Capítulo 40
8986 Palavras
Encaro o teto já por longos minutos, aproveitando o silêncio e a pouca luz para me manter calma. Durante as últimas horas estive inquieta e em total estado de alerta, mas aos poucos, senti que fui baixando minhas barreiras.
Acredito que a hospitalidade de Edan e Anne foi o que me permitiu relaxar um pouco, e claro, ter Klauss ao meu lado fez total diferença.
Não imaginava que aquela Cria do Abismo permitiria que Klauss e eu ficássemos aqui no Abismo, ou que cederia um espaço para nós passarmos a noite.
Layla e Nick recusaram o convite para ficar, e para a surpresa de todos nós, o Cara do Casaco gentilmente disse que levaria ambos de volta. Apesar de desconfiados, os dois aceitaram, e ao que parece, retornaram ao mundo humano por meio de um portal aberto pelo Cara do Casaco.
Com isso, Edan disse a mim e Klauss que haviam quartos livres e podíamos passar a noite em um deles, e assim que anoiteceu, nos recolhemos. Senti falta de Mel não vir conosco, mas entendo que nesse momento, o que mais nossa menina quer, é ficar com sua mãe.
Solto um profundo suspiro e me ajeito devagar na cama, passando minha mão sobre o peito de Klauss e me ajeitando próxima dele, que abraça minha cintura e entrega carinhos em meu cabelo com a ponta de seus dedos.
- Você está quieta já a algum tempo Mika. – Ele diz com a voz sussurrada.
- Estou pensando em tantas coisas Klauss... – Ergo meu rosto a ele, e encontro seu olhar âmbar se destacando no escuro do quarto – Aconteceu tanta coisa em tão pouco tempo... Não sei como me sentir.
- Preocupada com a Mel, não é? – Ele indaga.
- Também, é só que... – Aperto os lábios – Não me entenda mal, eu fiquei feliz pela Mel estar com a mãe dela, fiquei feliz de verdade, mas...Nem eu sei o que estou sentindo... Eu estou com medo.
- Por que sente medo? – Pergunta, se erguendo um pouco na cama para me olhar.
- Medo da Mel ficar com a mãe dela e não podermos mais vê-la, ou ter ela presente nos nossos dias... É que já me acostumei com ela vivendo com a gente, de ver ela brincando, falando sem parar, de ensinar coisas a ela, e... Eu me sentiria mal em perder tudo isso, perder a Mel me faz muito mal, não ter mais ela conosco me machuca... – Solto um demorado suspiro, com um estranho peso no meu peito – Me sentir assim é egoísmo meu?
O anjo reflete em minha pergunta, porém diferente do que eu esperava, não tenho uma resposta sua. Seu olhar não me diz nada, o dourado que encontro é profundo, envolvente e misterioso, e não consigo decifrar nada nesse momento.
- Agora, você também está quieto. – Sussurro curiosa. – No que está pensando?
- Em uma resposta para sua pergunta... Uma pergunta que, agora, também é minha. – Ele responde reflexivo. – Não sei o que responder, Mika.
Sinto sinceridade presente em suas palavras e na dúvida que ele sente. Apesar de não ter uma resposta, eu sorrio e estranhamente, me sinto um pouco mais tranquila.
- Acho que teremos que lidar com essa dúvida essa noite. – Respondo com um riso baixinho, e Klauss corresponde com um pequeno sorriso. – Ei Klauss... Quando você passou a ver a Mel como uma filha?
Ele faz um som pensativo – Acredito que foi logo quando decidi adotá-la.
- Foi tão rápido...? – Pergunto e o vejo assentir com a cabeça, e fico pensativa com sua resposta – Eu demorei tanto tempo... Toda vez que pensava nisso, eu achava ser errado...
- Por que pensava isso? – Pergunta em um tom tranquilo.
- Tinha medo de estar tomando o lugar da Felícia... – Respondo. – Fui eu quem retirou a alma dela, e sempre me culpei demais por isso... Mas alguém sempre dizia que a Mel era minha filha, e eu pensava...
- Você estava cumprindo um trabalho do submundo Mika. – Klauss me interrompe – Você não tinha escolha. Mas a própria Felícia te pediu para cuidar da Mel, por isso, você não estava tomando o lugar dela.
- Você tem certeza? – Sussurro, e ele me confirma movendo a cabeça – Tudo bem... Vamos dormir?
- Não sei se conseguirei. – Ele responde – Eu não...
- Você não sente sono, eu sei. – O interrompo de um jeito brincalhão para nos animar um pouco, e o anjo aumenta seu sorriso. – Foi só para te encher um pouco.
Ele solta um riso nasal com minha resposta – Estou percebendo.
- Sempre tão paciente. – Provoco me aproximando mais de seu rosto, e nosso olhar permanece unido.
Ele se mantém me olhando, sua expressão é suave e seu olhar não está endurecido. Está bem acolhedor e caloroso, sinto-me confortável e aos poucos me sinto relaxar.
Nossa distância diminui, até que nossos lábios se encontram, em um suave beijo. Klauss me aproxima de si, passando suas mãos em torno da minha cintura e devagar meu corpo se une ao dele, inconscientemente nos unimos, aprofundando nosso beijo que faz tudo que sinto por ele crescer em meu peito.
Mesmo em suavidade, nossa respiração descompassa por um momento, me sinto arfar e anseio por beijá-lo novamente. Nossos olhares se encontram e nossas bocas estão próximas, muito próximas. Meus braços passam em torno de seu pescoço e ele sobe suas mãos pelas minhas costas devagar mas com firmeza.
Ainda próximos, nossos olhares permanecem unidos, tenho a vontade de beijá-lo novamente de tão perto que estamos, quero sentir seus beijos por mais uma vez, mas ao mesmo tempo não quero perder o que seu olhar me transmite. É algo tão profundo, um sentimento tão único, que não sei se poderia ser expresso por meio de alguma palavra.
Dou um sorriso a ele, tocando seu rosto com carinho, e vejo como Klauss devolve com um sorriso sincero, e com um último beijo tranquilo, mas igualmente profundo, passo as mãos pelo seu peito, chegando a barra de sua camisa – Posso tirar?
Ele assente devagar, e devagar ergo sua camisa e a retiro, jogando para fora da cama. Percebo o olhar do anjo em mim, e o que ele me pede silenciosamente. Devagar, trago suas mãos ao meu corpo, e ele retira minha própria camiseta e a deixa de lado.
Klauss se ajeita devagar, tornando a deitar na cama, e encostando meu rosto em seu peito, sinto seus braços me envolvendo carinhosamente, desenhando carinhos pela minha pele com a ponta de seus dedos.
Aos poucos relaxo sentindo sua pele e o calor de seu corpo, e a maneira como sinto-me acolhida suavemente por ele. Seus toques transmitem cuidado e carinho, e essa sensação de sentir meu corpo unido ao dele sempre é uma das coisas mais únicas que já pude experimentar desde que o conheci.
- Confortável? – Ele me pergunta com um sussurro.
- Muito, eu gosto de ficar assim, poder sentir você... – Sussurro preguiçosamente o abraçando, mergulhando na sensação e proximidade dos nossos corpos, seu calor, tudo em Klauss que me envolve de uma maneira que sempre desejo sentir – Estou me sentindo cansada, mas não quero te deixar sozinho...
- Não se preocupe com isso Mika, você pode descansar. Eu estarei cuidando de você. – Ele me responde.
- Vai cuidar de mim a noite inteira? – Pergunto risonha.
- Vou sim. – Ele responde.
- Até se eu roncar? – Pergunto novamente, e vejo como Klauss não resiste e ri baixinho.
- Sim, até se você roncar. – Ele responde bem humorado, e mais leve e com um sorriso bobo, fecho meus olhos – Boa noite Mika, estarei aqui quando acordar.
Me aconchego em seu peito, e sinto o anjo erguendo as cobertas até meus ombros, e com essa sensação agradável presente em mim, me permito adormecer.
*****
Desperto aos poucos, ainda em meio ao profundo silêncio do quarto. Ergo meu corpo devagar, esfregando uma mão nos olhos e me esticando preguiçosamente para afugentar todo o sono.
- Bom dia Mika. – Ouço Klauss dizer suavemente.
- Bom dia... – Digo com a voz rouca, virando o rosto de um lado ao outro procurando por algum sinal de luz pelo quarto – Já é de manhã?
- Acredito que sim, ouvi algumas vozes fora do quarto. – Ele explica e assinto – Vamos levantar?
Desabo preguiçosamente sobre ele mais uma vez – Não quero... – Digo manhosa, com uma careta que com certeza ele não consegue ver.
- Vamos, a Mel com certeza já acordou. – Ele diz, e assentindo devagar, me sento na cama por mais uma vez, soltando um longo bocejo.
Sinto o olhar dele nas minhas costas, mas nada é dito. Pesco minha roupa de ontem e torno a vesti-la, e volto minha atenção a Klauss. Ele continua me olhando, e tenho a impressão que ele deseja dizer algo, mas por algum motivo, não o faz.
O anjo fica de pé e veste sua camisa, e dessa vez sou eu a observá-lo atentamente, tentando descobrir o que passa em seus pensamentos, mas não consigo ter a menor ideia do que possa ser.
Ele percebe meu olhar voltado a si, e dessa maneira ficamos. Fitando o brilho de seus olhos, procuro decifrar o que está em seus pensamentos, e apesar de minha tentativa, nada consigo encontrar.
Vindo em minha direção, devagar o abraço, encostando meu rosto em seu ombro e fechando meus olhos, e sou abraçada de volta. Um abraço carinhoso, onde me sinto confortada e até respiro um pouco mais leve.
Sem dizer nada, nos afastamos e seguimos caminhando para fora do quarto. Ao passarmos pelo corredor, me concentro nos sons próximos, onde me dão a certeza de que tem mais alguém acordado além de nós.
Escuto algumas vozes vindas da cozinha, junto a muitas risadas. Klauss e eu passamos pela sala, vendo Anne e Edan sentados no sofá, concentrados em vários papéis, estando até alheios à nossa presença. Seguimos avançando e entramos na cozinha, onde vemos o Cara do Casaco com uma xícara em mãos, e bem ao seu lado uma jovem de cabelos brancos e olhos púrpura mostra alguma coisa em um celular, e sentada em uma das cadeiras, uma outra garota de cabelos bem cacheados e um livro bem antigo aberto a sua frente tendo um pão em suas mãos.
Felícia e Mel também estão presentes. A mulher está sentada com a filha em seus braços, e vendo como está quietinha, a criança está claramente com sono e ainda não despertou por completo.
Sobre a mesa vejo um saco de papel com alguns pães dentro, um pacote do que parecem ser torradas, e também um pote de manteiga, além de uma garrafa que deve ter café.
- Ah, vocês acordaram. – O Cara do Casaco diz assim que nos vê parados na porta. Ele faz um discreto gesto, apontando para a mesa – Sirvam-se, trouxemos pães frescos.
- Obrigada, mas estou sem fome. – Digo com um meio sorriso.
- Tudo bem, Klauss? – Ele pergunta ao anjo ao meu lado, já que ele não disse nada.
- Agradeço, mas não preciso me alimentar. – Ele responde e dou uma curta risada com sua resposta, ainda mais pelos olhares curiosos que recebe. Acho que ele ainda está mais desconfiado do que eu.
O Cara do Casaco ergue seus ombros em uma aparente concordância. Com isso, aproximo-me de Felícia e Mel, deixando um carinho no rosto da menina – Bom dia meu anjinho, dormiu bem?
A menina assente com um sorriso bonito, e tenho a vontade de pegar a menina no colo e encher de carinhos, mas por ela estar no colo da mãe, me contenho.
- Ela ainda está cheia de sono. – Digo voltando minha atenção para Felícia, que tem um semblante leve, mas ao mesmo tempo, percebo como ela sorri fraco.
Essa reação dela me deixa minimamente curiosa, mas não pergunto a respeito.
- Mel demorou para dormir essa noite. – Felícia explica – Ela estava cheia de energia.
- Tenho certeza que sim. – Digo ainda deixando carinhos na criança, sentindo um estranho desconforto em meu peito.
Percebo o Cara do Casaco deixando sua xícara na pia, e voltando seu olhar para mim e Klauss, fazendo um pequeno sinal para irmos com ele. Klauss e eu trocamos um olhar.
- Já volto Alana, preciso resolver algo importante. – Ele diz para a garota de cabelos brancos, e ela assente com a cabeça. Com isso, ele volta a atenção para a outra, que termina de comer seu pão – Você quer praticar mais tarde Nicole?
- Claro, só preciso terminar esse trecho. – Ela diz voltando a atenção ao livro.
- Você já não leu essa parte? – A garota de cabelos brancos, que agora sei se chamar Alana, pergunta com uma sobrancelha erguida.
- Sim, mas não funcionou quando tentei da primeira vez. – A tal Nicole responde torcendo a boca de leve – Devo ter esquecido algo, então achei melhor reler tudo para tentar de novo...
- Mais tarde podemos tentar, você tem todos os materiais que precisa? – O Cara do Casaco questiona, aproximando-se da mesa e espiando o livro com certa curiosidade.
- Acho que tenho sim. – Ela bufa – Esses livros das minhas irmãs são complicados...
- Você vai pegar o jeito, é questão de tempo. – Ele diz com um pequeno sorriso, voltando sua atenção a nós.
Seguindo em passos leves, a cria do Abismo segue para fora da casa, seguido por mim e por Klauss. Não nego estar um pouco ansiosa, pois não faço a menor ideia do que ele pode querer falar conosco, isso é, se ele quiser conversar com a gente.
Deixamos a casa e nos afastamos, caminhando lentamente pelo gramado. Não deixo de ter minha atenção atraída pelo mar não muito longe da casa, e as ondas quebrando calmamente.
- O que quer com a gente? – Pergunto sem conseguir aguentar esse mistério todo.
Ele solta um pequeno riso e vira para nós – Ontem selei todos os seus poderes para que pudéssemos conversar. Está na hora de devolvê-los a você.
- Como é? – Pergunto surpresa, quando me dou conta que ontem, quando tentei atacá-lo, não consegui projetar uma única fagulha do meu poder. Desde então, não tentei usá-lo mais nenhuma vez – Meus poderes ainda estão selados?
Ele aumenta seu sorriso e ergue sua mão em minha direção. Recuo um passo com seu gesto tão repentino – Não mais.
- Espera, o que você... – Klauss tenta falar a ele, quando uma gigantesca massa de poder cresce a nossa frente, e algo me ocorre.
Apesar de nada visual ocorrer, uma corrente de vento surge de repente, agitando o gramado baixo ao redor em sons que compõem uma profunda melodia natural. Suas roupas sacodem bruscamente carregadas pelo vento, seu longo cabelo voa no ar, quando então uma onda invisível atinge e atravessa meu corpo de uma vez, com intensidade o bastante para fazer com que eu recue alguns passos, um pouco atordoada e sentindo meu corpo se enchendo de força a cada segundo.
Curvo meu corpo para frente e toco meu peito, arfando de leve, mas apesar de desorientada pela brusca sensação que me atingiu, consigo me manter de pé.
- Você está bem Mika? – Klauss para ao meu lado, mas demoro algum tempo até recompor fôlego o bastante para conseguir falar.
- Eu... Eu acho que sim... O que você... ? – Tento dizer qualquer coisa ao Cara do Casaco, mas tropeço em minhas próprias palavras.
- Não se preocupe. Apenas devolvi todos os seus poderes, já pode usá-los outra vez. – Ele explica, e troco um olhar com Klauss.
Não acredito que ele tenha mentido. Na verdade, percebo como um forte calor cresce em mim com uma profunda e ardente intensidade, e nunca antes reparei que tal poder era dessa forma.
Endireito minha postura, e vejo como ele aperta seus olhos a mim – Mas ainda tem algo que me deixou pensativo quanto a você Mika.
- Do que está falando? – Consigo perguntar, controlando minha respiração e conseguindo recompor minha calma. Fito o anjo ao meu lado, assentindo a ele que estou bem.
- Em nosso confronto, reparei que você manipulava um poder de chamas que emanava muita hostilidade, um poder muito diferente da luz e serenidade que senti vindo do Klauss ou dos demais anjos. – Ele cruza seus braços, e leva uma mão ao queixo – Além disso, você é a única que possui asas douradas que parecem arder em chamas selvagens, uma auréola que também emana o fogo, e por fim, em nenhum momento você mostrou que conseguia voar.
Suas palavras me deixam confusa – Não compreendo, onde quer chegar?
- Você é muito diferente dos outros anjos, e isso me deixou bastante curioso... – O Cara do Casaco leva uma mão a um dos bolsos de sua veste, retirando algo que emana uma forte luz branca e um brilho cintilante flutua no ar, e isso me é muito familiar – Por acaso essa diferença... É devido à ausência disso?
Ele abre sua mão, e para a surpresa tanto minha quanto de Klauss, vemos que ele carrega consigo a graça de um anjo.
- O que? Mas... – Consigo dizer com espanto – Como conseguiu isso?
- Espera Mika, lembre-se daquele anjo, antes da chegada da Cria do Abismo. – Klauss diz reflexivo, olhando de mim ao homem – Suas asas estavam sem brilho algum, e conseguia sentir sua graça muito fraca. Por acaso você...?
- Retirei uma parte do poder de um daqueles anjos. – Ele vai manejando a graça entre seus dedos com um nítido interesse – Estava curioso para entender a essência dos anjos, e também, Nicole tem vontade de conhecer melhor como vocês anjos funcionam... De qualquer forma, eu planejava devolver isso eventualmente.
- Não precisa se preocupar com devolver, a graça de um anjo se restabelece quando ele inicia seu repouso. – Klauss explica, e por um momento, seu olhar vem a mim, e sei que algo acabou de passar em seus pensamentos.
- Então, posso ficar com isso? – O Cara do Casaco diz em tom de brincadeira.
- De jeito nenhum. – Klauss responde quase de imediato, e estende uma das suas mãos a sombria figura – Isso pertence aos anjos do paraíso. Devolva!
Ele sorri com a fala de Klauss – Tudo bem, eu vou devolver... A ela.
Me vejo perdida com isso, e com ele estendendo a graça a mim, e meu corpo inteiro entra em choque com a possibilidade que vejo a minha frente. Seu brilho invade meu olhar e sinto à vontade de alcançá-la, e por um momento, quase ergo minha mão, mas me detenho.
- Eu não posso. – Digo e recuo um passo. Recebo o semblante intrigado da Cria do Abismo, e desvio meu olhar ao chão – Não posso aceitar. Eu...
- Não decida agora. – Ele se aproxima, e deixa a graça nas mãos de Klauss, olhando a nós dois por algumas vezes. – Isso não pertence a mim, por isso, a escolha do que fazer deve ser feita por vocês.
O anjo da lua fita a graça em suas mãos por demorados instantes, admirando seu brilho sereno e cuidando como sendo algo extremamente frágil. Não nego que, caso estivesse em minhas mãos, a trataria da mesma maneira, hipnotizada pela sua luz calma e acolhedora.
Não nego também que, observar essa graça faz minha mente retornar ao passado e se encher de lembranças, de uma época que para mim foi tão distante que por muitas vezes mal consigo me lembrar.
- Certo, nenhum de vocês comeu nada. – O homem diz de repente, batendo suas mãos e as levando aos bolsos da calça. – Vamos lá tomar café, e mais tarde, levarei vocês para casa.
Assim que o diz, ele vira sobre os pés e caminha de volta em direção a casa, deixando a mim e Klauss para trás, acompanhados somente pelo som do vento.
Eu gostaria de poder acalmar minha mente, mas nesse instante, existe tanto a se pensar que não consigo me concentrar em absolutamente nada. Eu não esperava por isso de forma alguma.
Já nem sei a quanto tempo abandonei a ideia de ter minha graça novamente, esse se tornou um sonho tão distante e que me parecia impossível, e agora, isso volta diante de mim de uma maneira completamente possível. Ter uma graça outra vez está ao meu alcance, mas eu tenho medo disso.
Tenho medo do que significa ter uma graça em meu corpo, ainda mais agora que também carrego a força do submundo em mim.
- Ele tem razão. – Klauss diz em um sussurro – Não é preciso decidir agora.
- Mas Klauss...? – Por toda a minha confusão, penso bem o que posso dizer – Isso é importante...
- Eu sei, assim como temos outro assunto importante a pensar agora. – Diz olhando a casa por um momento, e entendo que ele está se referindo a Mel. Voltando a mim, ele esboça um pequeno sorriso de canto de boca – Vamos pensar bem em tudo Mika, mas uma coisa de cada vez.
Por alguns instantes, que para mim quase pareceram longos minutos, me perco em seu sorriso que, apesar de tão discreto, é tão calmo que me tranquiliza. Com isso, confirmo com um leve balançar de cabeça – Tudo bem... Uma coisa de cada vez.
Em um suave gesto de cabeça, seu sorriso aumenta um pouco – Muito bem. Vamos comer?
- Você também vai comer hoje? – Pergunto me aproximando dele, e assim que ele me abraça de lado, retribuo o abraço da mesma forma, e começamos a voltar para a casa.
- Vou, acho que me acostumei a comer de manhã, mesmo sem precisar. – Respondo.
- Precisa lembrar isso? – Faço uma careta de leve.
- Queria ver sua reação. – Ele devolve, me olhando de soslaio.
Me rendo e solto uma risada, balançando a cabeça negativamente, e dessa maneira, seguimos de volta para a casa.
*****
Após um bom café da manhã, nos reunimos na sala e permanecemos conversando sobre algumas coisas diversas. Aproveitei esse tempo para observar melhor todos ao redor, e principalmente a tal Cria do Abismo.
Presenciei seu poder e sei as razões que fizeram com que o Paraíso e o Submundo voltassem suas atenções a ele. Mas de forma alguma imaginava que ele pudesse ser alguém brincalhão e até mesmo tão descontraído.
Fiquei surpresa ao vê-lo brincando tanto com sua irmã, e sendo tão descontraído com Edan e Anne, nem que ele desse tantas risadas. Sendo alguém que controla a escuridão e tem poderes tão assustadores, eu esperava que ele fosse alguém muito mais frio, denso, indiferente, e até mesmo cruel com quem está ao redor, e ver um ar tão leve é diferente do que eu imaginava, e chega a ser um pouco... Estranho.
De qualquer forma, estou agora com a graça em mãos, a movendo entre meus dedos lentamente, e observando Mel brincando com a mãe. Admito sentir um pouco de falta dela, apesar da menina estar tão próxima.
Busco me distrair observando a todos, Klauss está em uma conversa descontraída com Anne, Alana e Felícia, já o Cara do Casaco saiu a alguns minutos com a tal Nicole. Me dou conta que Edan está olhando para a graça em minhas mãos com uma notável curiosidade.
- O que é isso? – Ele pergunta após alguns segundos, apertando seus olhos.
- A graça de um anjo. – Digo com um meio sorriso. – Estou pensando o que fazer com isso.
Ele aparenta curiosidade com o que acabei de dizer – Vocês dois são anjos, não é? Então... Vocês também possuem uma graça?
Estou prestes a falar, quando olho para Mel, que está distraída brincando. Mesmo que distraída, reflito melhor no que dizer – Klauss tem a graça dele, quanto a mim, eu... Já tive no passado.
O rapaz ergue as sobrancelhas com minha resposta, quando volto meu olhar para Mel e então retorno a ele, Edan assente em um gesto com a cabeça – Entendo, e... A graça é como o poder dos anjos?
- Eu diria que é mais a essência dos anjos, claro que também uma graça é algo que permite manifestar o poder dos anjos. – Ele assume um semblante pensativo, e ainda bastante curioso.
- E como era no Paraíso, o que fazia lá? – Ele pergunta, encurvando o corpo para frente e apoiando o queixo sobre a mão.
- Eu não posso falar sobre o Paraíso, isso é um... – Me interrompo ao perceber o que estou prestes a falar.
Me recordo que sou uma caída e já não tenho mais ligação alguma com o Paraíso, e por esse motivo, não faz diferença alguma falar sobre ou não. No passado, quando ainda era um anjo do Paraíso, sempre ouvi que não deveria me envolver com os humanos, me revelar como sendo um anjo para eles, ou fazer qualquer coisa que interferisse em suas vidas.
Fazer qualquer coisa que revele nossa existência, ou que interfira em suas vidas, é considerado como perturbar a ordem natural das coisas.
Só que agora, já não pertenço mais ao Paraíso. Hoje sou um anjo caído, fui expulsa por eles por fazer o que acreditei ser certo por mais que não seja, por isso, já não faz diferença alguma contar algo ou não.
Volto minha atenção ao rapaz, que continua me olhando esperando qualquer coisa que tenho a dizer, e respirando fundo, continuo – O Paraíso era grande, muito grande, acho que tão grande quanto esse mundo... Lá era sempre dia, existem muitos rios e campos abertos que estendiam por todos os lados, algumas colinas tão altas que tocavam o céu, muita natureza e animais coloridos que não existem no mundo humano, e haviam os locais onde grande parte dos anjos se reuniam.
- Uau, o Paraíso deve ser incrível. – Ele diz com bastante espanto.
- E lá era calmo, tão calmo, a ponto que é possível ouvir o assovio do vento, e o correr das águas dos vários rios... – Digo com um pequeno sorriso no rosto, e tendo um estranho sentimento de saudade crescendo em mim – É muito diferente do mundo humano, que é todo agitado, cheio de vozes e barulho.
- É bem barulhento mesmo. – Ele diz com um pequeno riso.
- Como vocês aguentam?! – Digo batendo as mãos nos joelhos.
- A gente cresce no meio de todo esse barulho. – O rapaz salta as sobrancelhas e ergue seus ombros – Bom, eu cresci em um lugar muito quieto, mas me acostumei com o barulho da mesma forma.
- Gosto que eu e o Klauss moramos em uma região calma. Não sei como seria se morássemos na cidade, ou em um daqueles tais prédios... – Digo já refletindo na possibilidade em viver em um prédio do mundo humano. – Será que seria legal?
- Ai não sei Mika, não sei se moraria em um apartamento hoje. A casa que moro com a Anne é tão tranquila... – Ele diz pensativo. – Meu tio se mudou uns tempos atrás com minha prima, e agora está morando em um prédio.
- E ele gosta de viver lá? – Pergunto curiosa.
- Nem tanto, ele me fala que o lugar é bom... Só que o ruim de lá é que os vizinhos são muito barulhentos. – Edan torce a boca de lado.
- Ele escuta muito os vizinhos? – Pergunto intrigada, apertando os olhos.
O rapaz assente – E muito, ele fala que o vizinho de cima arrasta alguma coisa todos os dias, e um vizinho do prédio do lado vive cantando alto... Anne e eu já ouvimos uma vez, e esse vizinho canta muito mal... Em alguns prédios, qualquer barulho que fizer, os vizinhos escutam.
- Nossa, que chato... – Faço uma careta – Lá no Paraíso tinha um lugar parecido com os prédios daqui, era onde todos os anjos repousavam... Mas nunca tinha barulhos.
- O Paraíso é uma maravilha em... – O rapaz se encosta com as sobrancelhas no alto.
- Sim, apesar que não retornaria para lá. – Digo olhando para Klauss, e então para Mel, que me observa e me sorri, e sorrio de volta – Minha vida agora é com eles.
- Ei Mika, você contou que você faz auroras? – Mel pergunta de repente, chamando nossa atenção.
- Auroras? – Edan pergunta, me observando com os olhos apertados.
- É, eu era um anjo Portador do Belo, e eu criava auroras no passado. – Explico com um pequeno sorriso, voltando a olhar a Mel.
- A Mika fazia auroras muito bonitas, ela fez uma no dia que nos conhecemos, e me levou pertinho para ver as luzes, eram tão bonitas que sempre lembro delas sempre. – Mel diz com brilho no olhar – Foi um dos melhores dias da minha vida, e um dos mais especiais, foi o dia que conheci a Mika e voamos bem alto pelo céu, e depois sempre olhei para o alto esperando ver a Mika no céu criando outras auroras.
- Isso faz tanto tempo meu anjinho. – Digo com um sorriso, não querendo frustrar minha pequena por não poder mais criar auroras como fazia no passado.
Edan aperta seus olhos, parecendo refletir profundamente – Não... Acho que estou pensando demais, não faz sentido...
- O que quer dizer? – Digo intrigada.
- É que uma vez, quando estava em viagem com a Anne, alguns amigos e os pais dela, aconteceu uma coisa que me deixa pensativo até hoje... – Ele explica, correndo os olhos pelo chão, e então me observa – Logo na primeira noite, eu estava tirando um tempo sozinho fora da casa para pensar e fiquei olhando para o céu, e muito de repente surgiu uma aurora...
Fico boquiaberta com o que vou escutando desse rapaz, e imediatamente minhas lembranças me levam de volta para aquele dia. O rapaz solitário em frente a um chalé, observando a lua e as estrelas em meio a uma noite fria.
- ...E o que mais me deixa pensativo é que, na região em que estávamos, era impossível de surgir uma aurora... E eu ainda tive a impressão de ter visto alguém voando no céu, achei ser o Cara do Casaco mas não foi ele... – Ele termina de falar – Mas não, acho que não faz sentido.
- Isso foi há pouco mais de dois anos atrás, não é...? – Digo, e ele me olha com algum espanto, quando confirma em um leve gesto – Agora eu entendo por que você é tão familiar... Você é o garoto daquela noite.
O rapaz cerra seu olhar e pende a cabeça ao lado, quando fica ainda mais boquiaberto que eu quando finalmente junta os pontos – Espera, então... Então era você quem fez a aurora?
Meu sorriso aumenta ao ver sua reação surpresa, e ele leva ambas as mãos em frente a boca, completamente tomado pela surpresa.
- Anne...? – Edan a chama num sussurro, sem tirar o espanto do seu rosto.
A ruiva volta sua atenção ao rapaz, tanto que Klauss e Felícia acabam olhando em nossa direção também. – O que foi? Que cara é essa Edan?
- Você lembra daquela noite? – Ele consegue dizer, e ela ergue uma sobrancelha com a pergunta tão inusitada – Era a Mika, ela quem fez aquela aurora.
Anne leva um segundo para o espanto surgir em sua expressão, e a moça também voltar seu olhar para mim – Era você Mika?
Dou risadas de suas reações. Klauss olha para mim com um ar curioso, e respondo ele erguendo os ombros – Acho que a gente já se conhecia, só não fomos apresentados.
Volto minha atenção ao casal, que troca um olhar e um largo sorriso animado surge em ambos – Eu nunca imaginei isso. – Edan diz rindo animado.
- E eu? – Anne diz em mesma animação – Eu sempre quis entender aquela noite, e agora conhecemos quem criou aquela aurora linda.
- Fico feliz que tenham gostado da aurora. – Volto meu olhar ao rapaz – Eu estava retornando ao Paraíso naquela hora, e tinha tomado um caminho diferente, quando te vi sentado sozinho. Você parecia tão triste naquela noite, tão sozinho, então... Quis fazer aquela aurora como presente para que se sentisse melhor.
- Me senti muito melhor ao ver a aurora surgindo no céu, foi uma das coisas mais bonitas que já vi na vida... – Diz com um sorriso genuíno – Aquela noite me marcou muito, foi o dia que Anne e eu voltamos a nos aproximar... Obrigado pelo presente Mika.
- Não precisa agradecer, é o bastante saber que aquela aurora marcou tanto. – Solto um pequeno riso – E é bom conhecer vocês depois desses dois anos.
- Podemos dizer o mesmo. – Anne responde – Mas que ainda estou sem acreditar, eu estou.
- Acredite Anne. – Edan responde aos risos.
Volto meu olhar a Klauss, que me observa com um sorriso e sobrancelhas erguidas. – O que foi Klauss? – Pergunto rindo.
- Estou apenas pensando como coisas curiosas como essa acontecem. – Ele responde voltando seu olhar a ambos – Quem diria que você conheceria as pessoas para quem criou uma aurora a tanto tempo atrás.
- Verdade. – Respondo me sentindo leve – Mas sabe, eu gostei de conhecer eles.
O anjo não desmancha seu sorriso, e dessa forma, passo a me entreter assistindo a animação desse jovem casal.
*****
De braços cruzados e encostada na porta da cozinha, assisto Mel correndo do lado de fora da casa, brincando com sua mãe em risadas agradáveis de se ouvir.
Logo atrás de mim, Klauss, Anne e Edan preparam algo para o almoço. Panelas e potes foram retirados dos armários, ingredientes se espalham pela mesa, e em um trabalho de equipe interessante de se assistir, eles seguem preparando algo pra todos.
- Vocês se deram muito bem. – Alana diz, parando ao meu lado, chamando minha atenção.
- Ah sim, eu não esperava que fossemos nos entender tão bem. – Digo rindo, olhando para o grupo sobre o ombro.
- Admito que fiquei desconfortável quando meu irmão disse que trouxe anjos para cá, ainda mais depois dos anjos que conhecemos. – A garota de cabelos brancos me olha de canto de olho, e então volta seu olhar para Klauss – Mas até que vocês dois não são ruins, nem me parecem ser do tipo problemáticos.
- Obrigada por isso. – Dou uma meia risada. – Na verdade, recentemente tenho me surpreendido cada vez mais com os anjos. Não esperava por alguns comportamentos deles, ainda mais de alguns que no passado foram tão próximos de mim.
- As vezes temos péssimas surpresas de quem menos esperamos. – Concordo com suas palavras, lembrando principalmente de como Ion'Alia e os demais anjos me trataram como uma estranha descartável quando me viram. – Deve ter sido bem estranho acordar aqui no Abismo.
- E como, ainda mais com seu irmão aparecendo logo quando acordei. – Respondo com um pequeno riso. – Horas antes estávamos nos enfrentando em um lugar todo congelado, e quando dei por mim, estava aqui. Também fiquei muito desconfortável quando vi seu irmão.
- E agora, ainda se sente desconfortável? – Alana escora na parede.
- Agora nem tanto, mas antes, pela maneira que sempre falavam dele, eu achava seu irmão muito assustador. – Ergo meus ombros, e percebo o Cara do Casaco vindo, não muito longe da casa. – Vocês também não parecem ser pessoas ruins... Inclusive, seu irmão está vindo.
- Ele deve ter ido deixar Nicole em casa. – Alana diz pensativa.
Olho para trás por um momento, assistindo os três conversando – Aqueles dois são tão novos, estão juntos a quanto tempo?
- Acho que pouco mais de um ano que oficializaram o namoro deles. – Alana diz pensativa, fitando o casal sobre o ombro – Eles cresceram juntos, mas só começaram a namorar depois de se desentenderem muito, e passar por muita coisa. E quanto a você e o Klauss?
- Começamos a namorar a poucos meses, só que morávamos juntos desde antes. – Explico, e a garota ergue as sobrancelhas.
- Vocês já moravam juntos? – Pergunta em tom intrigado. – Como foi isso?
- Eu fazia alguns trabalhos para o submundo, e o Klauss protegia a cidade, mas a gente já eramos muito próximos. Aí certo dia sentiram a presença do seu irmão na cidade que moramos, e por isso anjos e demônios foram enviados. – Agora que me lembro disso, dou risada das circunstâncias que fez com que começássemos a morar juntos – Aí por isso, Klauss me convidou para morar com ele, porque assim um poderia cuidar do outro.
- Nossa... – Alana pensa um pouco – Vocês dois são muito fofos. E desde então, vocês continuaram morando juntos?
- Sim, foi isso mesmo. Só começamos a namorar depois, porque a Mel perguntou se o Klauss era meu namorado. – Digo aos risos, e logo Alana também ri – Aí eu perguntei pra ele se sim ou não, e ele disse que sim. De lá pra cá, nós namoramos.
- Que início divertido, e muito inesperado. – Alana diz rindo.
- Cheguei irmãzinha. – O Cara do Casaco diz assim que se aproxima, mexendo no cabelo da irmã, tendo um ar leve em seu rosto cansado.
- E a Nicole? – Alana pergunta.
- Ela disse que vai descansar um pouco dos estudos, e vai fazer alguma outra coisa na casa dela. – Responde fazendo uma careta pensativa – Mais tarde eu volto lá.
- Essa Nicole mora longe daqui? – Pergunto curiosa.
- Nada, uns cinco minutos no máximo. – Ele responde – É aqui perto.
- Tá, mas me conta uma coisa. – Alana diz, e voltando o olhar para Mel – Como você conheceu elas?
Foco em Mel por alguns momentos, lembrando nitidamente daquele dia – A Mel foi a primeira humana que conheci. Em meu último trabalho pelo Paraíso antes de me tornar uma caída, decidi visitar o mundo humano, e foi nesse dia que a conheci em uma praça.
Os dois me escutam com atenção. Alana mantém seu olhar na menina e na mãe, que continuam brincando, já o Cara do Casaco está parado próximo, de braços cruzados mantendo seu olhar em mim.
- Eu estava observando algumas flores, quando a Mel apareceu, dizendo que eu não podia colher nenhuma, e acho que já naquele momento me encantei por aquela menina. – Continuo contando, voltando a observar a menina – Ela estava sozinha, esperando a mãe voltar de algum lugar, foi quando decidi fazer companhia para ela. Ainda tinha meu trabalho a cumprir, mas não queria deixá-la sozinha, por isso, a levei junto para terminar meu trabalho, foi quando me revelei com um anjo para um humano pela primeira vez.
O Cara do Casaco torce a boca de leve. – E ela passou a morar com vocês no dia que você precisou retirar a alma da mãe, não é?
- Felícia me pediu para cuidar dela. A partir daí adotamos a Mel, e ela vem morando conosco. – Solto um suspiro. – Apesar que me culpei todos os dias pelo que fiz.
- Não deve se culpar Mika. – Ele responde – Você esteve cuidando dela durante esse tempo.
- Mesmo que adotada, é notável que você ama a Mel como sendo sua filha. Acho que é isso que importa. – Alana comenta me olhando, e isso me deixa intrigada.
- O que quer dizer? – Pergunto confusa, e os dois me olham.
- Que você ama a Mel como sua filha? – O Cara do Casaco devolve a pergunta. – Não é assim que você vê ela?
- Ah, sim eu... Eu vejo ela como minha filha sim, mas... – Digo um pouco sem jeito por não entender bem o que ele quis dizer. O homem ergue uma sobrancelha, esperando eu continuar – Não sei o que significa o que você disse...
- Amar ela? – Ele pergunta e confirmo. Os dois trocam um olhar, e o Cara do Casaco assume um ar pensativo – Como vou te explicar o que é amor...?
- Isso não é complicado irmãozão. – Alana diz, e volta sua atenção a mim – Amor é um sentimento diferente e único, que temos com quem é especial para nós. Ele é leve, e faz bem para quem o sente.
Escuto atentamente o que dizem – E... Como é esse sentimento?
- Amor não é algo que pode ser descrito ou compreendido, apenas sentido em toda sua profundidade, bem aqui. – O Cara do Casaco ergue seu dedo e aponta ao peito, quando então vira seu olhar a Edan e Anne, e acompanho seu olhar ao casal – É algo que, quando junto de quem é importante para você, é possível senti-lo preencher em uma sensação única que não consegue expor em palavras, mas que ainda assim, você sabe que está ali presente, e é algo profundo, que às vezes é capaz de curar.
Assisto o casal por algum momento, tentando entender melhor o que é esse sentimento, mas ainda assim, parecendo algo tão confuso para mim... Mas apesar disso, não me parece algo estranho.
- E... Como posso saber que "amor" existe? Ou demonstrar esse sentimento? – Pergunto.
- Veja aqueles dois... – Ele diz, e um pequeno sorriso surge em seu rosto – Eles não demonstram em gestos claros ou com palavras cheias de declarações, eles demonstram em seus olhares, no cuidado que possuem um com o outro, no carinho, em pequenos gestos tão discretos, mas tão visíveis, podemos ver que existe algo de especial entre eles... Não existe uma maneira única de demonstrar o que sente.
- Acredito que com Klauss, você demonstra o que sente através de gestos, por momentos entre vocês, ou então pelos seus olhares que parecem pertencer só a vocês. – Alana comenta, atraindo minha atenção para si – Já com a Mel, você o demonstra em seu cuidado, preocupação e carinho. Você já tinha ela como sua filha, antes de admitir isso para si.
- É... – Digo em um sussurro – Eles são partes da minha vida. Partes muito importantes que sinto tantas coisas, que eu não conseguia entender, nem sei se consigo encontrar palavras para explicar o que sinto, mas sempre me fazem sentir algo tão único, ao mesmo tempo que é algo que me faz tão bem.
- Acho que dessa forma que você sabe que o amor existe. – O Cara do Casaco diz em um riso leve, passando seus olhos ao redor. – Existe o amor de um casal, o amor de um pai e uma mãe com seus filhos, também o amor de irmãos, e até mesmo amor entre amigos. Apesar de serem um pouco diferentes, ainda assim é amor, e uma certeza que tenho é que fazemos tudo que podemos por quem amamos.
- Você está tão amoroso hoje irmãozão. – Alana diz em brincadeira.
- E você vai ficar sem doces hoje irmãzinha. – O Cara do Casaco responde com uma careta.
- Você é mau! – Ela acusa em um riso divertido.
- Eu sei, e você pede por isso. – Ele rebate com um sorriso de canto e sobrancelhas erguidas.
Observo os irmãos ao meu lado, quando então retorno minha atenção para Edan e Anne por alguns instantes, refletindo o que ouvi.
Por fim observo Klauss. O anjo percebe meu olhar em si, dando um pequeno sorriso a mim, e logo ele retorna a seus afazeres. Devagar ergo minha mão ao peito, e volto minha atenção a Mel, que continua sorrindo em seu jeito radiante.
O mesmo sentimento que tive antes, está presente agora. É algo profundo, que me faz bem e me acalma, que não sei definir de forma alguma, mas é presente quando se trata deles.
Sem que eu perceba, pensando em todo esse sentimento, um sorriso surgiu em meu rosto.
*****
A alguns minutos começamos a nos preparar para ir embora para casa. Klauss ajeita as roupas ao corpo, mantendo suas asas manifestadas em seu brilho sereno, enquanto que eu passo as mãos pelo cabelo algumas vezes, sem saber se de fato estão arrumados.
Não sei ao certo quando iremos para casa, mas será ainda hoje, e como não trouxemos nada para cá, nosso retorno será rápido... Se bem que, como voltaremos para casa através de um portal do Cara do Casaco, com certeza não demoraremos nada para estar em casa.
- Podemos ir? – Digo ao finalmente me dar por satisfeita, imaginando meu cabelo arrumado.
Klauss assente com a cabeça – Sempre ouvi coisas ruins do Abismo, principalmente pelo nome recebido, mas até que esse lugar não é ruim.
- Concordo com você, não é tão assustador quanto pareceu ser. – Digo um pouco pensativa – Quem diria que a Cria do Abismo tão problemática, é na verdade um humano.
- Não esperava que fosse um humano, sequer imaginava. – Ele me responde reflexivo – Mais ouvi sobre os seres do Abismo do que interagi com eles, e muito do que conheci sobre, eram os relatos do quão brutais tais seres são, especialmente as Crias... Mas agora que pude ver uma Cria de perto, não sei o quanto as histórias eram reais.
- Acha que a Cria do Abismo ser um humano tem alguma diferença? – Pergunto um pouco curiosa, e Klauss aparenta mergulhar ainda mais em seus pensamentos.
- Talvez, aquele homem não é original deste lugar. Contudo, a irmã dele nasceu no Abismo, e também não é alguém violenta... Apesar do grande poder, ele não parece alguém ruim, nenhum deles parece ser. Acredito que os julguei mal. – O anjo permanece reflexivo, erguendo o olhar a mim – De qualquer forma, já sinto falta da nossa casa, e da vista para a cidade.
- Eu também, estou com saudade da rede. – Digo brincalhona.
- E eu, dos livros. – Klauss me sorri de leve – Vamos?
Assinto com a cabeça e sem muita espera, deixamos o quarto. Passamos pelo corredor e atravessamos a sala, indo diretamente à cozinha, onde vemos somente o Cara do Casaco está frente a porta, de braços cruzados, conversando com Edan e Anne que estão do lado de fora.
Nos aproximamos deles, e percebo Felícia parada próxima do grupo, com Mel nos braços.
Anne percebe nossa aproximação e volta sua atenção a nós – Vocês já estão indo?
- Sim, estamos sentindo falta de casa. – Klauss responde.
- Voltem mais vezes. – Edan diz com um leve sorriso no rosto.
- Pode deixar, voltaremos assim que descobrirmos como chegar aqui. – Digo brincando.
- Posso trazê-los para cá quando quiserem fazer uma visita. – O Cara do Casaco diz e descruza os braços. – Irei abrir a passagem para vocês retornarem.
- Foi bom conhecer todos vocês, apesar do jeito que chegamos aqui. – Dou uma olhada ao Cara do Casaco, que ergue suas sobrancelhas e solta um pequeno riso. Volto minha atenção a Felícia, que permanece com sua filha, que se recusa a soltá-la. Dou um pequeno carinho na criança, passando meus dedos pelo seu rosto – Foi bom poder vê-la mais uma vez Felícia.
- Digo o mesmo Mika. E também, te agradeço muito por terem me permitido ver a Mel por mais uma vez. – Felícia diz com um sorriso sincero.
A criança sorri com meus carinhos, e volta o olhar para Felícia – Mamãe, quando nós vamos para casa?
Me dou conta que, com a pergunta de Mel, a mulher baixa seu olhar, e é notável como seu sorriso desmancha aos poucos, dando lugar a uma expressão entristecida. Ela fecha seus olhos devagar e baixa a cabeça, soltando um profundo suspiro.
- Felícia? – A chamo com um fio de voz. – Algum problema?
Ela hesita por um momento, e tornando a olhar para sua filha, ela faz um demorado carinho no cabelo de Mel – Talvez... Essa seja a última vez que poderei estar com minha filha.
- Como? – Pergunto sem entender.
- Felícia já não está viva. – Klauss começa, atraindo minha atenção. Apesar de não mudar a expressão, seu olhar parece endurecer – Ela não pode retornar para aquele mundo.
- Mel, me escute filha... – Felícia coloca a criança no chão, apoiando as mãos em seus ombros. Ela aperta a boca e olha para a filha sem parar – A gente não pode voltar para casa... Eu não posso voltar para casa.
A menina a olha sem entender, e sequer esboça uma reação. – Mamãe... Por que não?
- A mamãe fez muita coisa, muita coisa ruim e... E não posso mais voltar pra casa com você. – A mulher diz cada palavra com pesar, entregando carinhos no rosto da filha – Eu quero ir para casa com você, te ver crescendo e estar com você em cada dia, só eu sei o quanto quero isso... Mas eu não posso filha... Desculpa a mamãe, mas não posso ir com você...
A criança fica sem reação diante dessas palavras, tão grande seu choque que ela mal consegue falar qualquer coisa. Vê-la desse jeito me incomoda, mas não consigo sair do lugar.
Sentimentos mistos tomam conta de mim, um aperto no peito junto a uma forte expectativa dividem espaço e o nervosismo cresce. Quero fazer algo, mas sinto que não devo interferir.
- Mamãe, você... Você vai embora...? – A criança pergunta com a voz falha.
- Eu não quero, mas... Eu preciso ir... – Felícia suspira demoradamente, correndo as costas da mão pelo rosto. Apesar de sua tristeza, ainda assim sorri com leveza para sua filha em uma clara tentativa de trazer conforto a ela, e então olha para mim e Klauss – A mamãe quer te perguntar uma coisa... Você gostou de morar com eles?
A criança volta seus olhos para mim e Klauss. Ela abre a boca, mas palavras não são ditas, e tudo que a pequena faz é olhar sua mãe, e responder com um pequeno gesto com a cabeça.
- Me diz Mel, como você vê os dois? – Felícia pergunta, dando carinhos na filha.
- Eu gosto deles... – A pequena começa a falar, tendo sua voz trêmula. – Gosto muito dos dois, gostei de cada dia com eles... O Klauss lembra o papai, ele cuida de mim e da Mika, gosta de ler e estava me ensinando a ler também, ele sempre gosta dos meus desenhos, e me deixa ficar com ele na cozinha para virar uma degustadora... A Mika lembra você mamãe, ela sempre me faz companhia, brinca comigo, a gente ri juntas, ela sempre fica comigo até dormir, ela sempre está cuidando de mim igual você faz.
- Por isso, vou te pedir uma coisa... – Felícia diz baixinho, enquanto a criança tem seus olhos enchendo a cada segundo. – Quero que você continue com a Mika e o Klauss, que quando voltar, veja eles como sua nova família... Você pode fazer isso pela mamãe?
A criança olha para nós dois, sem responder nada, mas notavelmente abalada, e também indecisa. Ela permanece nos olhando, mas sem conseguir sair do lugar.
- A Mika ser a mamãe... E o Klauss o papai...? – Ela diz baixinho.
- Isso mesmo, você pode fazer isso pela mamãe? – Felícia tenta transparecer o máximo de suavidade para a filha.
Para minha surpresa Klauss se aproxima das duas, e se abaixa na frente de Mel. – Sabe Mel, a Mika e eu já te vemos como nossa filha, e ficaremos felizes se quiser vir conosco e nos ver como sua família.
- Mas... – Mel diz com um fio de voz – A mamãe...?
- Quando voltar, nós não nos veremos mais... – A mulher toca o indicador no peito da filha – Mas eu sempre estarei com você, bem aqui.
A criança assente. Apesar de relutante, ela concorda em silêncio, recebendo um sorriso acolhedor da mãe, que logo evolui a um abraço, e entendo ser essa a despedida de mãe e filha.
Klauss fica de pé, e troca um olhar comigo e nesse momento, eu me aproximo deles, assistindo os momentos finais que as duas tem juntas. Felícia então solta sua filha, deixando um pequeno beijo na cabeça da criança – Eu te amo minha filha... Se cuida, e cresça feliz.
A mulher por fim fica de pé, olhando para mim e Klauss por alguns instantes. Dou um pequeno sorriso, enquanto Mel vem para perto de nós e abraça minha perna, olhando para a mãe.
- Me desculpem tomar essa decisão de uma forma tão brusca. – Felícia diz em um suspiro.
- Não precisa se desculpar. – Respondo – Você me pediu para cuidar da Mel, e farei isso.
- Faremos isso. – Klauss diz, deixando um pequeno carinho no cabelo da criança – Gostamos da Mel, ela já é nossa filha também. Por isso, peço que não se preocupe.
- Não me preocupo, minha filha está com anjos... Sei que está em boas mãos. – Ela responde, puxando o ar devagar – Acho que querem ir para casa.
- Realmente, estamos com saudade de casa. – Digo com um pequeno riso. Olho para Klauss e Mel por uma vez – Podemos ir?
Ganho um aceno de ambos, e então volto meu olhar ao Cara do Casaco. Ele esteve assistindo a tudo pacientemente sem intervir. Ele dá um pequeno aceno com a cabeça, e sem sequer se mover, uma nova fenda abre próxima dele.
A abertura repentina da fenda cria uma onda de vento, que faz com que as roupas e cabelo da figura sombria se agitem, mas o próprio permanece onde está, com as mãos nos bolsos.
Klauss e eu olhamos para Anne e Edan, que nos dão um aceno de despedida. – Até logo, espero ver vocês outras vezes.
- Também espero, voltem quando quiserem. – Anne diz com animação.
Klauss dá um pequeno aceno, e então levanta Mel no colo – Vamos para casa Mel?
A criança confirma, e então volta seu olhar para o pequeno grupo – Tchau mamãe... Tchau tio Edan, tchau tia Anne... Tchau tio do casaco.
- Tio do casaco? – A figura pergunta com uma sobrancelha erguida, ao tempo que Anne e Edan não conseguem conter o riso.
Klauss e Mel seguem primeiro através do portal. O anjo deixou apenas um aceno discreto para o Cara do Casaco antes de atravessar a passagem. Sigo logo atrás deles, mas interrompo meu passo antes de entrar no portal.
- Nós o veremos outra vez? – Pergunto, fitando o Cara do Casaco.
- Acredito que sim, espero que não em circunstâncias que nos torne inimigos. – Ele responde.
- Também espero por isso. – Respondo – Então... Até logo?
- Até logo Mika. Cuidem-se bem. – Ele diz com um sorriso.
Com isso, respiro fundo e caminho em direção ao portal, fechando meus olhos ao atravessá-lo. Uma onda passa pelo meu corpo, e sinto-me transportada. O ambiente muda de repente, o ar frio me envolve, e uma familiaridade me parece presente.
Abro meus olhos e, com um sorriso de alívio em meu rosto, respiro aliviada por finalmente voltarmos para casa.
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