Capítulo 44

4653 Palavras

Dirijo devagar e paro o carro bem ao canto da pista, abro a porta e saio, olhando ao céu noturno de poucas estrelas e algumas nuvens. Mal tem iluminação aqui, e fitando o céu por poucos segundos, encontro somente um profundo véu escuro acima de mim.

O frio da noite recai sobre mim assim que pus os pés para fora do carro, como se penetrasse minhas vestes e invadisse minha pele, fazendo com que um calafrio percorra minhas costas e faça com que eu estremeça, forçando com que eu imediatamente abrace a mim mesma para me esquentar um pouco.

Observo Klauss parar seu carro logo atrás do meu, e sem me pronunciar o observo deixar o carro e vir até mim, em passos leves sobre o gramado alto. Lançando meu olhar sobre o ombro, acompanho Nick se aproximar de nós, seguido por Layla logo atrás de si.

O anjo para ao meu lado, passando uma de suas mãos em meu ombro. Trocamos um olhar silencioso, e encosto minha cabeça em seu ombro, e sutilmente apertando o lábio. Os passos próximos de nós, além do som de animais escondidos em meio a vegetação alta, é a única coisa que pode ser ouvida nessa noite.

Decidimos vir a um lugar escondido próximos da fenda que leva ao submundo, e pelo horário, acho que tem pouco movimento. Não me lembro se já passei por esse lugar alguma vez sequer, apenas sei que a casa de Verônica e o celeiro velho estão bem perto daqui.

Ainda assim, é o melhor lugar para fazermos isso.

- Será que essa foi a melhor escolha? – Layla questiona assim que para ao nosso lado, fitando algo no céu.

- Era a única opção que tínhamos. – Nick responde com as mãos nos bolsos da calça, acompanhando o olhar de Layla – Era isso, ou então tentar enfiar os quatro dentro do porta-malas do carro da Mika.

- Não acho que seria má ideia espremer os quatro ali. – Layla não esconde seu desprezo pelo grupo de Stefan.

- Teríamos trabalho demais, e eles ficariam muito perto da Mel. – Digo olhando para o céu mais uma vez, enxergando algo se aproximar – Bom, ele chegou.

No alto, consigo ver sua silhueta tomando forma em meio às sombras da noite. De onde estamos, ele parece se aproximar de nós como se flutuasse silencioso dentro da noite, mas conforme se aproxima, é possível distinguir suas imensas asas sombrias.

Rodeados por uma aura escura muito estranha, projetada de suas mãos, estão os quatro que fomos buscar para levar de volta ao submundo. Percebo que todos já estão acordados.

- Aqui estão eles. – Se pronuncia assim que seus pés tocam o chão. – Como os levarão daqui?

- Vamos arrastar eles de volta ao submundo. – Digo fitando Stefan, que aperta seus dentes e sua feição tomada pela fúria pouco se oculta pela pouca luz – Exatamente como eu disse que faria.

- Por que você se aliou a anjos? – Violet pergunta se debatendo.

- Ela é um anjo, é obvio que voltaria correndo para eles alguma hora. – Diana me encara com desprezo, apertando seus olhos e os desviando ao chão. Com essas palavras tão ásperas, lembro-me do que Nick disse uma vez. Diana não é mais a mesma.

- Seu anjo imundo... Eu vou te estraçalhar... – Stefan rosna com um sorriso de canto, e posso enxergar as chamas causadas pela sua fúria ardendo dentro de seus olhos em um pulsar repentino – Espere até eu estar solto outra vez.

- Qual a chance de ele se soltar antes de chegarmos a senhorita Raika? – Nick demonstra alguma preocupação em sua voz.

O Cara do Casaco encara Stefan de canto, sem se importar com o olhar fuzilante que recebe do demônio. – Essa escuridão só irá desaparecer quando estiverem de frente a Raika. Antes disso, eles não conseguirão se soltar, não importa o quanto tentem.

- Como tem tanta certeza disso? – Layla pergunta desconfiada.

- Stefan não vai se soltar. – Não sei como, mas tenho uma estranha convicção em mim, o que causa certo espanto nos demais – Nós podemos confiar nisso.

- Então... Vamos indo? – Nick pergunta – Acho melhor acabarmos com isso logo.

- Concordo Nick, vamos. – Digo caminhando até o grupo, quando então volto meu olhar para os dois anjos. – Klauss, você leva a Mel para casa?

- Sim, quer que eu deixe seu carro aqui mesmo? – Ele pergunta.

- Não precisa se preocupar com isso Klauss. – O Cara do Casaco abana uma mão – Verei onde os dois vão, e deixo o carro da Mika parado bem em frente.

- Inclusive, isso é algo que já desejava te perguntar. – Klauss se aproxima da Cria do Abismo, cruzando seus braços assim que estão frente a frente. O anjo é bem maior, já que o outro tem praticamente a mesma altura que eu – O que veio fazer aqui?

- Nada demais, vim dar uma olhada na livraria da cidade. – Explica tranquilamente – Talvez leve alguns livros para uma amiga continuar os estudos.

Klauss o encara com o âmbar de seus olhos brilhando, e sua postura firme indica claramente que desconfia do Cara do Casaco. Decido também perguntar por algo que estava na minha mente desde que deixamos a boate – Como nos encontrou?

- Não foi difícil, eu já estava na cidade. – Ele conta voltando seu olhar a mim – Alana e eu percebemos que havia alguma coisa estranha acontecendo, e decidi ir dar uma olhada.

- E por quanto tempo ficará? – Klauss pergunta novamente, enquanto penso somente no detalhe que a irmã dele também está na cidade.

- Ainda não tenho certeza, acho que minha irmã e eu iremos conhecer a cidade. – Ele salta seus ombros – De qualquer maneira, não ficaremos tanto tempo.

O anjo volta seu olhar a mim por alguns segundos. Ele parece refletir por alguns instantes, quando se volta novamente à figura – Enquanto permanecer na cidade, evite usar seu poder. Você se lembra do que ocorreu da última vez que esteve aqui.

- Lembro, um monte de anjos aparecendo do nada. – Responde.

- Se seu poder for sentido nesta região por mais uma vez, não sei o que o Paraíso ou o Submundo enviará para tentar te conter. – Klauss olha para cada um de nós, e por fim observo que ele volta sua atenção para Mel – Se isso acontecer, todos nós estaremos em perigo.

A Cria do Abismo da um pequeno sorriso – Tudo bem, evitarei chamar atenção.

- Ótimo. – Klauss descruza os braços – Obrigado por ter salvo a Mel.

Ele balança a cabeça de leve – Não precisa me agradecer.

O anjo ergue a mão em um cumprimento a Cria do Abismo, gesto esse que é respondido pelo ser da mesma maneira, onde um silencioso aperto de mãos é feito entre eles, e agora, sou eu quem sorri ao ver isso.

Klauss então se vira e vem até mim – Levarei a Mel para casa. Estaremos esperando você e Nick voltarem.

- Nós voltaremos logo Klauss. – Percebo que conversamos baixinho pela nossa proximidade, sem desviar nossos olhares. – Pede para a Layla nos esperar voltar?

- Acredito que não preciso pedir. – Klauss diz com um riso contido, e olhar para o sorriso em seu rosto sempre mexe comigo – Algo me diz que ela vai ficar para esperar o Nick.

- Será? – Retribuo o riso, rompendo a distância e me despedindo do anjo com um rápido beijo, de uma vontade crescente que surgia em meu peito – Estou indo Klauss.

- Se cuide Mika. – O anjo se afasta, seguindo em direção ao meu carro.

Olho para Nick, que ergueu e lançou tanto Violet quanto Diana sobre o ombro, as ajeitando de um modo que consiga fazer o caminho sem dificuldades. Me volto para Stefan e Zephyr, e me posicionando perto as costas deles, seguro a gola da camisa de Zephyr, e agarro o cabelo de Stefan e dou um forte puxão, tirando um rosnado dolorido dele – Ah, me desculpe. Fui muito forte para você?

- Você me paga... – Stefan ameaça, e Nick não segura seu riso. – Aí, anjo!

Interrompo meu caminhar, olhando para Stefan. Ele não olha para mim nem para Layla, sua atenção está voltada a Klauss.

- Essa caída vai voltar para você, e você vai ver... Ela estará bem diferente. – Stefan diz com asco, e uma risada debochada – Quando isso acontecer, tenha certeza que ela esteve se divertindo bastante com o senhor Minos, sendo o brinquedinho dele... E quem sabe com quantos mais?

Klauss endurece seu olhar a Stefan, e sem dizer nada desvia sua atenção e segue caminhando para longe. Foi por poucos segundos, mas pude ver como o olhar do anjo mudou para algo irritado e até mesmo sua graça pode ser sentida, intensa e ameaçadora, e toda a vegetação chacoalha com o repentino vento que passa por nós.

- Cale a boca Stefan! – Digo em um novo puxão forte, causando um novo gemido de dor, seguido de uma risada seca e volto minha atenção a Klauss, que não olhou mais para trás.

Troco um olhar preocupado com Nick e fitamos as costas do anjo alcançando Mel e a erguendo no colo, e a contragosto seguimos o caminho em direção a fenda do submundo, e atrás de mim, posso escutar o ronco do motor do carro de Klauss cada vez mais distante de nós.

*****

Sob seu olhar inquisidor dourado, Nick e eu nos curvamos devagar, como se qualquer movimento impensado nosso pudesse nos colocar em sérios problemas.

Em seu trono, com as pernas nuas cruzadas e apoiando o rosto em uma das mãos, ela nos observa seriamente, como se buscasse entender o motivo de estarmos à sua frente.

Meu corpo inteiro está tremendo pelo poder que sinto emanar dela, e Nick mal consegue erguer seu olhar a ela. Seu semblante mostra como está assustado.

Já o grupo de Stefan se viu livre das amarras de sombras assim que nos colocamos frente à soberana do submundo, assim como o Cara do Casaco disse. Stefan tentou se libertar no momento que entramos no submundo, mas nada do que ele fizesse o libertava. Neste momento, eles também se curvam a ela.

- Senhorita Raika. – Começo a falar – Como me ordenado pelo juiz Aecos, trago de volta ao submundo Stefan e seu grupo, e me apresento novamente.

Ela não diz nada a princípio, mas em sua face surge um sorriso. Um sorriso que não sinto ser amigável, é o contrário. É um sorriso perigoso que não oculta em nada o perigo que ela representa, envolta em uma presença tão poderosa que causa uma pressão absurda, capaz de esmagar cada um de nós a qualquer momento – Explique-se Mi'Ka!

- Recentemente Aecos surgiu para mim, e disse que deveria me apresentar novamente a sua presença. – Cada uma de minhas palavras é dita com cautela, tanto que até mesmo evito erguer meu olhar a ela. – E quando retornasse, devia trazer esse grupo comigo.

- De fato, Stefan e seus seguidores não retornaram ao submundo. – Ela diz com uma voz estranhamente suave, quando ouço seus passos se aproximando de nós – Stefan, se me recordo bem, ordenei a vocês para retornarem a qualquer conclusão da busca pela Cria do Abismo. Por que não retornaram?

- Senhorita Raika, nós... – Ele começa a falar – Decidimos permanecer para observar.

- Observar? – Ela questiona, e vejo que ela parou bem ao meu lado. – Pelo que sei, a Cria do Abismo deixou a região faz dois meses, então, o que tanto observaram?

- Essa caída imunda! – Ele ergue a voz com desprezo, e com o canto do olho vejo que ele se pôs de pé num impulso e aponta para mim em tom acusatório – Essa miserável... Ela traiu o submundo e se uniu ao anjo da Legião!

- Stefan. – Raika solta um riso divertido, quando algo parece envolver o corpo de Stefan. Uma grande esfera que parece criada de vento, chamas e raios, que explode numa onda tão forte que quase me desequilibra. Ao escutar um impacto, não consigo desviar o olhar de Stefan, que está caído do outro lado do salão, após bater contra a parede – Não lembro ter autorizado que erguesse sua voz em minha presença.

- Senhorita Raika... – Diana diz em temor, com a voz mais contida – É verdade... Mika se envolveu com anjos, e... Está levando o Nick com ela...

Raika volta seu olhar a mim, me encarando de cima com uma indiferença que nunca presenciei em seu olhar, como se eu não fosse nada diante de si, e então se volta para Diana – E vocês julgam que esse é motivo suficiente para me desobedecerem?

Diana se cala, como se não conseguisse encontrar palavras para se justificar. Ao longe, Stefan tenta se erguer com dificuldade.

- Fui clara em minhas ordens. Encontrem e neutralizem a Cria do Abismo, e no caso de não conseguirem, retornem com todas as informações que conseguirem, vocês inclusive tinham uma papelada sobre isso. – Ela diz com imponência, e sinto que cada palavra torna o ambiente mais hostil – Não abri espaço para desobediência, caso considerassem algo importante, que se reportassem a mim ou a um dos três juízes.

- Eu... Peço seu perdão... – Stefan diz com dificuldade após se erguer.

- Retirem-se, e permaneçam no submundo. – Raika diz impassível – Caso você ou qualquer um do seu grupo saia, vocês serão caçados e acorrentados por eras. E tenham em mente algo importante... Eu saberei se deixarem o submundo.

- Tudo bem... Nós entendemos, estamos saindo... – Stefan se aproxima de seu grupo, que o rodeiam e caminham para os portões do salão, parando antes de sair.

- Senhorita Raika, existe algo mais. – Diana se pronuncia, e volta seu olhar a mim, em uma hostilidade palpável – Antes de sermos capturados, apareceu mais alguém. Um dos anjos chamou ele de "Cria do Abismo".

Eles não esperam por uma resposta, pois saem assim que Diana disse, deixando a mim e Nick num silêncio sepulcral. Trocamos um olhar, e em relutância volto meu olhar ao arquidemônio.

- Então, vocês estão se aliando a anjos do paraíso? E recebendo auxílio da Cria do Abismo? – Ela olha de mim a Nick devagar, porém a maneira que nos observa dá a entender que Raika não espera, muito menos quer uma resposta nossa. Ela sorri, e logo em seguida solta uma risada seca. Ela sabe que sim.

- Senhorita Raika, nós... – Nick até tenta se explicar, mas suas palavras se esvaem. Ele olha a mim, não como se pedisse por ajuda, mas sim me pedindo desculpas, e com um suspiro de rendição, seus ombros abaixam – Foi... Necessário...

- Necessário, é? – Cruzando seus braços, ela encara Nick com alguma reprovação, mas é estranho o fato de que ela continua sorrindo – Se era tão necessário se unir a alguém, poderiam ter recorrido a outros demônios do submundo. Buscado pelos três juízes para orientá-los, e se necessário unir vocês a esquadrões, poderiam ter usado humanos para os servirem... Mas não, vocês dois agiram por conta própria, e se uniram a anjos! Ao Abismo!

Sua voz troveja pelo salão, tão imponente que parecem reverberar além daqui e ecoar por todo o submundo. Até mesmo as estruturas daqui se agitam, e é possível perceber que poeira e pedras se desprendem e vão ao chão, mas não ouso desviar meu olhar dela.

Ouço uma risada baixa de Raika, e fico confusa com isso. Ela balança a cabeça negativamente, sem deixar de rir – Como não notei isso antes?

- Senhorita Raika? – Pergunto em um fio de voz.

- Está tão na cara, vocês dois estão apaixonados. – Ela conclui como sendo a coisa mais óbvia do mundo, e não sei se essa conclusão é uma coisa boa, ou ruim. Mas sei que estou em choque. – Os dois, me acompanhem.

Antes que eu responda, uma sensação que não tenho desde que lutei contra o Cara do Casaco recai sobre mim. A sensação de que meu corpo está rendo repentinamente carregado e solto de uma vez, e quando dou por mim, o local onde estamos não é mais o salão de Raika.

É um estranho lugar com um céu escuro acima de nós, com incontáveis estrelas cintilando por entre finas nuvens que predominam o cinza e algumas outras tímidas cores, iluminando todo esse espaço em uma luz branca intensa.

Corro meus olhos ao redor, vendo que estamos em uma estranha e extensa plataforma circular, no cume do que parece uma montanha. Ao redor desse pilar, enxergo somente uma extensão de nuvens cinza avermelhadas que se expande por todos os lados até alcançar o distante horizonte, e não muito longe daqui, iluminado pelas estrelas, enxergo algumas elevações semelhantes a plataforma onde estamos, todas distantes umas das outras.

Abaixo de nós o piso é formado por algumas placas de pedra cinzenta com muitas rachaduras por onde plantas e flores encontraram espaço para crescer. Quanto mais se aproxima das extremidades, a vegetação se torna mais abundante e várias flores abertas se veem presentes, e até mesmo algumas borboletas podem ser encontradas voando serenamente por entre as flores. Sinto-me em meio a um belo e bem cuidado jardim.

Não somente isso, a energia presente neste lugar é única, ao mesmo tempo que tão intensa, parecendo até mesmo invadir meu corpo por todos os lados, é calma e muito suave. É uma energia que lembra muito o poder de Raika, é tão grande que cobre todo esse lugar.

- Esse lugar é... – Nick consegue expressar com a voz sussurrada.

- Incrível, não é? – Raika se pronuncia com orgulho na voz, dando alguns passos para longe de nós. – Sintam-se honrados, pois vocês estão em meu espaço particular, onde nem mesmo os três juízes estiveram.

- Mas senhorita Raika... – Continuo com o máximo de cautela que posso – Por que nos trouxe a esse local... Aqui é quase... Divino.

- Sentem-se. – Ela ordena, mesmo que sua voz esteja suave. Nick e eu obedecemos e devagar sentamos no chão, e apesar do chão de pedra, não fico desconfortável de maneira alguma. E assim que ela torna a nos olhar, também se senta no chão, esticando ambas as pernas e as aproximando do corpo, apoiando suas mãos ao chão e erguendo o rosto com grande leveza, se deixando iluminar pela luz desse ambiente. Ela mantém seu silêncio, com um sorriso leve no rosto, e seus cabelos soltos pendem próximos às costas, e a observando, poderia até ousar dizer que ela se assemelha muito a qualquer humana desfrutando de um momento só seu – Não deveria julgá-los por terem se apaixonado.

Sua fala tão suave me pega desprevenida – O que quer dizer?

- Vocês conseguiram realizar um feito muito único. – Ela torna a lançar seu olhar a nós, algo leve que consegue fazer com que parte da tensão em mim esvaneça – Anjos e Demônios tendo um sentimento além de suas naturezas. Algo raro, tanto no submundo quanto no paraíso.

Não a respondemos, permanecemos em nosso silêncio como se, de alguma maneira, isso nos protegesse do arquidemônio a nossa frente, que se comporta com tamanha leveza.

- Não precisam esconder, não de mim. Pensam que eu não vi tudo? – Ela diz com um riso amigável, abraçando suas pernas e apoiando o queixo sobre os joelhos, e com um dedo aponta para mim – Você está morando com o anjo da lua pálida já faz meses, e até tem uma filha juntos. Já você, vi que se encontrou algumas vezes com aquele outro anjo da legião, e apesar dos estranhos desentendimentos continuam sempre se vendo, como se atraídos um pelo outro.

- A senhorita... Viu tudo... – Nick fita o chão em preocupação.

- Não existem leis que os puna caso se apaixonem... Ou amem... – Raika diz isso, mas conforme ela fala, algo me vem em mente imediatamente. – Não se sintam culpados. É tão raro, que não existe nada que proíba isso.

- Nada, a não ser a ordem natural... – Sussurro preocupada, apertando as mãos sobre os joelhos.

- De fato, existe a ordem natural. – Raika confirma – E dentro da ordem natural, esse ocorrido é raro, mas não impossível... Como se sentem?

Nick fecha seus olhos com força e seus lábios apertam. Ele respira fundo, como se reunisse coragem para responder algo difícil – É estranho senhorita Raika... Mas, é bom... Da primeira vez que a vi eu tinha medo, mas ao mesmo tempo ela me fascinou, de alguma forma ela mexeu comigo, e queria olhar para ela sempre que pudesse, até o momento em que ela foi embora voando pelo céu... Eu não sabia porque, mas queria ver a Layla outras vezes, por isso encontrei meios para atrair a atenção dela... E toda vez que eu podia encontrá-la, eu me sentia bem, e gostava de estar com ela, e sempre quero vê-la de novo... Eu acho que... Que gosto dela...

Raika escutou cada palavra atentamente, assentindo em silêncio a explicação relutante de Nick quase como uma boa amiga, e seu sorriso cresce um pouco.

Sinto-me um pouco surpresa, e até baqueada em ouvir essa confissão de Nick. Não imaginava que ele se sentisse assim em relação a Layla, e sequer imaginei que eles tivessem se encontrado outras vezes. Sempre achei que o único encontro deles foi quando os deixei cuidando da Mel, mas não esqueço a forma como Nick a olhava quando estávamos no abismo, mas acreditava que não tinha nada demais em seu olhar.

Na verdade, agora que descobri tudo isso, me sinto alegre por Nick, e também, me encontro curiosa para saber se Layla sente alguma coisa por ele. Ela o observa com desconfiança, mas percebo que já não existe mais aquela hostilidade da primeira vez que o viu.

- E quanto a você? – Ela olha a mim – Como se sente?

- Sinceramente, senhorita Raika? – Começo a falar, deixando um suspiro me escapar e a olhando. Da mesma forma que fez com Nick, ela me observa prestando atenção – Já estou morando com Klauss a alguns meses, e não faz muito tempo que adotamos nossa filha... E em nenhum momento imaginei viver tantas coisas, ou sentir tudo isso... Eles são importantes para mim, de uma forma que nem sei se consigo encontrar palavras para descrever... Mas sei que eles me fazem feliz, como nunca esperei ser.

Raika aconchega o rosto entre os joelhos e se mantém me olhando, aguardando pacientemente que eu continue. Ao meu lado, Nick me olha, e meu amigo apenas tem um sorriso bobo em seu rosto, e um semblante leve onde parece apoiar tudo que expresso.

- A muito tempo atrás, houve uma vez que disse me arrepender de tudo que fiz, que se pudesse, voltaria atrás e... Faria tudo diferente... – Lembro-me quando disse essas palavras, e me permito sorrir – Mas agora eu vejo que, se não tivesse feito tudo que fiz, não teria conhecido o Klauss, nem teria minha filha... Eu não teria minha família... Hoje eu percebo que na verdade, não me arrependo de nada.

Raika baixa seu olhar ao chão e seu sorriso não desmancha. Ela sorri em compreensão, e encontro gentileza em seu rosto – Eu entendo.

Por alguns segundos, nós três ficamos em silêncio. Um silêncio confortável, onde até mesmo me esqueço de quem está à nossa frente, ou do lugar onde estamos. Para mim, este momento é como estar reunida com amigos, onde não tenho problemas em me expressar.

- Senhorita Raika... – Nick rompe o silêncio – Estarmos envolvidos com anjos... Gostar deles... É uma traição ao submundo?

Ela fecha seus olhos, e lentamente seu sorriso se desmancha, até que seus lábios estejam apertados – Infelizmente, sim.

Infelizmente? Por que ela disse isso?

- Mas... – Nick gagueja – A senhorita disse não haver punições...

- Disse não haver punições, mas me referi quanto a se apaixonarem, e amarem... – Devagar ela se ergue novamente, e nos olha com um ar muito diferente do de antes. Fecha seus olhos em claro pesar, e por fim volta a nos encarar – Porém, as coisas são diferentes quando se trata de envolvimento com o seu oposto.

- Oposto? – Pergunto em um fio de voz.

Ela ergue o indicador a nós, e apesar da mágoa que encontro em seus traços, sua autoridade se mostra presente. Volto a me lembrar quem Raika realmente é, a soberana do submundo, oposta ao Grão Mestre Arcanjo – Vocês carregam o poder do submundo dentro de si, enquanto os anjos carregam o poder do paraíso. Essas são forças opostas que não devem se unir... E como excedente, vocês encontraram a Cria do Abismo, mas sequer o mencionaram a mim.

Mesmo abaixados, Nick e eu recuamos um pouco, incertos do que fazer agora. Não temos para onde ir nesse espaço particular de Raika, ambos estamos praticamente indefesos diante da soberana do submundo, e mesmo se saltarmos da plataforma, não sei onde iremos cair, isso é, se alcançarmos algum lugar.

- Eu genuinamente gostei de ouvi-los, posso ver ver que os sentimentos que nutrem por aqueles anjos são verdadeiros... E jamais os julgarei por isso. – Ela se pronuncia, e em sua pausa, a energia deste lugar se altera, onde a calma desaparece e dá lugar a algo extremamente ameaçador, uma pressão esmagadora que só senti igual quando fui expulsa do paraíso, e isso faz meu corpo inteiro tremer – Não gostaria de fazer isso, mas os dois serão punidos por suas traições, e eu já sei como.

Ao proferir essas palavras, sinto meu corpo sendo carregado novamente, como aconteceu momentos atrás, e ao olhar em volta confirmo que voltamos ao salão que estávamos antes. Percebo que Raika olha diretamente a mim, onde o dourado de seus olhos brilha intensamente, e me encontro imóvel diante de seu olhar.

- Ao que vejo, Minos e Aecos estavam certos, você possui um grande poder acumulado em si, mas toda essa força ainda está contida. – Ela direciona sua mão a mim, onde um estranho vórtice surge de sua palma, girando em minha direção emanando um grande brilho de seu interior, e algo parece se abalar dentro de mim – É hora de libertar todo esse poder!

Algo em mim começa a se expandir de repente, e minha visão embaça com um único impacto que me atinge de todas as direções. Sinto algo crescer dentro da minha cabeça, peito, e estômago, algo que toma espaço cada vez mais, a ponto de me fazer respirar com dificuldade, e até mesmo de me manter desperta.

Meu corpo cede, e com as poucas forças que tenho, consigo apoiar os braços no chão e me manter consciente. Os sons ao meu redor se confundem, mal enxergo com clareza, e sequer consigo me mover, tudo que posso é sentir algo maçante cada vez maior dentro de mim, causando espasmos e dores absurdas, e cada vez mais fico aflita.

- Senhorita Raika... – Ouço a voz ecoada de Nick, parece distante de mim – O que está acontecendo com a Mika...?

- Libertei todo o poder que estava contido nela... Agora, ele crescerá até alcançar todo seu verdadeiro limite, e com isso a punição iminente acontecerá! – A voz de Raika, ao mesmo tempo que parece distante, também parece ecoar dentro da minha cabeça repetidas vezes. Levo ambas as mãos à cabeça, e com dentes apertados e gemendo de dor, tento resistir a dor, e manter minha consciência que começar a se esvair – E quanto a você, tire Mi'Ka da minha frente!

Algo para ao meu lado e sinto meu corpo ser erguido devagar. Com muito esforço e olhos apertados, consigo enxergar Nick atordoado e confuso, ele está assustado e parece sem reação ao me ver assim, quando então ele para a minha frente, passando meus braços em torno de seu pescoço e, com meu corpo apoiado em suas costas, sinto que sou erguida do chão – Nick...

- Calma Mika, irei te tirar daqui... – Ouço ele dizer, e pelos movimentos repentinos, ele começou a caminhar o mais rápido que pode – Vou te levar até o Klauss, ele vai saber o que fazer... Só aguenta até lá.

Arfando de dor, confirmo com a cabeça e fecho os olhos, tentando aguentar o caminho de volta.

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