Capítulo 46

5933 Palavras

- A Mika desapareceu! – Layla anuncia aflita assim que entra na cozinha, atraindo tanto a minha atenção quanto a de Nick para si.

- O que?! – Nick pergunta em espanto, pousando uma xícara onde tomava café sobre a mesa.

- Acabei de ir ver se a Mika estava bem, mas ela não está mais no quarto. – Layla apoia suas mãos na mesa, e me olha com preocupação – Ela não está em nenhum lugar da casa...

Meu olhar se perde por um curto instante, que poderia dizer facilmente que durou por longas horas pelo tamanho do baque que essa informação me causou.

- Como ela pode ter desaparecido dessa forma? – Nick passa ambas as mãos no cabelo liso, olhando para mim e Layla.

- Eu não faço a menor ideia, sequer percebi alguma movimentação. – Layla aperta o lábio e seus dedos batucam nervosamente na madeira da mesa – Mas nas condições que está, ela não estará segura fora de casa.

Reflito em suas palavras. Neste momento, Mika está com seus poderes liberados, e isso transformou sua presença em algo incrivelmente forte e fácil de ser sentida de tão densa, mas ela está muito instável. Além disso, seu comportamento ficou diferente de repente.

Mas por todo esse tempo, não percebi qualquer movimento da Mika. Estando tão perto, qualquer um de nós teria notado se Mika saísse da casa. Como isso passou despercebido?

- Precisamos procurar por ela. – Anuncio a ambos. – Não faz muito tempo que a deixei no quarto, então se a Mika saiu de casa, é provável que não esteja longe.

- Mas como iremos encontrá-la? – Nick olha de mim a Layla algumas vezes.

- Podemos nos basear no poder que ela está emanando. – Layla sugere – Quando vocês voltaram do submundo, Ka'Su e eu sentimos suas presenças, principalmente a da Mika.

- Entendi, podemos procurar ela dessa maneira. – Nick concorda.

Encaro Layla, ainda refletindo muito sobre. Alguma coisa parece errada – Layla, você também notou que a presença da Mika está muito instável. Acredita que consegue identificar sua localização mesmo com ela nessas condições?

- Eu ainda não sei, mas posso tentar. – Respondo balançando a cabeça.

- Faça isso. Nick, dê uma olhada lá fora. – Digo, e ele confirma com a cabeça, se movendo em passos rápidos para a porta dos fundos – Com alguma sorte, Mika está no portão ou ao redor da casa.

- Vou me concentrar no poder que ela está manifestando. Talvez consiga descobrir onde ela pode estar. – Layla se pronuncia, e assinto em concordância.

- Faça isso, me informe o que descobrir. – Digo voltando meu olhar em direção a sala, sabendo de alguém que deve estar assustada – Eu irei ver como a Mel está.

- Layla, você pode vir aqui um pouco? – Nick inclina metade do corpo para dentro da casa, mas não dou atenção a ele, pois já estou deixando a cozinha.

Sem esperar por qualquer coisa, deixo a cozinha e vou em passos apressados para o andar superior, com minha cabeça fervilhando em tantos pensamentos. Mas mesmo que esteja dessa maneira, não posso e não deixarei nada transparecer para Mel.

Não quero assustar minha filha ainda mais do que já deve estar.

Caminho pelo corredor, escutando somente meus passos rápidos, e paro assim que chego a porta do quarto de Mel. Respiro fundo, batendo na porta de leve – Filha?

Espero por alguns segundos, não tendo uma resposta, e devagar abro a porta e entro, encontrando Mel deitada em sua cama, encolhida debaixo das cobertas.

Me aproximo da cama e me sento ao seu lado – Mel... – A chamo, e ela retira as cobertas de cima de si e seu olhar inocente encontra o meu.

- Papai...? – Ela diz com a voz contida, e dou um sorriso a ela, deixando leves carinhos em seus cabelos loiros. A menina se levanta num ímpeto e me abraça forte, escondendo seu rosto em meu peito - Eu... Eu estou com medo...

Aperto a boca antes de responder, devolvendo o abraço e afago sua cabeça, ao mesmo tempo que liberto minhas asas e gentilmente as aproximo de Mel para confortá-la. Me dói vê-la assim.

- Me conte, por que sente medo? – Sussurro a ajeitando em meu colo, deixando carinhos lentos em seus cabelos.

- Eu... Eu tenho medo que aconteça algo com a mamãe... – Sua voz infantil está carregada.

- Não vai acontecer nada com a mamãe, eu não vou permitir. – Digo com a voz o mais suave que consigo para poder acalmar Mel, quando percebo todo o peso que minhas palavras carregam junto dessa promessa. Não permitir que nada aconteça a Mika, quando sei que tudo aconteceu quando eu não estava com ela, não pude proteger nem mesmo impedir que tal mal recaísse sobre meu pequeno anjo boreal. – Vai ficar tudo bem.

- Você promete? – Mel me olha com os olhos chorosos.

- Eu prometo filha. – Sorrio a ela, afagando seus cabelos. – E prometo que vou cuidar de você e da mamãe.

Estou decidido a cumprir com minha promessa a minha filha, farei tudo que estiver ao meu alcance para que tudo fique bem.

Me dou conta de haver um brilho presente debaixo do travesseiro de Mel, e esticando meu braço, alcanço algo sem forma sólida, mas é quente e suave, capaz de transmitir grande paz somente ao toque, e percebo se tratar da graça do anjo que Mika guardou consigo.

- Por que está com isso Mel? – Pergunto com um sussurro, genuinamente curioso.

- A mamãe contou que essa é a essência de anjo dela, e ela me lembra muito do dia que conheci ela e voamos juntas pelo céu. – Ela explica se aninhando em meu colo – Eu lembro daquele dia papai, e quando lembro eu fico tão feliz, e hoje eu estou com medo, mas... Quando eu seguro essa essência, eu fico bem e feliz de novo, parece quando a mamãe me abraça apertado, é quentinho igual, e eu não sinto mais medo...

- Entendo. – Sussurro olhando para a graça, a aproximando de Mel para que ela possa tocar a graça novamente – Segure, para que não sinta mais medo.

- Não preciso papai... – Fico surpreso com sua resposta, e ela encosta a cabeça em meu ombro – Você prometeu que vai ficar tudo bem, e vai cuidar da gente... Se você prometeu, acho que não preciso ter medo...

Escuto alguns passos vindos do corredor, e Nick aparece na porta do quarto – Klauss...

- Já estou descendo. – Ele assente e escuto seus passos se afastando, mas não parece que desceu novamente. Com isso, deixo Mel novamente em sua cama, entregando a graça em suas mãos, e gentilmente a cubro – Tente descansar Mel, e não tenha medo.

Observo a menina assentir e se aconchegar, abraçando a graça e fechando seus olhos, e deixo um último carinho em seu cabelo antes de me erguer novamente, e deixar o quarto.

Assim que saio, de canto de olho encontro Nick me esperando em frente a escada, e me aproximo esperando receber boas notícias – Conseguiram encontrar a Mika?

- É melhor você vir ver uma coisa Klauss. – Ele diz um pouco tenso, já descendo. Cerro meu olha vou logo atrás, sem entender muito bem, mas já imaginando que não terei boas notícias.

Passamos pela sala e cozinha em passos largos, saindo pela porta dos fundos, e mal preciso sair para me dar conta de bem ao longe, além da cidade e tão próximo ao horizonte, existe uma extensa aurora brilhando no céu.

Mas essa aurora é muito estranha. As luzes presentes em suas extremidades são esverdeadas, porém parte das luzes localizadas mais ao centro da aurora estão brilhando em um intenso tom avermelhado. Isso não é algo comum.

- Qual a situação? – Pergunto olhando a ambos, voltando minha atenção para a aurora ao longe.

- Olhei ao redor da casa, mas não achei a Mika em nenhum lugar, e o carro dela continua na frente da casa... E aquilo... – Nick diz cada palavra sem desviar sua atenção da aurora. – Está no céu já faz algum tempo.

- Senti a presença da Mika vindo dessa mesma direção. – Layla continua, cruzando seus braços em um ar bastante apreensivo – Achamos que ela pode ter ido para lá.

- Mas como? – Indago num sussurro – Mika não consegue mais voar, e mesmo de carro, ela não teria como ir tão longe em tão pouco tempo.

- O problema não é esse Ka'Su. – Layla troca um olhar com Nick – Não tenho certeza por toda a instabilidade, mas... Mika pode não estar lá sozinha.

Avanço alguns passos, abrindo minhas asas, preparado para ir até lá – Eu irei verificar. Vocês dois, cuidem da Mel até eu voltar.

Flexiono minhas pernas e num forte bater de asas salto aos céus, ascendendo sem demora e me movendo em direção a aurora. Procuro ir o mais alto para evitar ser percebido por qualquer pessoa que esteja pelas ruas.

Sei que nesse horário é difícil terem muitas pessoas fora de casa, afinal já é início da madrugada. Ainda assim, é preferível me precaver para que não seja avistado por ninguém.

Conforme avanço pelo céu, vou passando meus olhos através da cidade, não deixando de notar como vou me afastando cada vez mais, a ponto de deixar os limites urbano e me afastar cada vez mais, e mesmo assim, a aurora continuar distante.

Mais e mais uma grande dúvida toma forma em meus pensamentos. Não é possível que Mika tenha conseguido ir assim tão longe, a única maneira de fazê-lo é caso conseguisse voar, mas ela já não consegue voar a muito tempo. Sequer estava conseguindo se manter de pé.

Não sei ao certo quanto tempo levei voando até finalmente alcançar a aurora, e mal preciso tocar as luzes para perceber que existe algo de muito estranho nela.

Por muitas vezes vi as auroras que Mika criou enquanto ainda estava no Paraíso, sei como identificar o trabalho criado por um anjo Portador do Belo. Certamente eram diferente dessa que vejo agora, não por essa parecer ter sido criada por alguém ainda inexperiente. Essa aurora está manchada.

Dentro das luzes, existe o poder do submundo, misturado com a graça de um anjo.

É fácil perceber os fragmentos de graça que pairam ao redor, como pequenos pontos brilhantes atravessando o céu, ao mesmo tempo que uma aura hostil também se vê presente, como pequenas brasas que flutuam em igual silêncio.

Analiso o véu que percorre parte do céu, movendo-se como se sacolejado pelo vento, percebo os poucos tons verdes que ainda resistem em meio ao mar incandescente presente no vermelho desta aurora.

Agora que observo isso com mais atenção, lembro-me de quando Mika manifestou uma aurora, quando enfrentamos a Cria do Abismo. As luzes que ela manifestou emanavam o mesmo vermelho que encontro dentro desta aurora.

Será que Mika fez isso?

Mas agora que estou aqui, não vejo nenhum sinal dela por perto, e também, não encontro o anjo que criou essa aurora, mas sinto como a energia aqui é densa. Avanço devagar por entre as luzes, mas esse lugar está vazio, por esse motivo baixo meu olhar ao chão.

Procuro correndo meu olhar de um lado ao outro, mas além do chão estar distante, está escuro demais para enxergar qualquer coisa com clareza. As luzes da aurora, apesar de intensas, não são o bastante para iluminar bem o que existe abaixo de mim.

Um ruído estrondoso muito próximo chama minha atenção, seguido de uma ventania repleta com uma fumaça queimada, poeira e fuligem, que se encerra tão rápido quando surgiu. Isso pareceu um forte impacto.

Sigo em direção do barulho, e a medida que me aproximo o odor queimado fica mais forte, noto pequenos focos de fogo espalhados pelo chão, junto de brasas pairando no ar como carvão ardente e marcas de queimado em grandes blocos de pedra, além disso, a instabilidade presente nesse espaço é tamanha que pesa sobre meu corpo, tornando difícil me manter no ar.

O brilho emanado pelas minhas asas é o bastante para me permitir enxergar este local com mais clareza, e não é preciso muito para perceber que estou em um cemitério. Não somente isso, mas um cemitério com sinais de batalha.

Grande parte da vegetação parece ter sido incinerada, assim como muitas das tumbas aqui apresentam queimaduras em suas estruturas. Alguns dos túmulos mais simples tem rachaduras profundas e até parecem ter sido atingidos por algo pesado, já os jazigos com estruturas mais trabalhadas tem danos muito maiores, alguns deles tendo apenas parte ainda de pé, já que o restante foi reduzido a escombros.

Isso me deixa em estado de alerta, quando logo a frente, vejo a silhueta de uma pessoa.

Paro no ar quando estou perto o suficiente para ver as costas da pessoa, e o brilho projetado pelas minhas asas me permite ver com clareza quem está ali. Para meu completo choque, vejo Mika caída desacordada a sua frente.

A pessoa vira-se para mim, com o vento sacudindo tanto seu longo cabelo como também suas pesadas vestes, não demonstrando surpresa alguma ao me ver aqui. A única coisa que enxergo é o cansaço em seu olhar e seus ombros caídos – Você chegou.

Meu olhar cerrado permanece em si, analisando cada movimento seu com cautela, enquanto ele parece apenas esperar, lutando contra o cansaço que envolve seu corpo. Não enxergo reações ou quaisquer movimentos que indiquem que ele fará algo, sequer enxergo vestígios de sua escuridão, tudo que ele faz, é voltar a olhar para uma Mika desmaiada com algum desgosto.

- O que aconteceu aqui? – Questiono sério.

- Desculpe Klauss, não consegui evitar um conflito. – Sua voz sai com pesar, e apenas isso é o bastante para que eu entenda o que ocorreu, e meu corpo inteiro tenciona em irritação. – Quando cheguei, ela estava atacando um anjo.

- Como é? – As palavras me escapam antes que eu perceba, e me impedem de tomar qualquer atitude que poderia ser muito precipitada.

- Não sei o que aconteceu com a Mika. Mas ela estava atacando um anjo sem motivo algum, e estava se comportando de uma maneira muito diferente de hoje mais cedo. – Ele explica enquanto meus pés tocam o chão, e caminho até Mika, sem baixar minha guarda – Tentei conversar com ela para descobrir o que houve, mas não dei sorte... Parecia até outra pessoa.

Parecia outra pessoa?

Não tenho como discordar. Seu comportamento realmente ficou estranho em um momento, um único momento, a ponto de eu nem mesmo reconhecê-la.

Me abaixo ao lado de Mika, vendo que em suas asas o brilho dourado está fraco, com manchas sombrias em parte de suas plumagens, e em sua auréola as chamas estão ausentes. Enxergo alguns machucados em seu rosto, parte de suas roupas rasgaram e vejo muitos arranhões em sua pele. Ela lutou até a exaustão.

Além disso, seu corpo inteiro emana um calor ainda maior do que quando estava em casa, e mesmo desacordada, a energia destrutiva que emana de si é intensa. Seu cabelo se tornou um cobre escuro, quase que inteiramente negro, sua pele está mais pálida e ela parece mais magra. Algo instável e pulsante como um coração ardente pode ser percebido dentro de si, envolto em maldade e perversão, que só senti igual em demônios que lidei no passado.

A ajeito devagar e a ergo em meus braços, fitando seu rosto por longos segundos. Encontro um semblante tenso e repleto de hostilidade em sua face, sobrancelhas tensas e uma boca contraída dando um aspecto de fúria implacável ao anjo. Uma delicadeza manchada pela sujeira, machucados e a influência do submundo.

Aperto meus olhos em raiva por tudo que aconteceu com Mika, e grande frustração por não ter conseguido impedir que as coisas acontecessem dessa maneira.

- Sabe o que aconteceu com ela? – Ele pergunta.

- Não tudo... – Respondo com pesar, abrindo minhas asas – A levarei de volta para casa. No caminho de volta, quero que me conte tudo que você presenciou.

- Estarei logo atrás de você. – O ouço dizer, e num bater de asas ascendo aos céus rapidamente, traçando o caminho de volta para casa.

*****

Com minhas asas abertas e rompendo a escuridão da noite, me aproximo do gramado nos fundos da casa, mantendo meu olhar somente em Mika.

Um peso muito grande recai em mim, um desconforto tão sufocante capaz de tirar minha calma e causar uma pontada de dor constante, algo que me atinge tão fundo, muito além da graça que habita meu corpo. Não tenho certeza de qual a origem de tal sentimento tão desagradável, mas sei o quão mal está me fazendo e o quão inquieto estou.

Meus pés mal tocam o chão, e tenho Nick e Layla correndo até mim com olhares preocupados em seus rostos.

Ouço um ruído no gramado, seguido por uma fraca onda de vento passando por mim, e sei que a Cria do Abismo também chegou, e antes de seguir em direção a minha casa, não deixo escapar os olhares espantados dos dois com o recém-chegado.

- Eu queria que fosse a Mika, mas tinha medo que fosse ela. – Layla diz parando bem a minha frente e olhando para Mika. – Onde a encontrou?

- Em um cemitério, bem depois da cidade. – Explico não olhando aos dois. – Parece que, de alguma maneira, ela recuperou a capacidade de voar.

- Nossa, o que aconteceu com a Mika? Ela está toda machucada... – Layla hesita ao olhar o estado de Mika, e boquiaberta, o anjo me olha com uma expressão indecifrável. Preocupação? Tristeza? Choque? Talvez tudo isso, e ainda mais está em seu rosto.

Lanço meu olhar sobre o ombro, fitando a Cria do Abismo. Ele, quase que de imediato, desvia seu olhar ao lado, assumindo a culpa pelo estado atual de Mika. E sei muito bem que é isso que Layla concluiu.

- Você fez isso?! – Sua voz sai entredentes e seu rosto endurece. Ela tenta avançar, mas Nick coloca-se no caminho de Layla e a segura pelos braços, impedindo que continue e tome qualquer atitude. Mesmo que eu saiba que Layla poderia se livrar de Nick facilmente, abrir suas asas e o afastar, ou até mesmo utilizar sua graça para tirar Nick do caminho, ela não o faz. Ela apenas lança um olhar de reprovação – Foi você, não é?!

- Foi ele quem conteve a Mika. – Digo finalmente, cansado de perder tempo e continuo em frente, escutando os passos apressados de ambos logo atrás de mim – Pelo que a Cria do Abismo me contou, Mika estava fora de si. Ela estava atacando um anjo.

- O que? Isso não é possível. – Ouço Nick dizer, enquanto entro em casa e caminho diretamente para a sala. – A Mika não é violenta. Ela não atacaria um anjo sem mais nem menos...

- Sinto muito, mas eu tenho que discordar disso. – O Cara do Casaco se pronuncia, enquanto deito Mika no sofá, olhando para seu corpo ferido e pensando o que devo fazer. – Quando cheguei, ela estava atacando o anjo, que nem conseguia se defender direito. Tentei conversar com ela, mas ela veio para cima de mim.

- Você espera que eu acredite? – Layla insiste impaciente.

- Não, mas não tenho porque mentir. – Responde, e não sei se é pelo seu aparente cansaço, mas ele não demonstra nada pela irritação de Layla. Seu olhar é como um profundo vazio envolto em densas trevas. – Eu não queria que chegasse a tal ponto.

- Então por que deixou que chegasse? – Ela insiste.

- Nem sabia o que estava acontecendo, não estava no meu controle. Na hora só tinha duas opções, tentar conter a Mika, ou apanhar de graça. – Ele tenta explicar, mas Layla não dá o menor sinal de que irá ser convencida.

Solto um suspiro e esfrego uma mão pelo rosto, me levantando e fitando Nick, fazendo um sinal para que ele se aproxime. Ele solta Layla devagar, e vem até mim – E a Mel? Como ela está?

- Ela dormiu faz pouco tempo. – Nick franze as sobrancelhas e seu olhar apertado encontra Mika, apertando seu lábio com nervosismo e incerteza – Queria saber se a Mika iria ficar bem... Eu respondi que sim, mas...

- Ela vai ficar bem Nick. – Respondo batendo uma mão em seu ombro e dando um leve aperto, tentando de alguma maneira acalmar ele – Ela tem que ficar bem.

Nick olha para minha mão em seu ombro e se encolhe – Você encostou em mim Klauss... A gente nunca chegou nessa parte, o que acontece agora? Você está bravo comigo e eu vou desaparecer... Será que ainda tenho alguns minutos? Eu ainda nem...

Ele para de falar e volta seu olhar apressado a Layla, e então a mim. Não contenho um riso com o que ouço, e balanço a cabeça negativamente. – Sabe Nick, a Mika tem razão. Você é divertido, e muito desesperado.

Observo seu rosto atônito a mim, sendo claro que não esperava por isso. Layla parece ter desistido de sondar qualquer informação que eu já não tenha ouvido no caminho de volta para casa, e ela se ajoelha ao lado de Mika, segurando uma de suas mãos.

- E agora? – Layla pergunta num sussurro.

- Eu ainda não sei. – Respondo sincero, com a frustração presente em minha voz por estar em tal situação e não saber como agir – Ela está muito ferida, e precisa ser cuidada.

- Será que podemos levá-la a um hospital humano? – Ela pergunta me olhando.

- Não será necessário. Existe uma aura do Paraíso em um dos quartos. – Explico.

- É uma daquelas coisas de recuperação dos anjos que a Mika contou uma vez? – Nick questiona, e confirmo com um aceno, apesar de estar com uma sobrancelha saltada. – Por que não levar ela para essa aura?

- Não é tão simples, ela já estava estranha antes de sair de casa. – Aperto a boca ao lembrar a maneira como ela me beijou quando tentava baixar sua febre, e seu olhar tão ardente naquele momento. Sabia que algo estava errado, nunca tivemos um beijo como aquele antes, e seu olhar continha um desejo que nunca antes demonstrado e até mesmo irreal, algo que parecia até se espalhar por mim e fazer com que eu a desejasse da mesma maneira, me senti seduzido naquele beijo, hipnotizado como nunca antes aconteceu e querendo mais daquilo. Se eu não parasse, não sei o que teria acontecido – Não sabemos como ela vai se comportar quando despertar.

Apesar de minhas palavras, sei que levar ela para a aura seria a primeira coisa que eu teria feito em qualquer outra situação. Sinceramente, essa ainda é minha vontade, e estou muito perto de levar seu corpo ferido para a aura, e deixar com que se recupere.

Nick e Layla se calam, refletindo em minhas palavras. Suas feições me dizem que eles querem debater, encontrar uma justificativa para ir contra o que disse, mas nenhum dos dois encontra argumentos para tal.

- Existe outro problema. – Continuo após instantes de silêncio – Agora que Mika teve todos os seus poderes liberados, não sabemos como a aura irá reagir a ela. Não podemos arriscar.

- Foi a tal Raika quem liberou os poderes da Mika? – Ouço a Cria do Abismo questionar, se aproximando do sofá. – Acho que consigo fazer o processo inverso.

- Está dizendo conter toda essa energia acumulada outra vez? – Layla pergunta, e recebe um aceno positivo. – Será que isso é possível?

- Não tenho certeza, a força da Mika está muito maior do que antes... Mas ainda é uma alternativa. – Ele explica, parando perto do sofá – Já restringi os poderes dela uma vez, quando estava no Abismo. Acho que posso fazer isso de novo.

- Domínio da escuridão, desestabilizar o clima, criar fendas dimensionais, dar forma a alma dos mortos, e agora reverter uma ação da soberana do submundo. – Vou listando as habilidades que já vi ele utilizando – Até onde vão seus poderes? Existe algum limite para você?

- Sim, minha criatividade e meu cansaço... – Ele salta seus ombros – E eu estou exausto...

- Se está tão cansado, porque quer arriscar isso? – Layla aperta os olhos.

- Usar minha vontade drena muito de mim, mas acredito que vale a tentativa. – Ele esboça um sorriso conformado – Se não der certo, e eu ficar sem energia, provavelmente irei desmaiar, mas nada irá acontecer de mal com a Mika.

- Você acha que consegue? Antes os poderes dela já estavam contidos, e agora é diferente, a Raika tirou qualquer limite que havia nas essências que a Mika absorveu. – Nick se lamenta, em uma irritação que parece voltada a si mesmo, sua voz parece carregar culpa – Se soubesse que iria acontecer tudo isso, não teria deixado ela absorver tanto poder assim...

- Nick... – Layla até tenta dizer algo, mas ela mesma se detém e permanece no lugar.

- Eu via aquelas essências mudando a Mika, mas achei que não tinha nada demais. – Ele reclama baixinho, encarando os próprios pés – Se tivesse uma forma de tirar a essência do submundo dela, e deixar uma essência dos anjos no lugar...

Algo me vem em mente em um estalo quando ouço as palavras de Nick – O que foi que você disse? Deixar a graça de um anjo na Mika?

Nick troca um olhar com os outros dois, sem entender o que disse, e a ideia que ele acabou de dar sem nem ter percebido, e uma possível solução para o problema à nossa frente.

Sem me dar ao luxo de perder um único segundo, sigo apressado as escadas e subo pulando degraus, ignorando por completo as perguntas que ouço fazerem.

Avanço ao quarto de Mel e, devagar empurro a porta entreaberta, vendo minha filha adormecida por entre a penumbra. Em passos cuidadosos para não acordá-la, me aproximo da cama, observando minha pequena descansando tranquilamente, esticada pela pequena cama.

Não passa despercebido o brilho da graça vindo por debaixo do travesseiro da pequena, e em um movimento suave alcanço a graça e a trago para mim, fazendo com que Mel resmungue um pouco e se vire na cama, mas não acorde. Sem que perceba, um sorriso surgiu em meu rosto, e afagando seus cabelos loiros em um leve carinho, e a contragosto por não querer sair de seu lado, fico de pé e deixo o quarto.

Desço novamente a sala, observando a graça em meus dedos brilhar sem parar. Ela está muito menor e perdeu grande de seu poder, mas é impressionante que essa graça tenha resistido tanto tempo fora do corpo de um anjo. Não imaginei que algo assim poderia ser possível.

Layla e Nick me recebem com expectativa, principalmente pela graça que tenho comigo, mas nenhum deles diz qualquer coisa – Espero que dê certo. – Digo em voz baixa.

- Qual o plano? – Nick pergunta em um misto de curiosidade e ansiedade.

- Tentarei fixar essa graça no corpo de Mika, para contrapor toda a força do submundo que existe dentro dela. – Me posiciono ao lado do sofá, encarando cada um deles – Mas pela quantidade de energia acumulada, não creio que apenas uma graça enfraquecida será o bastante.

- Espera Ka'Su, acredito que pode dar certo. – Layla para ao meu lado – Já que somos dois anjos, podemos ceder parte das nossas graças reunidas para alimentar a graça dentro da Mika.

- O processo para recuperar aliados em campo, sacrificando da própria essência. – Digo em um sussurro, e ela acena com a cabeça de imediato – Passaram a ensinar isso na Legião?

- Aprendi com o senhor Ion'Alia. – Ela se mostra um pouco apreensiva – Mas nunca fiz algo assim antes... Espero ter aprendido mesmo...

- Iremos descobrir agora. – Digo indicando o lugar onde Layla deve se posicionar, próxima a cabeça de Mika, e traçando cada detalhe de como agir agora, volto minhas atenção para a Cria do Abismo – Quero que você nos ajude, o poder do Paraíso e do Submundo são opostos, e não sabemos o que uma quantidade tão massiva de energias opostas pode fazer ao corpo da Mika.

- Quer que eu retire parte do poder do submundo do corpo dela para que haja um equilíbrio. – Ele conclui meu pensamento, e assinto com a cabeça – Deixa comigo.

- Por que não retirar todo o poder do submundo dela? – Layla pergunta confusa.

- Eu adoraria fazer isso Layla, mas não podemos fazer isso. Não sabemos o que retirar toda essa massa de energia pode causar a ela, e sabemos se Mika precisará retornar ao submundo em algum momento. – Explico apertando a boca, por não gostar de pensar em tal possibilidade, mas sabendo que pode ser algo inevitável – Caso ela retorne possuindo somente o poder dos anjos em seu corpo, ela poderá ser vista como uma inimiga e atacada por todos.

- Ela deve ter ao menos um pouco do poder do submundo, pelo menos um equilíbrio entre essas duas forças. – Nick encara o chão enquanto diz.

- O que faremos com a energia que sair do corpo dela? – A Cria do Abismo questiona, parando ao meu lado, posicionando sua mão acima da barriga de Mika, mas sem tocá-la.

- Ainda não sei. – Admito, apertando os olhos.

- Coloque tudo em mim. – Nick diz, para meu espanto.

- O que está falando Nick?! – Layla é quem questiona – Você enlouqueceu?

- É nossa melhor alternativa. – Nick insiste, olhando para cada um de nós – Mika aguentou as essências do submundo mesmo sendo um anjo. Acho que por ser um demônio, também consigo suportar parte desse poder dentro de mim.

- Os poderes dela estavam contidos por todo esse tempo, e mesmo assim ela sofria da influência do submundo. – Explico para alertá-lo do risco, e Nick desvia seu olhar a Mika. – Fazer isso é muito arriscado.

- Mas deixarmos algo como isso solto, também é arriscado Klauss. – Nick aperta seus punhos a ponto de suas mãos tremerem.

- Você não pode... – Layla tenta dizer – Toda essa energia do submundo é muito instável.

Ele olha ao anjo, o encarando por um curto instante, e sorri. Nick não responde, apenas oferece um calmo sorriso para Layla, e volta-se a mim de uma forma decidida, a qual nunca vi em seu rosto. Ele sempre se mostrou tão medroso diante de mim, que era difícil o levar a sério, mas agora é diferente – Se eu enlouquecer, quero que você acabe comigo.

Encaro Nick, que sustenta seu olhar sem titubear. Não existem dúvidas ou receios, seu pedido foi autêntico. Com um gesto de cabeça, confirmo a ele que assim o farei, mesmo que em meu interior eu saiba que não quero fazer nada contra Nick. Não somente por Mika, mas porque tenho a certeza de que ele não é alguém ruim.

- Você é maluco... – Layla diz com a voz rouca, baixando seu rosto e se posicionando, e não me passa despercebido o franzir de sobrancelhas e sua boca apertada. Para mim, está claro que ela não concorda nem um pouco com essa ideia, e até poderia dizer que ela está preocupada com Nick, ou será que estou imaginando coisas?

- Isso é pela minha melhor amiga, então não importa. Vale a pena arriscar. – Enquanto diz, Nick também se posiciona. A Cria do Abismo ergue sua mão livre e encosta o peito de Nick.

- Só promete que não vai enlouquecer... – Ela diz num sussurro, que foi alto o bastante para cada um de nós conseguir ouvir.

- Vou tentar. – Nick diz com um riso curto, que não disfarça o nervosismo que deixou escapar.

- Certo, chega de conversa. – Pronuncio, posicionando minhas mãos de forma que a graça paira pouco acima do peito de Mika. A pequena esfera brilha em um forte tom branco, onde fragmentos se desprendem e cintilam devagar até o corpo de Mika. – Se preparem!

Baixo as mãos de forma que a graça começa a entrar devagar no corpo de Mika, que ergue seu corpo e um gemido baixo escapa dela. Seu rosto se contorce e as mãos apertam no sofá.

Com o canto dos olhos me atento as mãos de Layla brilhando, trazendo à tona o poder de sua graça. A Cria do Abismo abre sua mão, e uma aura carmesim passa a deixar o corpo de Mika, se projetando pelo ar em um movimento estranhamente suave.

Não demora para o brilho diminuir, até que desaparece por inteiro no momento que termina de entrar no corpo do anjo, e sem perder tempo, junto minhas mãos e manifesto minha própria graça e a compartilhando para alimentar o mesmo poder no anjo. Diferente do que esperava, a graça não teve nenhum tipo de rejeição, sequer precisei forçar de algum modo.

Layla e eu continuamos cedendo mais de nossas graças, ao ponto que uma fina camada brilhante surja em torno de Mika, e pequenas fagulhas cintilantes emergem de seu corpo, pairando no ar durante alguns curtos segundos antes de desaparecerem.

Não é muito, mas a graça de Mika está se fortalecendo cada vez mais. Só mais um pouco, e podemos levá-la para a aura do Paraíso seguir com sua recuperação física, e restaurar sua graça por completo.

Ouço um grito cortado e passos pesados, o qual não consigo ignorar. De canto de olho vejo Nick arfar pesadamente recuando devagar, levando uma mão ao peito e caindo de joelhos, curvando seu corpo para frente em grande agonia.

- Nick?! – Layla interrompe sua ação, o olhando apreensiva. Por um momento ela demonstra querer ir até ele, chegando a avançar um passo, mas por algum motivo se detém.

- Layla. – A chamo, e seu olhar vacilante vem a mim. – É o bastante. Vai!

Ela assente em silêncio, deixando sua posição e indo apressada até Nick. Me mantenho como estou, sem deixar de compartilhar da minha graça – Me diga, quanto poder do submundo você conseguiu tirar da Mika?

- Estava perto da metade. – A Cria do Abismo responde respirando fundo, cobrindo seu rosto com uma mão e esfregando seus olhos, tentando espantar seu cansaço, e logo endireita sua postura. – Acha que será o bastante?

- Ótimo, isso já nos ajuda e muito. – Digo avaliando a quantidade de graça que compartilhamos com ela, refletindo se já foi o suficiente. Parando de manifestar minha graça, já sentindo a exaustão e alguma fraqueza recaindo em mim, ergo Mika do sofá – Irei levá-la para a aura.

Me sinto pesado como a muito tempo não sentia, meu corpo está cansado de forma que não imaginei ficar, mas não posso ceder a qualquer cansaço agora. Sacudindo a cabeça e piscando forte, carrego Mika ao andar superior, abrindo a porta do primeiro quarto e avançando até a aura sem demora.

Com minha aproximação, a aura se expande devagar, abraçando meu corpo e de Mika, nos atraindo para seu interior. A aura parece erguer a mim e Mika devagar, e aos poucos vou soltando o corpo do anjo, que é completamente envolvido pela aura dourada e a faz pairar silenciosa ao centro.

O rosto de Mika já não está tão tenso como antes, algo mais sereno já se vê presente em si. Espero com todas as forças que tenha dado certo.

Deixo o quarto, encostando a porta e caminho de volta ao cômodo inferior, encontrando uma situação complicada na sala. Nick continua caído, Layla está ao seu lado, e a Cria do Abismo já está próximo a ambos.

- Ka'Su... – Layla tenta dizer, mas seu olhar continua em Nick. Ela concentra sua atenção nele, o acolhendo sobre suas pernas.

- Você se saiu bem, concedemos uma quantidade de graça suficiente para que a essência dentro de Mika possa se recompor. – Explico a situação, me concentrando em Nick e admitindo a preocupação – Como o Nick está?

- Desmaiou. Acho que foi demais para ele... – Layla responde relutante. – O que fazemos agora?

- Agora, o que nos resta é esperar. – Deixo um suspiro cansado escapar – E tentar descansar de alguma maneira.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top