perto. Sua superfície reage com um barulho estranho, e percebo que parece existir algo sólido em seu interior. Giro o objeto entre meus dedos, atenta a todos os detalhes aparentes.
- Você é a primeira pessoa que vejo escolher um sorvete dessa forma. – Ouço uma voz masculina próxima de mim, e me virando na direção da voz, vejo que o humano do balcão me olha com uma sobrancelha erguida.
- Ah, eu... – Gaguejo por um curto momento – Só estou olhando... Não estou escolhendo um.
Ele continua me olhando, talvez curioso comigo – Certo... Você tem algum sabor favorito?
- Sabor favorito? – Questiono a mim mesma num sussurro, e juntando tudo que sei sobre "sorvete", deduzo que esse é algum tipo de alimento para os humanos. Um alimento gelado – Não, eu... Nunca provei um sorvete.
- Nunca? – Ele pergunta um tanto surpreso.
Balanço a cabeça negativamente a sua pergunta – Tem algum sabor como seu favorito?
Ele passa sua mão pelo queixo, torcendo a boca por um momento, nitidamente refletindo sobre o que acabei de questionar – Desse tipo, gosto do sabor chocolate com recheio de limão... E dos sorvetes de pote, meu favorito é o de maracujá.
Intrigada, olho novamente dentro do baú, buscando os que ele disse serem seus favoritos, e me abaixando, alcanço um entre meus dedos e leio – ... Recheio de limão... Seu favorito é esse?
- Sim, esse mesmo. – Ele responde apoiando os cotovelos – Nos dias mais quentes, sempre levo alguns para mim e minha esposa.
- Entendo... – Digo baixinho, ainda olhando o sorvete – Acho isso intrigante... Por que tem tantos sabores diferentes?
- Bom... Tem muitos gostos diferentes por aí. – Ele explica num tom reflexivo – Existem muitas pessoas, e cada uma tem uma preferência. Por exemplo, gosto dos sorvetes com recheio de limão, e tem pessoas que não suportam esse sabor... Enquanto que não gosto do sabor de menta, mas existem muitas pessoas que adoram.
Aperto os olhos com o que ouço – Humanos têm gostos tão diferentes assim?
- Ah... Temos? – Ele responde com estranheza presente na voz – Bem... Você não parece ser daqui.
- De fato. – Digo, devolvendo o sorvete ao baú – Cheguei recentemente na cidade, entretanto não permanecerei muito. Em breve estarei partindo.
- Entendo, notei pelo seu jeito de falar um tanto diferente. – Ele responde – Veio de onde?
- De muito longe. – Prefiro não dar maiores detalhes.
Enquanto falava com Mel, falei coisas demais e revelei coisas demais sobre mim, e creio que não seja adequado revelar mais coisas. Não sei quais consequências haverão se contar coisas demais para mais um humano.
- Deve ter feito uma viagem muito longa. – Ele fala, e assinto.
- Não faz ideia de quanto. – Respondo com um meio sorriso – Mas tinha vontade de conhecer mais desta terra, então vir de tão longe não foi em vão.
- É mesmo? E o que voc... – O homem é interrompido bruscamente.
Dois humanos com rostos cobertos entram no local, empunhando objetos estranhos escuros que reluzem com as luzes do lugar – Perdeu! Perdeu! Entrega tudo!
Pela voz, são dois homens humanos. Um deles empunha o objeto para o humano atrás do balcão, que imediatamente recua com as mãos erguidas e assume um semblante assustado. O outro olha ao redor, sem tal afobação, parecendo monitorar o lugar enquanto aponta o objeto em volta.
Esse estranho objeto escuro claramente é algo que amedronta os humanos.
- Tá esperando o que? Entrega tudo logo! – O primeiro ordena com a voz enraivecida.
- Por favor, calma... Eu vou pegar tudo do caixa... – O que esteve falando comigo até agora diz com cautela, começando a retirar papéis e mais papéis com números e deixando no balcão.
- Celular também! Vai logo! – Ele diz irritado e vira-se rapidamente ao outro, abanando uma mão – Vai ver se tem mais alguém escondido, e se achar, pega tudo que eles tiverem... E também coloca essas porcarias que veio pegar na mochila!
O segundo acata e avança sem nada dizer, sumindo em algum dos corredores. Já o primeiro volta sua atenção ao homem, que já deixou tudo que tinha sobre o balcão e tornou a erguer suas mãos.
- Só isso? que piada... – Ele rosna e em gestos apressados, ele joga os vários papéis dentro de uma coisa escura e com alças – O que mais você tem aí?!
- Não tenho mais nada, eu juro. – Responde aflito, recuando um passo e se encurralando na parede atrás de si. – Já entreguei tudo...
- Tá brincando comigo, eu sei que você tem mais coisa! – Ele bate a mão no balcão, causando um estrondo forte – Já tô de olho nesse mercado a dias, eu sei que você tem mais coisa escondida! Vai me entregar na boa ou não?!
Continuo parada com os olhos apertados, sem entender o que está havendo mas conseguindo sentir a nítida tensão presente. O ambiente até mesmo ficou muito mais pesado e desconfortável para mim.
O homem vira seu olhar a mim, e aponta o estranho objeto – Tá olhando o que?!
- Ei, por favor, deixa ela fora disso... – O humano do balcão pede.
- Cala a boca! – Um estouro ensurdecedor é ouvido de repente, de forma que meu corpo inteiro entra em alerta quase que instantaneamente, e posso ver nitidamente um estranho projétil sendo disparado imediatamente contra o humano que me tratou tão bem, entretanto o projétil atinge a parede, fazendo ele se encolher – Sua sorte que errei o tiro!
O ruído tão alto e repentino me deixou momentaneamente desnorteada, e sem perceber acabei de recuar um passo. Me dou conta que meu corpo inteiro encontra-se tremendo, e estou tomada pela apreensão causada pelo ambiente tão tenso à minha frente. Algo aqui me deixa impotente.
É como se eu estivesse diante de um perigo iminente, tão grande, que tira quaisquer ações minhas.
O homem vira-se para mim e vem caminhando em passos apressados, erguendo o objeto no meu rosto, e continuo sem entender o que está havendo.
- Você... Tá olhando... O que? – Ele diz lentamente num tom enraivecido – Entrega tudo!
- Entregar? – Questiono confusa – O que devo entregar?
- Tá me achando com cara de idiota?! – Ele rosna novamente.
- O que você tá fazendo? – O segundo homem aparece, segurando o braço do primeiro. – Abaixa isso!
- Não me diga o que fazer! Já te mandei ir pegar suas porcarias e me deixa fazer o serviço! – O primeiro reclama se desvencilhando, e tornando a apontar o objeto para mim – Eu vou ter que repetir? Entrega tudo!
- Você já pegou o dinheiro que queria e eu também, vamos embora! – O segundo insiste tentando puxá-lo, mas sem sucesso, e com isso ele se coloca na frente do objeto.
- Sai da minha frente! Ou eu enfio uma bala em você! – Ele ameaça, empurrando o segundo homem, que está parado bem a minha frente, e parecendo notar algumas pessoas tentando se esgueirar para fora deste lugar, ele empunha o objeto a elas – E vocês, nem pensem em sair! Vão ficar quietinhos, senão serão os primeiros!
- Você está descontrolado, pare com isso! – Rebate a fala, sem ceder a agressividade do outro – Deixa a garota em paz, não tá vendo que ela não tem nada? Nenhuma dessas pessoas tem, vamos embora!
- Eu já falei, não me diga o que fazer! – Ele berra, e um novo estouro acontece, dessa vez eu me assusto com o barulho.
A figura desaba para trás, e instintivamente me movo para segurá-lo, impedindo de sofrer uma queda muito brusca, porém sou pega desprevenida pelo seu peso e acabo caindo junto dele. o saco com alças que ele carregava cai ao chão próximo de nós.
Puxo o homem para mim, e o ouço agonizando de dor. Presenciar isso me causa um espanto imenso.
Toco o peito do homem e sinto que suas vestes estão molhadas e se manchando de vermelho, e ele imediatamente reage num grito mudo. Ao afastar minha mão para não causar mais dor, noto manchas de mesmo tom presentes entre meus dedos.
- Seu imbecil, você teve o que mereceu. – O homem de pé abaixa e pega algumas coisas e ajeita as alças em seu ombro, tornando a apontar o objeto de antes a mim, com um brilho macabro em seus olhos – Agora, é a sua vez mocinha!
Uma estranha raiva cresce em mim, e no momento que ouço mais um estouro, ergo minha mão e manifesto minha graça de uma forma que nunca fiz antes. Para atacar.
O tempo passa devagar, enxergo perfeitamente o projétil saindo do objeto, mas é tão lento que manifesto minha graça muito antes, o impedindo de me atingir.
Com o intenso brilho surgindo da minha mão, o ar a minha volta se rebela ferozmente e avança contra o humano em um denso turbilhão repleto de partículas luminosas nascidas da minha graça, que lançam o homem contra uma parede e o fazem desabar.
O lugar inteiro parece ter reagido ao meu poder, de forma que vários objetos reagiram ruidosamente em suas plataformas, alguns até mesmo deixando seus lugares e caindo pelo chão.
O homem ergue-se devagar, e percebo que existem marcas luminosas que perfuraram suas vestimentas. Tossindo algumas vezes, ele me olha com espanto. – O que foi isso?
- Deixe este lugar imediatamente. – Digo seriamente, recuando uma mão onde concentro o poder da minha graça novamente, e percebo o medo em seu olhar – Não avisarei uma segunda vez.
Ele se levanta de forma desengonçada, e parte correndo sem levar nada que havia pego. Imediatamente paro de manifestar meu poder, temendo que mais algum humano tenha presenciado meu ato, e a preocupação cresce em mim.
Volto minha atenção ao homem caído, que continua agonizando em dor, e sem demora retiro a peça que usa para cobrir seu rosto, e vejo sua feição por um curto instante. Algumas pessoas surgem por entre os corredores, olhando em sua direção em mistos de surpresa e também repulsa.
Percebo e puxo para perto a sacola com alças que ele carregava, reparando o peso do objeto. Assim que o abro, tenho uma surpresa com o que encontro em seu interior.
- O que é isso? – Questiono a mim mesma, pegando os objetos aos poucos.
Retiro uma a uma das coisas presentes, e não vejo nada semelhante ao que aquele primeiro homem estava buscando. Tudo aqui são alimentos. Por que ele estava atrás disso?
- Ei! – Chamo na direção das outras pessoas – Esse humano tomou algo de vocês?
Os humanos se entreolham receosos – Não, de mim ele não pegou nada. – Uma mulher diz primeiro.
- De mim também não... – Uma outra, mais velha, diz também.
- Ele não pegou nada de mim. – Um outro humano, um homem mais jovem, também diz. – Ele foi direto nas estantes e pegou algumas coisas.
- Foi assim comigo também. – A primeira mulher fala – Ele só pegou algumas comidas das prateleiras.
- Ele estava atrás de comida? – Digo num sussurro, tornando a olhar ao homem.
Não sei se consigo fazer isso, mas devo tentar.
Estendo minha mão sobre a cabeça do homem e a toco, e fechando meus olhos, me concentro, utilizando o poder da minha graça.
- "Revelações!" – Proclamo e mesmo com meus olhos fechados, feixes branco azulados semelhantes a chamas surgem à minha frente e sinto crescer ao meu redor.
Concentro-me ao máximo tentando executar esse processo que, por mais que eu seja capaz de realizar por ser um anjo, até então é novo para mim por nunca ter feito ou sequer praticado. Não sei quais os resultados dessa tentativa.
Imagens surgem e desaparecem instantaneamente para mim. Rostos de humanos, nomes que nunca ouvi, palavras ecoadas tanto perto quanto longe. Cenas estranhas surgem, cenas rápidas de vários ambientes diferentes, ao mesmo tempo que escuto frases dizendo sobre trabalho, demissão, desemprego, esposa, filhos e fome... Juntamente disso, sentimentos de insegurança, incerteza e aflição que parecem residir dentro deste homem se manifestam, e parecem crescer em mim.
Retiro minha mão de sua cabeça rapidamente e recuo um pouco, sem desviar o olhar dele.
- Este... Este humano não é alguém ruim... – Sussurro o olhando assombrada. Não compreendo ao certo o que o motivou a vir até aqui, mas consigo sentir que sua essência não é a maldade. – Ele precisa de cuidados...
- Deixe aí moça. – Um dos humanos diz com desdém na voz – É só um assaltante, ele merece isso.
O que?
- Se cuidar dele, amanhã vai estar nas ruas roubando outra pessoa. Essa raça é assim mesmo. – Espera, mas... – Bem que poderia morrer logo.
- E ainda quer cuidar dele. Acho até que é pouco. – Mais um diz, e outras três pessoas se reúnem, e pelos seus olhares, consigo enxergar a mesma opinião.
- Calem-se todos! – Ordeno, já farta de todas essas palavras de desprezo. – Ele é um humano tal qual vocês. Como podem dizer isso? Por acaso, consideram que assistir a dor alheia é um deleite?
Nesse instante, percebo algo por trás dos olhos dessas pessoas. Uma mancha presente nas essências de todos aqui presentes, que a cada instante parece contaminar mais e mais cada um aqui.
Essa... Essa é a perversão humana?
- Ele fez por merecer moça, como pode defender ele? – Um dos humanos insiste.
- Você não viram o que eu vi. E se fez por merecer, por que ele ignorou vocês e esteve buscando apenas comida? – Balanço a cabeça negativamente por uma vez, farta dessa discussão inútil – Digam agora onde posso levar esse homem para ser tratado!
- Tem um hospital aqui perto. – O primeiro humano que falou comigo aqui se pronuncia, saindo detrás do balcão de antes.
- Onde fica? Como é esse lugar? – Pergunto apressada, já me preparando para sair.
- É um prédio branco com janelas verdes, mas não é perto daqui. – Ele explicada parando ao meu lado.
- O que é um prédio? – Questiono, mas balanço a cabeça negativamente, já pegando o homem nos braços enquanto abro minhas asas bruscamente – Esqueça, eu encontrarei por mim mesma!
Disparo para fora do lugar e, num último toque dos meus pés no chão, me lanço aos céus rapidamente e parto em busca desse tal hospital. Espero não tardar a encontrá-lo.
Bem no alto, procuro rapidamente o lugar indicado, sem saber ao certo como ele de fato é, quando percebo o homem agonizando de forma mais alta.
Ele abre seus olhos devagar e com dificuldades consegue focar em mim. Mesmo tão nervosa, ofereço um sorriso buscando tranquilizá-lo – Fique calmo, a dor vai passar logo. Te garanto que isso acabará em breve.
O homem segura meu braço, mas a pouca firmeza desaparece e ao soltar, seu braço caí sobre sua barriga e posso sentir seu corpo tremer, cada vez mais fraco. Estou ficando sem tempo.
Não espero por uma resposta, e torno a buscar o hospital, quando percebo um local grande com descrições muito semelhantes com as que me passaram, e avanço até ele imediatamente.
Logo à frente do lugar, vejo escrito "Hospital" bem na entrada, e deduzo estar no lugar certo. Percebendo a ausência de humanos no lugar, pouso bem próxima a porta, deitando o corpo do homem no chão sem demora.
- Ei! – Grito com força, chamando a atenção de algumas pessoas dentro do lugar – Tem uma pessoa machucada aqui! Por favor, venham ajudar!
Vejo a movimentação dentro do hospital e sei que estão vindo até aqui. Imediatamente me levanto e corro para longe da entrada do hospital, e abrindo minhas asas, alço voo o mais veloz que consigo, erguendo uma alta camada de poeira, partículas cintilantes e plumas com o bater forte de minhas asas.
Não me atrevo a olhar para trás uma vez sequer, a aflição não me permite isso.
A única coisa que sei, e que se repete diversas vezes em meus pensamentos, é minha urgente necessidade de deixar este lugar o quanto antes.
Conforme me afasto da cidade, ergo minhas mãos, encarando o vermelho em meus dedos, braços, e também algumas manchas no meu vestido.
Como os humanos podem fazer isso uns com os outros? Por que agem assim?
Essa é a perversidade que reside nos humanos que tanto me alertaram? Essa perversão também pode atingir nós, anjos?
Alcanço um local longe o suficiente, bem perto de onde realizei meu trabalho e também onde existe um rio, e é nesse lugar que pouso sem demora.
Enquanto a aurora emite sua luz esverdeada com todo seu resplendor, caminho de um lado ao outro, abraçando a mim mesma e pensando em tudo que acabei de ver. Em tudo que acabei de fazer.
Certamente meus atos não passarão despercebidos. Minha chegada e meu estado não passarão despercebidos.
Como poderei explicar tudo que aconteceu?
Devo contar a verdade? Devo emitir os fatos? O que devo fazer?
Passo meus olhos pelo rio, aproximando-me devagar e, ao me abaixar, coloco ambas as mãos na água gelada, e me permito sentir o fluir suave por alguns instantes.
Recolho uma certa quantidade e passo pelos meus braços, buscando limpar as manchas de sangue humano do meu corpo, e aos poucos, os tons vermelhos vão desaparecendo da minha pele.
Entretanto, minha vestimenta ainda está manchada. Preciso limpar isso também.
Ergo minhas mãos e as direciono ao meu vestido, e usando o brilho da minha graça, retiro cada uma das manchas das minhas vestes, as deixando da mesma forma de quando cheguei ao mundo humano.
Devo buscar me purificar assim que alcançar o paraíso, para se caso a mancha da perversão tenha me atingido, ela seja imediatamente erradicada...
Abro minhas asas e deixo o chão novamente, alcançando as alturas num impulso intenso.
Olho para a cidade humana pela última vez, e silenciosamente me despeço do lugar, pessoas, o que aprendi e tudo que presenciei neste curto intervalo, e parto de volta ao paraíso.
Notas finais
1 - Anjos são capazes de enxergar a essência humana devido ao poder de suas graças, contudo, é preciso que o anjo se concentre para que sua essência se revele. Anjos que não possuem uma graça não conseguem enxergar a essência humana.
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