Capítulo 39

5691 Palavras

- O que você está fazendo com isso?! Me devolva! – Digo com raiva, avançando em sua direção, mas sinto que alguém me segura pelo braço, e percebo ser Nick.

- Enquanto lutávamos na última noite, notei que levava isso com você. – Diz enquanto gira o frasco entre seus dedos, atento ao seu conteúdo – Estou curioso para saber o porquê de um anjo carregar uma alma humana.

Paro de imediato, sem conseguir encontrar uma resposta para ele. Essa não é somente mais uma alma qualquer, que me recuso a levar ao submundo, e trata-se da mãe da menina que adotei.

- Porque faz parte do meu trabalho. – Respondo o fitando com olhos apertados, e estendo uma mão em direção a ele – É uma alma que ainda não entreguei, e agradeceria muito se você devolvesse.

- É mesmo Mika? – Ele diz, analisando o frasco, deixando um sorriso surgir em seu rosto. – Se fosse mesmo isso, você não teria pensado tanto para me responder.

Aperto os punhos, mas permaneço no lugar, tentando pensar em algo que me faça ser convincente o bastante e o obrigue a me devolver, mas o choque que tive ao ver ele segurando a alma de Felícia me impede de conseguir pensar em qualquer coisa racional.

- Você coleta almas para o submundo? – Ouço Layla perguntar.

- É mais complicado do que isso. Ou eu coleto as almas que me pedem, ou então volto a ficar aprisionada no submundo. – Respondo sem olhá-la. Não quero ter que lidar com seu olhar incrédulo, e talvez até de julgamento. – É o acordo que fiz para poder ser livre...

O Cara do Casaco de repente vem se aproximando de mim, e para minha total surpresa, ele apenas deixa o frasco de volta em minha mão – O que pretende fazer com essa alma? Vai levá-la ao submundo?

Fito o frasco por alguns segundos, o girando em meus dedos e novamente pensando sobre o que fazer, mas sem conseguir uma resposta. Estou nessa indecisão a mais de um mês – Eu não sei... Não quero levar essa alma para o submundo, sei que ela não merece esse destino por sua essência não ser má, mas ela cometeu muitos crimes e por isso, também não pode ir ao Paraíso.

- O que tem de especial nessa alma? – Nick pergunta fitando o frasco.

Aperto a boca, e respirando fundo, olho para Nick e Layla – Essa alma pertence à mãe da Mel.

Os dois ficam sem reação. Tanto Layla quanto Nick estão boquiabertos com o que acabei de falar, e apesar de Nick tentar falar algo, nenhuma palavra é dita.

- Um dos meus trabalhos mais recentes foi buscar a alma de um criminoso que havia adoecido. Contudo, quando cheguei lá, descobri se tratar da mãe da criança que adotei. – Seguro o frasco com firmeza, lembrando-me daquele dia e como me senti horrível naquele dia. – Através das Revelações, Klauss viu seu passado para descobrir com quem poderíamos deixar a Mel, e com isso também viu que na realidade, ela não era uma pessoa ruim e nem merecia o submundo. Desde então, guardamos sua alma nesse frasco, e estamos cuidando da Mel.

- Eu não imaginava isso... – Nick responde olhando para a casa – A Mel sabe disso?

- Não, e nem deve saber o que aconteceu. – Respondo também fitando a casa – Se ela souber o que fiz com a mãe dela... Ela... Ela vai me odiar.

- Você e o Klauss já conversaram sobre o que fazer? – Layla pergunta ao tocar meu ombro e observa o frasco – Me ensinaram na legião que não é ideal manter uma alma humana livre por muito tempo, pois ela pode ser manchada e corrompida.

- Klauss... – O Cara do Casaco sussurra pensativo – Vou trazê-lo para cá.

- O que? – Pergunto sem entender seu comentário tão repentino, e incerta de que eu ouvi certo.

- Acredito que Klauss esteja preocupado com você. Por isso, vou trazer ele aqui. – O Cara do Casaco ergue sua mão num movimento suave, e uma fenda abre no ar, bem diante dele, e fico sem fala com o que vejo diante de mim. A figura então, acena para nós e entra na fenda – Eu já volto.

Mal respondo ou me aproximo, quando a fenda acaba fechando de imediato, e piscando algumas vezes, olho para Nick e Layla. Já Anne, que assistia a tudo um pouco mais afastada, vem se aproximando de nós – Sua filha é mesmo encantadora Mika, e tem um fôlego incrível.

Olho para o frasco entre meus dedos, novamente sendo vista como a mãe da Mel. Afirmar isso, ainda mais agora que tenho sua alma entre meus dedos, me parece ser ainda mais errado do que já parecia antes, sinto como se estivesse apunhalando Felícia pelas costas caso afirme que Mel é minha filha.

Não consigo me expressar em palavras, e tudo que faço é oferecer um sorriso para Anne.

- A propósito, onde a Mel está? – Layla pergunta, olhando para a casa.

- Ela ficou desenhando com o Edan, depois que ele trouxe algumas folhas para ela, os dois começaram a desenhar e conversar bastante... E fui deixada de lado. – Anne diz risonha, e então olha bem para Nick e Layla, mas não diz nada, até olhar ao redor – E o Cara do Casaco, ele já sumiu de novo?

- Ele falou que iria buscar o Klauss. – Explico, quando me dou conta que Anne não sabe quem é Klauss – Meu namorado.

- O anjo que estava com você ontem à noite, não é? – Anne diz e assinto – O Cara do Casaco falou sobre ele quando te trouxe pra cá, disse que ele foi levado por outros anjos.

- E desde aquela hora, não soube mais nada sobre ele. – Um suspiro me escapa e encaro o chão demoradamente – Estou preocupada com ele... Espero que ele esteja bem...

- Ei Mika, é o Klauss. – Nick diz, parando ao meu lado – Aquele anjo não tem igual e coloca medo em qualquer um, com certeza ele está bem.

- Coloca medo em você que é um mero demônio, porque eu não tive medo algum quando vi o Ka'Su pela primeira vez. – Layla provoca Nick, e notei que não houve uma hostilidade em sua fala.

- Ah não? Não é o que vi ontem. – Nick devolve em um tom provocativo, e Layla vira o rosto ao lado – Pensa que não percebi como você se encolheu quando ele nos deu uma bronca?

- Não fale de mim. Você se encolheu também! – Layla se defende, inesperadamente desconcertada.

- Claro, ele me assusta! – Nick rebate, e então me olha outra vez – Mas tenho certeza que ele está bem.

- Dessa vez eu tenho que concordar com ele. – Layla diz, olhando Nick de canto de olho, o analisando de cima a baixo por um curto momento – É do Ka'Su que estamos falando, e ele é praticamente uma lenda no Paraíso. Também acredito que ele esteja bem.

- Obrigada, aos dois. – Consigo dizer com um pequeno sorriso.

Levam apenas alguns segundos para que um novo portal seja aberto próximo de nós, onde vejo o Cara do Casaco surgindo de seu interior como se acabasse de pular para trás, e noto que ele puxou alguém de vestes brancas consigo, que após tropeçar em seus próprios passos, olha ao redor bem confuso.

- Que lugar é esse? – Ouço falar, e nesse momento o Cara do Casaco o solta.

- Desculpe, ele não quis vir, então tive que puxá-lo para cá. – O Cara do Casaco diz, levando as mãos aos bolsos.

Quando dou por mim, já estou correndo em sua direção, o abraçando com toda a força e saudade que existe em mim – Klauss!

- Mika...? – O anjo sussurra confuso, e assinto sem afastar meu rosto de seu peito. Devagar me afasto dele e nossos olhares se encontram, notando sua expressão de choque ao me ver, e após um pequeno carinho em meu rosto, ele me envolve em um intenso abraço a qual não nego de forma alguma – Mika, que bom que você está bem... Fiquei tão preocupado por não te achar em lugar algum.

- Estou bem Klauss... E aliviada por saber que você também está. – O abraço com ainda mais força, sem qualquer vontade de soltá-lo. Foi por pouco tempo, mas sinto como se estivesse longe dele por anos.

Devagar nós afastamos e tornamos a nos olhar, e não reprimo um sorriso de felicidade e alívio. Um sorriso que o próprio tem consigo, enquanto seus dedos correm pelo meu rosto – Eu também, estou aliviado por ver que você está bem. Mas que lugar é esse?

- Talvez você não acredite, mas estamos dentro do Abismo. – Explico, assistindo a surpresa surgindo em seu olhar por mais uma vez. Acho que nunca vi Klauss sendo tão expressivo.

- Como é? Então, aqui é o Abismo? – Ele olha ao redor por algumas vezes – É menos sombrio e claustrofóbico do que eu imaginava.

- Eu imaginei a mesma coisa. – Nick responde de seu jeito brincalhão, ganhando a atenção do anjo da lua.

Klauss aperta seus olhos para Nick e então olha para Layla ao seu lado, levando apenas alguns segundos para absorver a presença deles – Vocês também estão aqui.

- Sim, fomos puxados para cá. – Layla salta os ombros. – Foi inesperado.

- Isso explica porque não havia ninguém quando voltei para casa. – Klauss explica, e sua feição muda, voltando a mim de imediato – Onde está a Mel?

- Ela está bem, está desenhando lá dentro. – Respondo olhando para a casa, e Klauss parece respirar aliviado quando ouve isso, e meu olhar retorna ao Cara do Casaco – Ele trouxe todos para cá.

Klauss encara o Cara do Casaco, que está conversando alguma coisa com Anne, onde ela assente para algo e retorna para a casa em uma leve corrida, e com isso, e torna a nós observar.

Apesar de tudo, todos ainda estamos um pouco tensos. Eu acreditava que ele já tinha dito tudo que tinha a falar, mas não sabia o que aconteceria conosco depois, e agora que Klauss também está aqui, as coisas ainda são muito incertas para todos nós.

Estamos dentro do Abismo, um lugar que com certeza ele está muito mais adaptado do que nós, então não teria condição alguma de enfrentá-lo aqui, mesmo tendo Nick e Layla presentes. Estou sem meus poderes, e mesmo se por algum milagre conseguirmos vencer, como voltaríamos para casa?

E também, se todos nós conseguíssemos escapar dele, como nos encontraríamos depois? Não conhecemos nada desse lugar ou do que existe aqui, estaríamos a mercê do completo desconhecido, sem um jeito de voltar ao mundo humano, e estaremos levando Mel para o meio disso.

- O que houve naquela noite? – Klauss pergunta – Porque trouxe Mika e todos para cá?

- Mika eu trouxe para não deixar abandonada no meio do nada, ela acabaria congelando até a morte se a deixasse lá desacordada. Já a filha de vocês e eles dois, foi um voto de confiança para que pudéssemos conversar sem uma nova sessão de troca de tapas. – Ele diz erguendo seus ombros.

Klauss e eu trocamos um olhar, e o anjo volta a fitar a Cria do Abismo – E o que quer conversar conosco?

- Ele queria saber o motivo de haver anjos e demônios atrás dele, e também... – seguro o frasco com mais força – Não acho que seja só isso.

- De fato, não. Mas por agora, tenho outra coisa em mente. – Caminhando em lento ritmo no gramado baixo, a figura ergue seu olhar ao alto.

Observo ele voltando sua atenção a mim, e vem se aproximando. Seus olhos miram no frasco em minha mão, e instintivamente recuo um pouco. Em minha mente passa a possibilidade dele querer tomar a alma da Felícia, e isso me deixa em alerta.

Ele para bem a minha frente, observando tanto a mim quanto Klauss, sem desmanchar seu sorriso – Ela se despediu?

- O que? – Pergunto sem entender.

- A mãe daquela menina. – Ele continua – Ela pôde se despedir da filha?

- Não, eu retirei a alma dela sem que se despedisse da Mel... – Ele assente com a cabeça, já eu aperto os olhos com tal pergunta. – Onde está querendo chegar?

- Pensei em dar forma a essa alma, uma em que ela possa falar com a filha novamente. – Ele olha ao anjo – E também, agora com Klauss aqui, vocês também podem falar com ela uma última vez.

- Você pode fazer algo assim? – Klauss pergunta, e apesar do anjo pouco alterar sua expressão, se olhar bem é possível enxergar certo espanto no anjo.

- Posso, não será a primeira vez que faço algo assim. Só não sei ao certo quanto tempo posso manter uma projeção dessas. – Ele responde, e seu tom fica um pouco mais sério – Mas só farei algo assim se ambos concordarem.

- Uma oportunidade da Mel rever sua mãe, nunca imaginei que isso fosse possível. – Sussurro pensando muito nisso, me voltando ao anjo – O que você acha disso?

- Mel já não costuma falar sobre isso, mas sei que ela sente falta da mãe. – Klauss baixa o olhar por um momento. – Ela ainda pergunta sobre Felícia.

- Eu sei, talvez seja bom para a Mel ver a mãe dela mais uma vez. – Digo reflexiva.

- Talvez a você também seja Mika. – Não compreendo o que Klauss quis dizer com isso, mas antes que eu pergunte a respeito, ele continua, se aproximando e tocando minha mão, depositando um suave carinho – Acredito que isso será bom para nossa criança, e fará bem a ela.

Observo o frasco em minha mão, o segurando com força, refletindo em suas palavras e também o que elas podem significar.

Sei o que quero, e concordo com o Klauss em aceitar a ideia do Cara do Casaco. Olho para Nick e Layla, onde os dois dão discretos acenos com a cabeça, já parecendo saber qual a nossa decisão e nos apoiando.

Assinto voltando a olhar ao anjo – Sim, também penso dessa forma.

- Então, aceitamos a ideia dele? – Klauss pergunta, e confirmo com a cabeça. Com isso, o anjo observa a Cria do Abismo, que aguarda pacientemente – Creio que tem sua resposta.

- De fato tenho. – Ele responde com um leve sorriso. – Liberte a alma do frasco, e deixe o restante comigo.

Com bastante relutância faço como ele pede, retirando a tampa e observando enquanto a alma escapa do recipiente timidamente, expandindo-se no ar até assumir as proporções que vi na primeira vez, movendo-se com suavidade. Ela é levemente translúcida, e apesar dos tons claros, tenho a impressão de enxergar estranhos tons escuros que mais parecem manchas, que me fazem entender que Felícia possui uma alma corrompida.

A Cria do Abismo ergue suas mãos para a alma, e após um curto instante, ela começa a emanar um brilho muito mais forte do que já emitia antes, e a alma passa a se concentrar em um ponto único bem a sua frente.

Me dou conta que uma silhueta está surgindo em meio ao brilho, que cresce a cada instante. Tampo os olhos com uma mão, e noto que até mesmo Klauss ao meu lado faz o mesmo, tão forte é o brilho emitido por essa alma.

A luz enfraquece devagar, e quando volto meu olhar, uma figura feminina está deitada diante do Cara do Casaco. Uma que lembra Mel em cada traço de sua aparência, os olhos compartilham do mesmo tom, formato do rosto se assemelha, somente os cabelos permanecem diferentes, são castanhos escuro apesar de igualmente cacheados.

- Deu certo. – O Cara do Casaco diz em meio a um longo bocejo, erguendo seus braços e se espreguiçando por demorados segundos.

Klauss e eu trocamos um olhar, atônitos com o que acabamos de presenciar. Volto meu olhar para Layla e Nick, que estão sem reações. Nick está boquiaberto e Layla está com seus olhos arregalados.

A mulher parece despertar aos poucos, erguendo seu corpo devagar, enquanto o Cara do Casaco se abaixa a sua frente e estende uma mão – Consegue se levantar?

Observo a mulher erguendo seu rosto a ele e, após hesitar um pouco, aceita e se levanta. – Quem... É você?

Tenho vontade de me aproximar, dizer algo, mas meu corpo está imóvel. Minhas pernas não me obedecem e sinto não conseguir expressar quaisquer palavras. O baque de rever Felícia de pé bem à minha frente foi muito maior do que eu esperava, e agora, sinto meu corpo inteiro tremer, minhas pernas fraquejam e tudo parece instável.

Agora que a vejo, todas as memórias daquele dia vem à tona, junto a verdade que fui eu quem encerrou sua vida. E neste momento que a vejo, o que direi a ela? O que ela vai dizer ao me ver?

Sei que ela não parecia ter mágoas de mim, e partiu com um sorriso no rosto, mas...

Sinto a mão de Klauss envolvendo a minha junto de um olhar que me conforta, fazendo com que eu seja tirada de tantos pensamentos turbulentos por um momento.

O olhar que ele entrega a mim, apesar de firme e profundamente intenso, também transmite calma, me conforta. Além disso, ele também me traz confiança e me faz compreender que não estou sozinha, afinal, tenho ele comigo como já tive em várias outras vezes.

Respiro fundo e avanço em direção a mulher, que parece bastante desorientada.

O Cara do Casaco apenas exibe um sorriso compreensível para a mulher. – Eu... Não entendo... O que aconteceu comigo?

- Desculpe, não consigo te explicar pois não sei todos os detalhes. – O Cara do Casaco ergue seu olhar a mim e Klauss, dando um discreto aceno com a cabeça – Contudo, esses dois irão te explicar melhor. Acredito que já os conheça.

Acompanhando o olhar da figura, a mulher vira seu rosto a nós, e a surpresa presente em seu rosto ao nos ver é única, tanto que ela mal expressa palavras, mas seus olhos ficam marejados em uma emoção silenciosa.

- Felícia... – Digo em um meio sorriso.

A mulher olha para mim e Klauss, quando a surpresa dá lugar a um sorriso – É muito bom ver vocês.

Sua reação me traz alívio, e me permito respirar com calma por agora.

- Deixarei vocês conversarem. Sei que tem muito para vocês colocarem em dia. – O Cara do Casaco se afasta e segue para a casa, acompanhado pelos olhares atentos de Nick e Layla – Aliás, vocês dois não comeram nada desde que chegaram, venham comer algo.

- Nós anjos não precisamos comer. – Layla nega prontamente.

- Isso é sério? – Nick pergunta erguendo uma sobrancelha, ao passo que Layla confirma com a cabeça – Nossa, vocês anjos são muito chatos.

- O que está insinuando?! – Layla reclama de imediato. Nick corre para atrás de Layla e, levando suas mãos aos ombros dela, começa a guiar o anjo para a casa – Ei, o que está fazendo, seu atrevido?

- Nada, só que hoje você vai comer algo. – Nick responde em um tom brincalhão, ignorando uma possível careta de Layla – E nada de "não me toque" dessa vez.

- Você é irritante demais. – Layla resmunga, mas não se livra das mãos de Nick e permite que ele vá a guiando.

O Cara do Casaco observa os dois passando por ele, olhando para mim e Klauss em seguida, é a única resposta que tenho para ele é um erguer de ombros. E com uma risada curta, a figura balança a cabeça e segue em direção a casa, nos deixando a sós com Felícia.

Felícia leva sua mão a altura do peito e a olha por alguns segundos – Me lembro da última vez que nos vimos... Do que conversamos... Eu achei que era o fim, mas... Eu estou aqui agora?

- Muita coisa aconteceu desde que nos encontramos pela última vez, Felícia. – Digo com cautela, escolhendo bem minhas palavras – E algum tempo passou.

- Quanto tempo? – Ela pergunta em um sussurro.

- Já faz mais de um mês. – Klauss responde.

- Tanto tempo...? – Ela ergue seu olhar para mim novamente – Então, eu...

- Sim, você realmente morreu aquele dia. – Respondo com pesar, e assisto como ela fica cabisbaixa com a confirmação sobre sua morte. – Me perdoe...

- Eu entendo... – Ela assente devagar, apertando a boca e deixando com que um suspiro escape, e não sei bem o que dizer e nem o que dizer. Apenas dou tempo para ela processar a informação – Como a Mel está?

- Ela está morando conosco. Nós estamos cuidando bem dela. – A mulher assente com o que digo, e um sorriso surge em seu rosto.

- É um alívio saber disso. – O alívio em sua voz é notável. A mulher parece finalmente se permitir relaxar um pouco mais – É muito bom saber que deixei minha filha em boas mãos... Mas, eu não entendo, se eu morri naquela noite, então... Como posso estar aqui agora?

- Foi ação daquele homem de sobretudo. Não sabemos como, mas ele foi capaz de te trazer de volta. – Klauss baixa seu olhar, refletindo em algo que até então não parei para pensar, que é a aparente facilidade que ele conseguiu trazer Felícia de volta.

- Se estou aqui, o que vai acontecer comigo? – Ela pergunta com certo nervosismo presente em sua voz.

- Te trouxemos para que pudesse ver Mel novamente. – Conto e a surpresa surge em seu rosto – Mel sente sua falta, e também, você mal teve tempo de se despedir dela.

Felícia abre a boca, contudo nenhuma palavra é pronunciada. – Eu... Eu quero ver minha filha, quero muito ver ela... Ela está dentro daquela casa?

- Sim, irei buscar ela. – Digo, já me virando em direção a casa.

- Espera. – ouço Felícia me chamar e retorno minha atenção a ela. A mulher demonstra certa insegurança em seu olhar, apertando a boca com força. Mesmo que isso seja algo que ela claramente queira muito, não entendo o que pode estar causando tamanha insegurança nela, por esse motivo, aguardo pacientemente que se sinta confortável para falar – Vocês... Tem certeza disso?

Klauss e eu trocamos um olhar, nisso o anjo da lua se adianta – Por que tal pergunta?

A mulher para um instante, claramente tendo algo a falar, contudo, ela não o faz e balança a cabeça negativamente e abre um novo sorriso – Não é nada... Pode trazer a Mel? Estou cheia de saudades dela.

Olho para Klauss e ele confirma com um pequeno aceno. Com isso, viro e faço meu caminho para a casa, tendo algo que Felícia disse saltando em minha mente.

Ela disse estar cheia de saudades da filha, e já tive tal sentimento antes. Saudade... Mas é possível estar cheia de saudades de alguém?

Entro na casa, vendo Layla se deliciando com um pedaço de bolo, e Nick a olhando atentamente, apoiando o queixo sobre uma das mãos, e aparentemente ele está gostando muito de observá-la. Tomando uma xícara cheia de algo quente, vejo o Cara do Casaco, que apenas me olha de soslaio, e volta a observar os dois na mesa com aparente curiosidade.

Me aproximo devagar dele, também me sentindo curiosa pela interação de Layla e Nick – Onde a Mel está? – Pergunto baixinho, pois tenho a sensação de que se falar muito alto, vou romper o momento dos dois, seja lá o que esteja acontecendo.

- Ela está na sala com a Anne e o Edan. – Ele me sussurra de volta.

Assinto devagar e, antes que eu saia, me volto a ele – O que eles estão fazendo?

- Ele disse que mesmo que ela seja um anjo e não precise comer, ela deveria experimentar comer algo pelo menos uma vez. Nisso, ela deu uma chance para o bolo que o Edan fez. – Ele da um gole em sua bebida, e salta as sobrancelhas – Acho que ela gostou do bolo, e ele não para de olhar. Esses dois tem alguma coisa entre eles?

- Você diz um relacionamento, tipo namoro? – Ele confirma – Não, eles se conheceram ontem.

- Ontem? – Pergunta surpreso – Uau.

Olho por mais uma vez para a cena que se desenrola, e me mantendo firme no que vim fazer, continuo em direção a sala.

Antes de adentrar o cômodo, posso ouvir Mel falar sobre seu mais recente desenho envolta em muita empolgação, e logo em seguida recebendo alguma orientação de Edan sobre o que fazer. Paro por um momento, puxando o ar profundamente e soltando pela boca, reunindo coragem para ir adiante com o que estou para fazer.

Irei levá-la de volta à sua mãe. Fico pensando, como minha pequena irá reagir? Como eu irei me sentir?

Entro na sala em um passo receoso, e vejo a criança sentada no sofá, tendo sobre suas pernas um tipo de placa transparente com uma folha grudada. Ao seu lado, encontro muitos lápis largados sobre o sofá, borrachas, canetinhas coloridas e algumas outras folhas.

Ela rabisca algo devagar, concentrada em seu desenho. Seus longos e cacheados cabelos loiros caem em torno de seu rosto, e me permito um sorriso ao olhar a menina.

- Mel? – Chamo enquanto me aproximo devagar, e a menina ergue seu olhar para mim.

- Mika, olha que bonito! – Mel solta a folha da placa e me mostra um desenho repleto de cores vivas, e com um largo sorriso, continua assim que me abaixo a sua frente – A Anne e o Edan estão me ensinando mais como desenhar, sabia que os dois também desenham?

- Seu desenho está muito bonito, gostei muito dele... O Edan contou que sabe desenhar, e a Anne confirmou isso. – Dou um sorriso sincero olhando aos dois, que apenas mantêm suas atenções em nós. Relutante, busco as mãos da menina e às seguro, depositando um pequeno carinho, e ganho um olhar curioso dela. – Escuta... Vamos lá fora um pouco Mel? Tem alguém que quer te ver.

- Alguém que me ver? – Ela pergunta curiosa, já fazendo menção de se levantar.

- Sim, é alguém que você gosta muito. – Respondo e fico de pé, e a menina pula do sofá, sem deixar seu desenho para trás.

A menina faz um rosto pensativo enquanto me olha fixamente – Alguém que eu gosto bastante... Acho que é o Klauss. Acho que ouvi a voz dele, não tinha certeza se eu ouvi certo, mas se é alguém que eu gosto bastante, acho que é ele porque gosto muito do Klauss. Quero mostrar esse meu desenho para ele, será que ele vai gostar?

Dou um sorriso de seu jeito único, e afagando seus cabelos, assinto de leve – Sim, tenho certeza que ele vai gostar. Vamos?

Ela confirma com um gesto animado, e me acompanha para fora da sala. Antes de sairmos, Mel olha para trás, acenando para o jovem casal que continua nos olhando – Eu já volto!

- Claro, estaremos te esperando Mel. – Anne diz em seu sorriso radiante, e Edan ergue sua mão, retribuindo o aceno da criança.

Voltamos pela cozinha e observo a menina de canto de olho, e a cada passo, tudo parece ficar cada vez mais devagar, os sons ao redor diminuem, e meus passos parecem ecoar na minha cabeça.

Passo primeiro pela porta da cozinha e vejo a mulher me olhar de volta, dando um aceno mostrando estar pronta, enquanto Klauss aguarda ao seu lado. – Veja quem está ali Mel.

A menina passa por mim e, assim que seus olhos a encontram, ela corre – Mamãe!

- Mel! – Felícia se abaixa e recebe um forte abraço da filha, que é imediatamente correspondido. Em meio a este momento, escuto um choro sentido e repleto de saudade da criança, e ao mesmo tempo que estou feliz por Mel poder rever sua mãe após todo esse tempo, sinto uma forte dor em meu peito por ver ela chorando dessa forma.

Klauss se aproxima de mim e me abraça de lado, e encosto minha cabeça em seu ombro, sem deixar de observar as duas – Você está bem? – O ouço perguntar em um sussurro.

Afirmo devagar, dando às duas o tempo que precisam. Também preciso desse tempo para lidar com essa sensação em meu peito, que sequer consigo descrever. Acho que se tentar falar qualquer coisa agora, também começarei a chorar.

Aos poucos Mel vai se acalmando, conforme recebe os carinhos de sua mãe. Devagar elas se afastam, e Felícia seca o rosto da pequena com a ponta de seus dedos – Não chore mais, eu estou aqui...

A menina assente devagar, fungando e secando os olhos com as mangas da sua blusa. Mesmo que tente se manter calma, seus olhos continuam cheios.

Felícia a olha com um sorriso, quando percebe a folha entre os dedos da criança – O que tem aí Mel?

- É... É um desenho... – Ela consegue dizer com a voz chorosa e embolada, respirando fundo algumas vezes para se controlar e conseguir falar.

- Um desenho? Posso ver? – Mel concorda ao mostrar o desenho para sua mãe, que o olha com um brilho presente em sua feição – Que bonito, são vocês três?

Klauss solta um riso nasal, e percebo um discreto sorriso surgindo em seu rosto. Já eu, estou em um verdadeiro misto de emoções, e estou dando meu máximo para me controlar, mas cada vez mais é complicado, e por mais uma vez, respiro fundo.

- Você gosta deles, filha? – Felícia ergue a criança no colo, e logo Mel confirma – E de morar com eles? Também gosta?

- Eu gosto... – Mel diz sussurrando e olha pra mim – A Mika... A Mika sempre brinca comigo... A gente desenha juntas, ela me ensina algumas brincadeiras, está me ensinando a ler... Mamãe, eu estou lendo um pouquinho, é difícil, mas eu consigo ler algumas coisas, lá tem muitos livros, e a Mika me ajuda a aprender a ler, e sempre fica comigo quando vou dormir, eu não tenho mais medo do escuro, porque a Mika sempre está cuidado de mim... O Klauss é sério, mas ele é legal, e ele gosta de cozinhar igual você e o papai... Ele sempre me deixa ajudar a preparar as coisas com ele, às vezes a gente faz um pouco de bagunça, e a Mika não acredita quando o Klauss faz algo, mas acredita quando eu digo que ajudei a preparar... O Klauss também disse que vou ser uma degustadora de coisas gostosas... Mamãe, eu quero ser uma degustadora quando crescer, e poder comer muitas coisas boas, tão boas como as que o Klauss faz pra mim e pra Mika...

A mulher escuta tudo que a filha diz atentamente, entregando suaves carinhos em seu rosto sem abandonar a leveza em seu rosto – Tenho certeza que você será a melhor degustadora filha, e vai experimentar muitas coisas boas.

A mulher ergue seu olhar a nós, ao mesmo momento em que abraça sua filha novamente com firmeza, a erguendo no colo com carinho. A menina afunda seu rosto no ombro da mãe, e assim fica.

- Obrigada por cuidarem tão bem dela por todo esse tempo. – Ela diz num sussurro.

- Não precisa nos agradecer. – Klauss responde suavemente – Desde o primeiro dia que esteve morando conosco, cuidamos da Mel como se fosse nossa filha... Essa é, inclusive, a maneira como vejo essa criança.

Meu corpo inteiro treme ao ouvir essas palavras.

Felícia acena agradecida, caminhando em direção a casa em passos suaves, brincando com a criança, que expressa um lindo sorriso por finalmente estar com sua mãe após tanto tempo, e fico estática observando as duas se afastando.

Conforme as observo, sentimentos se agitam dentro de mim e meus pensamentos encontram-se em um imenso turbilhão com as palavras que ouvi do anjo ao meu lado.

Então... Klauss já enxergava Mel como uma filha a muito tempo atrás.

Minhas pernas bambeiam e por muito pouco não perco meu equilíbrio, e aos poucos absorvo algo que eu mesma já sabia, mas nunca admiti para mim mesma.

A verdade é que eu também já considero Mel como minha filha, meu coração já enxerga dessa maneira a muito tempo, mas eu neguei, tive medo de admitir isso. Como fui tola.

E agora, maior que meu medo de admitir como me sentia, tenho medo de perder Mel e não poder estar com essa criança que hoje é tão especial para mim, e sinto ser uma parte importante da minha vida. Pensar isso me dói demais, e não consigo imaginar meus dias sem ter Mel presente.

Assim como Klauss, Mel faz parte da minha vida, é importante para mim, e não quero ter que me despedir dela. Sei que ela estará melhor e feliz se permanecer com sua mãe, mas... Mas eu não quero ficar longe dela.

De repente sinto meu corpo abraçado com carinho, e meu olhar encontra o de Klauss, que parecendo perceber o turbilhão que existe em mim, me conforta sem sufocar o que tenho em mim. Não sei o que sinto, é profundo, é intenso, e sequer sei descrever.

- Klauss, eu... – Tento dizer algo, qualquer coisa que seja para expressar ao menos um pouco do que existe dentro de mim nesse momento tão confuso e também tão revelador, mas não consigo dizer nada.

- Tudo bem Mika. – Ele responde com um sorriso, passando um dedo pelo meu rosto lentamente – Eu sei.

- Você... – Hesito um momento – Já considerava a Mel como uma filha?

Klauss não me responde com palavras. O anjo apenas sorri, e em seu olhar sereno, encontro a resposta que buscava. Uma resposta que é tão clara quanto o dia.

Deixo um pequeno riso me escapar, vendo como Klauss demonstra com tanta certeza, e penso como demorei tanto para me sentir da mesma maneira. Ele não tem dúvidas quanto a isso, e acredito que também não deveria ter dúvidas.

- O que nós vamos fazer? – Pergunto a ele, deixando um suspiro escapar. – Não quero ficar longe da Mel, mas...

- Eu sei, também não quero me afastar daquela pequena. – Ele me responde, e iniciamos uma lenta caminhada até a casa – Acredito que agora, o melhor é deixarmos Mel aproveitar da companhia de sua mãe. Ela queria isso a muito tempo.

Assinto em silêncio e assim permaneço conforme caminhamos, e em cada passo, aos poucos tento me acostumar com a maneira como me senti por todo esse tempo, e que insistentemente tentei negar.

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