Capítulo 38

5619 Palavras

Sinto meu corpo inteiro doer, e meus olhos pesam como nunca, de forma que é difícil abri-los.

Estou em um lugar estranhamente confortável, e também bem silencioso, apesar que ao longe escuto um ruído estranho que não sei identificar. Ao abrir meus olhos me encontro deitada em uma cama em meio a um quarto escuro, pouco iluminado pelas minhas asas. Será que tudo foi um sonho?

Tento me sentar, mas várias pontadas de dor me atingem a ponto de meu corpo fraquejar e eu não ter sucesso algum. Conseguir me levantar se mostra uma tarefa muito mais difícil do que eu esperava.

Resmungando com a dor, vou me erguendo aos poucos até conseguir ficar sentada, com as pernas postas para fora da cama, começo a me espreguiçar demoradamente mas logo me arrependo disso, pois meu corpo inteiro reclama em pontadas seguidas de dor.

Gemendo baixinho e sentindo meu corpo tremer, logo corro meus olhos ao redor por alguns segundos, observando os detalhes graças a luminosidade emanada pelas minhas asas. Não conheço esse lugar.

Com algum cansaço ainda em mim e me acostumando às várias dores em meu corpo, me levanto e sigo para fora do quarto em passos arrastados, querendo descobrir que lugar é esse.

Abro a porta que emite um rangido baixo, e me deparo com um corredor não muito longo. De um lado tem apenas algumas portas, do outro o corredor parece levar a algum cômodo, onde consigo ouvir alguns barulhos.

Intrigada e querendo saber onde estou, avanço pelo corredor, passando por uma sala vazia com poucos móveis. Noto uma porta aberta que leva a um ambiente mais iluminado, e também, é de onde vem os barulhos se antes.

Entro em passos lentos percebendo se tratar de uma cozinha, e sinto um aroma agradável de café no ar. Existe uma mesa disposta bem ao centro da cozinha, com algumas coisas postas para o que parece ser um café da manhã, sendo essas um bolo já com uma fatia tenso sido cortada, uma jarra que parece estar o café e uma caixa de leite.

Do lado oposto da mesa, parado ao lado da porta e olhando para algo fora dessa casa, vejo um rapaz com traços bem jovens que parece ser um pouco mais alto que eu de pele bem clara, um cabelo negro amarrado sobre a cabeça com alguns fios soltos pela testa, e um olhar esmeralda que me parece muito familiar.

Quanto mais olho para ele, mais o acho muito familiar, será que já o vi antes? Se vi, onde deve ter sido?

Ele beberica algo em uma xícara escura, e instintivamente recolho minhas asas, e somente nesse instante que ele percebe minha presença, aparentemente levando um leve susto a princípio.

- Ah, você acordou. – Ele diz quando o susto passa, e sua expressão suaviza, quase parecendo estar entediado. Quase. – Como está se sentindo?

Aperto os olhos por um momento, desconfiada com tudo que está acontecendo e cheia de perguntas saltando a minha mente – Dolorida... Quem é você mesmo?

- Ah sim, me chamo Edan, você é...? – Diz num discreto modo de saber meu nome.

- Mikaela. – Respondo apertando os olhos.

Ele olha para a mesa e faz um gesto discreto para que eu me sente – Acho que você deve estar com fome, fique à vontade.

Ainda desconfiada, puxo uma cadeira e me sento devagar, observando o rapaz a todo tempo, que deixa sua xícara sobre a mesa e, primeiro despejando um pouco de leite, ele logo alcança a jarra e se serve com um pouco mais de café, confirmando minha suposição de antes.

Será que ele sabe quem, ou o que eu sou? Ou então saber o que aconteceu? Talvez ele possa me explicar onde eu estou, acho que esse é o mínimo.

Antes que eu possa falar, ouço alguns passos do lado de fora, e de repente, uma jovem moça de longos cabelos vermelhos soltos, olhos azulados e pele clara entra na cozinha.

Ela vai diretamente ao rapaz e dá um abraço carinhoso e demorado nele, um que faz com que ele esboce um sorriso sincero, rompendo por completo o semblante de antes e o deixando muito mais leve.

Observo Edan passando seus braços em torno da cintura da jovem, retribuindo o abraço com o mesmo carinho, e neste momento que os observo, mesmo que por esse curto momento, tenho a certeza de como esses dois são importantes um ao outro, quando por fim ambos voltam suas atenções a mim.

- Ela é a moça que ele trouxe na última noite? – A garota humana pergunta com aparente curiosidade.

- É sim, ela se chama Mikaela. – Edan explica e então torna a me olhar – E Mikaela, essa é minha namorada, Anne.

- Muito prazer Mikaela, se sinta em casa. – Anne diz com um sorriso genuíno. – Já comeu alguma coisa?

- Ainda não, não sei se estou com fome... Aliás, podem me chamar só de Mika. – Respondo esboçando um pequeno sorriso, não sabendo bem como agir, devido a tantas dúvidas. Puxo o ar devagar, decidida a começar minhas perguntas. – Então, Edan, Anne... Eu nem sei muito bem por onde começar... Nem me lembro direito do que aconteceu...

- Eu não duvido. – O rapaz balança a cabeça com as sobrancelhas erguidas e uma certa tranquilidade, mesmo que sua feição e olhar sejam puramente gélidos, talvez até mais além que a expressão calma de Klauss.

- Que lugar é esse? – Pergunto finalmente.

O rapaz passa uma mão pelo queixo, refletindo sobre a resposta. – Eu não tenho certeza do local exato, mas a explicação fácil é que estamos em uma casa frente a uma praia.

Explicação fácil? Isso é estranho. – E como cheguei aqui?

- Você foi trazida para cá no meio da noite. Você estava desacordada e também, bem machucada. – Anne explica, puxando uma cadeira e se sentando. – E aliás Mika, como você está se sentindo hoje?

- Direi o mesmo que contei ao Edan, dolorida. – Digo e tenho um riso como resposta da garota. Não um riso debochado, mas um que me transmite compreensão, e sem perceber acabo soltando um riso nasal, e tenho um pequeno sorriso no rosto. – Mas quem me trouxe pra cá?

- Um amigo nosso, você já o conheceu... – Edan torce a boca um pouco, e salta os ombros – Só não sei se você teve uma boa primeira impressão dele.

- Não tive? Por que? – Pergunto curiosa com seu comentário.

- Você vai entender quando ver ele. – O rapaz diz, bebericando seu café com leite, e deixando a xícara sobre a pia – Ele disse que quer conversar com você.

- Inclusive, onde ele está? – Anne pergunta se virando a Edan – Já teve notícias?

- Já, ele ainda está ajudando a Nicole com os estudos dela. – Edan torna a se aproximar da mesa, e por mais uma vez torno a observá-lo com atenção, incomodada com essa familiaridade que encontro nele – Daqui a pouco ele deve estar por aqui.

- Então, o melhor é esperar esse amigo chegar? – Pergunto apoiando o queixo sobre a mão. – Ele tem um nome?

- Se tem, nós ainda não sabemos. – As palavras de Edan me deixam desconfiada, e fico em alerta. Alguém sem nome? – Nós o conhecemos como "Cara do Casaco".

- O que?! – Me levanto bruscamente, e a cadeira atrás de mim quase caí no chão – Vocês são amigos dele?!

Nenhum dos dois parece muito surpreso com minha reação. Na verdade, até arrisco dizer que eles já esperavam por algo assim.

- Vocês tem alguma ideia do que ele fez? E ele ainda se atreveu a me trazer para cá? – Insisto, onde nenhum dos dois diz qualquer coisa.

- Francamente, vocês anjos são muito temperamentais. – Ouço uma voz vinda da porta, quando uma figura entra na cozinha, me olhando da mesma forma despreocupada de ontem, e ostentando seu sorriso calmo.

Meu corpo tensiona por inteiro ao ver o Cara do Casaco bem a minha frente, tendo uma mão no bolso de uma longa bermuda e um livro na outra mão.

Ele se aproxima de Anne e ergue o livro a ela – Consegui o livro que me pediu.

- O que? É sério?! – A garota se anima, pegando o livro e o folheando de imediato, com um brilho presente no olhar – Onde você encontrou?

- Foi um baita trabalho, olhei em várias livrarias, pra no fim, conseguir achar em uma estante de livros grátis em uma estação de trem. – Ele conta num tom risonho e bem divertido, enquanto a garota agora o livro em seus dedos algumas vezes – Dá pra perceber que é um modelo antigo.

- Não tem problema nenhum, eu estava doida de vontade pra ler. – Ela diz animada, sem sequer desviar seu olhar do livro.

Ele retorna sua atenção a mim, e aperto os olhos. Ele mantém seus longos cabelos cacheados soltos, veste seu sobretudo escuro, por baixo tendo uma camisa branca folgada e uma bermuda – Sente-se mais calma, Mika?

Não respondo a princípio, e não desvio meu olhar dele. A figura se aproxima, e quase que de imediato recuo um passo, erguendo uma mão, concentrando meus poderes de chamas, mas sou surpreendida quando nada acontece.

Encaro minhas mãos por curtos segundos, quando volto a encará-lo – Não poderá utilizar seus poderes aqui. Eu os cancelei temporariamente.

- O que, mas...? – Recuo mais um passo, mesmo que a figura não se aproxime mais de mim.

- Quero apenas conversar, e acho que não conseguiria caso você ainda estivesse com seus poderes. – Ele ergue suas mãos devagar, como se me pedisse calma – Não se preocupe, terá seus poderes de volta assim que terminarmos.

Eu estou indefesa? Isso é sério?

- O que você quer com a gente? Por que foi atrás de nós? – Pergunto irritada.

- Nenhum motivo particular. Os anjos estavam atrás de mim e eu não sabia o porquê, então decidi inverter o jogo. – Responde simplesmente, saltando os ombros. – Trouxe você aqui para descobrir o motivo dos anjos me perseguirem.

Agora que ele perguntou, me vejo com tal dúvida. Percebo que desconheço as razões dos anjos perseguirem essa Cria do Abismo, eles apenas desejam capturá-lo, mas não faço ideia do real motivo disso.

Baixo meu olhar, tentando me lembrar se Klauss chegou a me contar algo a respeito, ou até mesmo se Layla citou algum motivo. Nem mesmo a senhorita Raika e os três juízes contaram suas intenções em relação ao Cara do Casaco.

- Desculpa, mas eu não sei o motivo. – Respondo baixando meu olhar. – Já não faço mais parte dos anjos, então não sei o que podem querer com você...

- Entendo... – Ele diz com um suspiro, apoiando as mãos na cintura – Espera, você disse não fazer parte dos anjos, e agora que penso melhor, eles te deixaram para trás ontem. Por que isso?

- Sou uma caída, não sou um deles. – Respondo com pesar.

- Bem que achei estranho terem te deixado para trás. – Ele sussurra reflexivo.

- Mas mesmo se eu soubesse de alguma coisa, eu não contaria a você! – Disparo minhas palavras envoltas em raiva, e ele me encara, não estando perplexo ou assustado. Ele apenas... Me olha. – Você faz ideia de quanto problema nos causou só com sua presença? Você só tornou tudo mais difícil do que já era antes!

- Ainda não confia nem um pouco em mim, não é? – Responde me olhando, e então fitando o casal, onde Edan apenas responde erguendo os ombros – Certo, farei algo em sinal de que você pode confiar em mim.

Mal tenho tempo de responder, quando a figura se vira e, após poucos passos, uma fenda abre bem a sua frente e ele a atravessa, desaparecendo sem deixar qualquer vestígio.

- Ele faz isso sempre. – Edan comenta com um suspiro entediado – É horrível.

- E vocês acham normal? – Pergunto incrédula.

- Estamos nos acostumando. – Anne responde, fechando o livro em um movimento lento, então erguendo seu olhar a mim – Ainda assusta um pouco.

- Não acredito... – Resmungo baixinho, completamente perdida de como as coisas estão, e como me encontro completamente desorientada – Quando foi que tudo ficou desse jeito?

- Acho que perdi a conta de quantas vezes me perguntei isso. – Edan comenta pensativo. – Logo ele está de volta.

- Vocês... – Paro por um momento, vendo o quão calmos ambos estão – Como conseguem ficar tão tranquilos?

- Porque já o conhecemos há algum tempo. – Edan cruza os braços e olha para o alto por alguns segundos – Foi muito estranho no começo, mas ele não é alguém ruim.

Olho para os dois por alguns segundos – Vocês também são Crias do Abismo?

Anne balança a cabeça – Não, hoje ele é a única Cria do Abismo que existe.

- Então vocês dois... São humanos normais? – Pergunto surpresa, e ambos me confirmam com pequenos gestos – Mas como humanos conhecem uma Cria do Abismo?

- O conheço desde quando era muito nova. – Anne começa a falar – Até dois anos atrás, eu tinha uma doença muito grave, que ele foi o causador. Desde então ele sempre apareceu para tentar conter os sintomas, até eu ser curada.

- Já eu, perdi meu pai pela mesma doença. Mas o conheci só anos depois, no dia que passei a morar sozinho. – Edan conta, se sentando e apoiando o queixo sobre a mão. – Ele disse que nós dois temos algo especial, e queria estudar melhor a respeito. Nesse meio tempo, acho que nos tornamos amigos.

- Depois de ele quase matar a gente, que irônico, não é? – Anne diz aos risos, e o rapaz assente.

- Ele o que?! – Pergunto espantada – Ele quase matou vocês, e são amigos dele?!

- Na verdade os dois morreram, mas em minha defesa, digo que foi sem querer. – A figura entra pela porta carregando algo nos braços – Trouxe ambos de volta, porque era a vontade sincera deles. Além disso, fiz uma proposta a eles, e ambos aceitaram.

Pisco algumas vezes, olhando novamente para o casal, absorvendo o que acabei de ouvir – Por que eu acho que vocês tem uma história muito grande e mais complicada, mesmo sendo tão jovens?

- E isso não é nem a metade. – O Cara do Casaco diz.

- Qualquer dia Mika, se voltar aqui mais vezes, eu te conto. – Anne comenta em tom bem leve, e por um momento paro para prestar atenção em ambos.

Como Anne é alegre, radiante e com sorrisos até contagiantes, enquanto Edan é reservado, sério e com um olhar gélido. Opostos em personalidade, mas que mesmo assim, parecem se entender e combinar tão bem.

Ainda por cima, ambos são tão jovens e tenho a impressão que carregam marcas tão profundas, e isso me surpreende ainda mais. Pelo que esses dois devem ter passado?

- Mika. – O Cara do Casaco me chama, aproximando-se devagar – Essa aqui é sua filha, não é?

Ouvir essas palavras me deixam em choque, e no mesmo momento me aproximo rapidamente e observo melhor o que ele tem em seus braços, percebo ser Mel, enrolada em uma coberta.

- Mel? Me dê ela agora! – Digo sem demora, puxando Mel para mim e a acolhendo, buscando a certeza de que ela está bem, e a vejo resmungando baixinho – Mel... Mel... Você está bem?

- Não se preocupe, ela está apenas dormindo. – Ele se afasta devagar, juntando as mãos atrás das costas – Sua filha não foi a única que trouxe para cá.

- Ela não é minha... – Paro de falar quando me atento em minhas palavras, e estar para dizer isso me causa uma sensação muito desagradável, e não consigo continuar. Por algum motivo, faz dias que dizer isso começou a me parecer tão errado de uma forma que mal consigo encontrar palavras para descrever, mas também não consigo dizer que Mel é minha filha, e nesse instante, uma outra coisa que ele falou chama minha atenção – Espera, o que você disse?

- Veja lá fora. – Ele diz com um sorriso de canto, e sem espera vou até a porta da cozinha, onde, para meu espanto, vejo Layla e Nick, completamente perdidos olhando de um lado ao outro se perguntando onde estão, e a Cria do Abismo para ao meu lado – Aqueles dois estavam na sua casa, discutindo alguma coisa sobre quem amarra quem. Não entendi direito.

Vou até eles, aproveitando a oportunidade para manter certa distância da Cria do Abismo e checar se meus amigos estão bem – Nick! Layla!

Nick se vira para mim assim que escuta eu o chamando, e abre um largo sorriso ao me ver indo até eles – Mika!

- O que aconteceu? Onde nós estamos? – Layla pergunta olhando ao redor sem parar.

Agora que estou fora da casa, olho para o que existe atrás de Nick e Layla, me deparando com o imenso mar logo após de uma faixa de areia, e em silêncio assisto as ondas quebrando sem parar na margem, enquanto que ao longe, algumas poucas nuvens estão no céu. Uma vista que me deixa sem palavras.

- Vocês estão no Abismo. – Escuto a voz da Cria do Abismo, que me faz voltar a realidade, e o choque parece crescer no rosto de ambos à minha frente.

Layla e Nick o encaram e sei que ele está parado bem atrás de mim. Os dois estão surpresos e, ao que parece, sem palavras. – Não acredito nisso... – Layla tenta dizer.

Viro-me ao homem, o encarando com desconfiança – Sim Layla, ele é a Cria do Abismo que seu esquadrão esteve procurando... Então... Nós estamos no Abismo?

- Sim, estão. – Ele se aproxima, fitando a todos sem desmanchar seu sorriso – Bem vindos.

Percebo fagulhas cintilantes pairando no ar, e reconheço como sendo a graça de um anjo. De imediato olho para Layla, que acabou de abrir suas asas e materializou fios brilhantes entre seus dedos, estando prestes a atacar a figura.

- Espera, não faz isso Layla! – A alerto erguendo um braço, e nesse mesmo momento Nick a abraça e a ergue do chão, impedindo que avance.

- Me solte agora! – Ela ordena a Nick, que se recusa a soltá-la enquanto o anjo se debate continuamente. – Por que não Mika?!

- Se acalme! Nem mesmo eu e Klauss juntos conseguimos ganhar dele! – Digo com firmeza, e ela se contém – Sozinha você não tem chance alguma.

Devagar Nick a coloca de volta no chão, mas ainda a segurando pela cintura como se estivesse se certificando de que Layla não fará nenhuma besteira.

- O que ele quer? – Ela pergunta.

- Disse que quer só conversar. – Volto a olhá-lo, enquanto abraço Mel novamente – Sobre o que ao certo, eu ainda tenho minhas dúvidas.

- Será que dá para me soltar? – Layla solta para Nick.

- Só se me disser que está um pouco mais calma. – Nick responde com cautela.

Após um longo suspiro, as linhas manifestadas por Layla desaparecem – Sim, eu estou mais calma...

O rapaz pensa por alguns segundos, olhando fixamente para o anjo, que o encara com uma carranca pela demora em Nick se afastar – Tá bom, tá bom... Mas ainda acho que não está tão calma assim.

- Por que você me incomoda! – Ela reclama, mas não parece realmente tão incomodada como diz estar.

Agora sou eu quem deixo escapar um suspiro, finalmente voltando minha atenção a Mel, que esfrega seu rostinho e meu ombro, se ajeitando e continuando a descansar, como se toda essa discussão mal tivesse ocorrido.

- São todos bem animados. – Ouço a voz de Edan, e o rapaz se aproxima com as mãos nos bolsos da calça.

- São mesmo. Inclusive, desculpe trazer tantos visitantes sem avisar. – Responde leve, mantendo sua atenção em nós.

- Isso não é um problema, estou acostumado com bagunça. – Edan responde. – Sabe como a Raquel e o Leandro são, não é?

- Sei bem, são bagunceiros, e fizeram amizade logo com a Anne. Três bagunceiros juntos só para você. – O Cara do Casaco ri da careta de Edan.

Volto meus olhos para Mel, vendo a pequena de longos cabelos dourados com seus olhos abertos, e a sinto um pouco quietinha – Oi meu anjinho, desculpa demorar... Ainda está com sono?

A pequena balança a cabeça negativamente, sem se afastar de mim.

- E com fome? Quer comer algo? – Pergunto fazendo carinho em seus cabelos, e tenho uma resposta afirmativa dela. Com sua resposta, olho para o Cara do Casaco e Edan. – Será que eu...

- Claro, fique à vontade. – Edan se adianta – As coisas para o café ainda estão na mesa.

Assinto com a cabeça e observo o homem ao seu lado – Nós podemos falar depois de eu cuidar dela?

O Cara do Casaco assente, e abre passagem para mim, e antes que eu fuja de volta para dentro da casa, viro-me para Nick e Layla.

- Vocês dois, se comportem! – Digo a eles, que um pouco a contragosto, confirmam com a cabeça.

Com isso, caminhamos de volta para a casa, e apesar de tensa, tudo que me importa agora é cuidar da Mel.

*****

Apesar de ainda estar nitidamente com sono, Mel olha curiosamente para tudo ao redor, envolta em curiosidade plena em seus olhos. A seguro sentada sobre minhas pernas e a abraço de leve, dando tempo para que desperte.

Bem a nossa frente, Edan prepara um borrifador com água, já Anne lê seu livro com certa animação presente em seu olhar. Já Nick e Layla ficaram fora da casa, onde claramente não quiseram entrar, já que o Cara do Casaco parou ao lado da porta.

Timidamente a pequena pega um pedaço de bolo e saboreia devagar, encostando bem seu corpo no meu.

- Mika? – Ela me chama e a olho – Não estamos em casa...

- Não estamos meu anjinho, mas logo vamos voltar. – Digo dando um pequeno sorriso, e ela volta a morder o bolo.

- Deveria comer também Mika. – Anne diz, erguendo seu olhar do livro a mim. – Você não comeu nada desde a hora que acordou.

Apesar de não sentir fome alguma nesse momento, sei que preciso comer. Não como nada desde ontem à tarde, e não quero sentir aquelas dores de barriga horríveis, por isso, corto um pedaço do bolo e como.

Ouço um bocejo e vejo o Cara do Casaco se espreguiçando demoradamente. Quando termina de se espreguiçar, ele cruza os braços e ergue a cabeça, seguido de um demorado e cansado suspiro.

- Você está péssimo. Ainda continua sem conseguir descansar? – Edan pergunta para a figura.

- Ainda, já perdi a conta de quantas noites estou em claro. – Ele responde preguiçosamente, esfregando uma mão nos olhos – Que cansaço.

- Na verdade é uma coisa bem incomum você aparecer descansado. – Anne pontua, e apenas observo. – Você comentou uma vez que a Nicole sabe um feitiço que pode te fazer adormecer. Por que não pede a ela para fazer esse feitiço de novo?

- Aquilo foi um caso à parte. – Ele salta os ombros – E também, Nicole sempre está exausta quando terminamos seus estudos, então, não penso em pedir isso a ela.

- Mas é uma opção, não é? – O rapaz questiona. – A Nicole não parece que vai se incomodar se pedir isso a ela.

- Talvez, mas não a trouxe por essa razão. Não gosto da ideia de transformar ela em meu sonífero particular... E sabemos o que acontece quando eu adormeço. – A figura salta seus ombros com um sorriso leve, transmitindo bastante tranquilidade – Então, prefiro conviver com o cansaço.

- E falando nela, como estão sendo os estudos? – Anne pergunta.

- Consegui alguns livros novos para ela, e estou acompanhando de perto, Nicole já está tentando algumas coisas novas e vem tendo bons avanços. – Erguendo as mãos acima da cabeça e se alongando, ele continua – Ela também está pensando muito sobre como seguir com a vida, e está descobrindo coisas que quer fazer. Acredito que ela se sairá bem.

- E a Alana? Ela lidou bem com a ideia? – Anne pergunta, e fico observando com cautela o andar da conversa.

- No começo não, ela ficou bem desconfiada da Nicole por causa do incidente com as bruxas. Mas agora, minha irmã parece estar lidando muito melhor com a coisa toda. – Explica com um curto riso.

- Você tem uma irmã? – Pergunto, recebendo a atenção dos três.

- Tenho, uma irmã mais nova. – Responde.

- Então, ela... – Digo, juntando os pontos devagar . Apesar de Edan e Anne terem me dito, ainda assim desejo confirmar dele – Ela também é uma Cria do Abismo?

Para minha surpresa, ele nega com a cabeça – Não, apesar de ser daqui, minha irmã não é uma Cria do Abismo. Neste lugar inteiro, sou o único conhecido como "Cria do Abismo".

- Você é estranho. – Pontuo apertando os olhos. Além disso, o que eles disseram se confirma.

- Eu sei. – Responde tranquilo. – Podemos falar?

Seguro Mel com um pouco mais de firmeza, relutando um pouco em ir e deixá-la só – Mel, eu... Eu vou lá fora rapidinho, pode ficar aqui e comer mais se quiser.

Ela me olha e assente somente com a cabeça, e com isso me levanto devagar e a deixo sobre a cadeira, deixando um suave beijo no topo de sua cabeça.

- Ei Mel, você gosta de desenhar? – Anne pergunta para a criança, e timidamente ela assente outra vez, apesar de ver um brilho surgindo no olhar dela. – Edan e eu desenhamos também.

- Verdade? Vocês dois desenham? – Mel diz, e vendo sua animação começando a surgir, prevejo que logo ela estará falando como sempre.

- E ele desenha desde bem novo, acho que tinha sua idade quando começou. – Anne comenta risonha.

- Eu não era tão novo assim Anne. – Edan diz com uma sobrancelha erguida. – De qualquer forma, tenho alguns lápis e também folhas, posso trazer se quiser desenhar.

- Eu quero! – Neste instante a criança claramente se empolgou, dou um sorriso sincero, e afagando seu cabelo, me afasto devagar enquanto a ouço falar em sua voz suave e levemente embolada. – Eu gosto muito de desenhar, tenho até uma caixa secreta com todos os meus desenhos favoritos. Só que ela está ficando cheia de tantos desenhos favoritos, e vou precisar de uma nova caixa secreta para guardar meus novos desenhos. Antes eu só tinha poucos desenhos favoritos, mas agora eu tenho tantos e logo eles não caberão mais na caixa. Só que gosto tanto dos meus desenhos, sempre desenho coisas que gosto muito, então acaba que todos os meus desenhos são meus favoritos, o que posso fazer se gosto tanto de todos que desenho?

Deixo a cozinha, enquanto posso escutar Edan soltando um "uau" para Anne, e paro ao lado do Cara do Casaco, que observa a cena com o canto dos olhos – Sua filha é uma menina encantadora.

- Com certeza é, e agora ela não vai parar de falar. – Respondo a olhando na mesa, e aos poucos retorno a seriedade, voltando meu olhar a ele – O que quer falar com a gente?

O homem direciona sua atenção para Layla e Nick, que sentaram na areia pouco à frente da casa, de costas um para o outro mas encostados, ambos olhando o mar não muito agitado – Tenho somente algumas perguntas, garanto que será rápido.

Layla nota nossa aproximação e logo fica de pé, e Nick fica de pé logo em seguida. Os dois continuam visivelmente tensos tendo essa Cria do Abismo bem diante deles.

- Nos últimos tempos, tenho notado que alguns seres estão atrás de mim... Especialmente anjos e demônios. – Ele passa seus olhos atentos por cada um de nós – Sabem o motivo disso?

Nick nega prontamente com a cabeça, enquanto que o olho com cautela – Não ouvi muito a seu respeito, não sou um demônio de alto nível ou de muita importância, por isso não me deram grandes detalhes... Só sei que o submundo tem interesse em você... A senhorita Raika enviou um grupo para investigar sua presença, mas não tenho conhecimento de todas as ordens.

- Raika? – Ele pergunta, cerrando o olhar. – É a segunda vez que ouço esse nome... Quem é?

- Ela é a soberana do submundo, é um arquidemônio que está acima dos três juízes. – Nick explica com certa cautela.

Layla está calada e com o olhar desviado ao chão, e esse silêncio atrai a atenção do Cara do Casaco para si. Não só a dele, de todos nós.

Ela aperta a boca com força, sua feição entrega o receio que está sentindo nesse momento. Com toda certeza ela sabe de algo, mas por que tanto receio em contar?

- No paraíso... – Ela começa a falar, tornando a erguer seu olhar, seus punhos fecham, e por um momento ela olha para mim e Nick – Ou melhor, na legião, você é considerado um ser infame, desde a operação do Extermínio do Abismo.

- Extermínio do Abismo... Se refere ao confronto entre anjos e demônios que ocorreu aqui no Abismo tempos atrás? – Ele pergunta, erguendo uma sobrancelha.

- Sim... – Layla responde com cautela na voz – Ainda não fazia parte da Legião nessa época, mas soube do ocorrido pouco tempo depois de iniciar meus treinamentos.

- Pode me contar mais sobre essa operação? – O Cara do Casaco aperta o olhar, em um genuíno interesse. – Até hoje, consegui reunir apenas algumas poucas informações, mas nunca entendi o que estava havendo naquele dia.

Admito não saber absolutamente nada sobre esse incidente, e estou interessada em saber mais, e nunca conversei com Klauss sobre isso. É uma oportunidade de entender parte do motivo do Paraíso ter tanto interesse nesse homem.

O anjo permanece hesitante em falar, ainda assim, continua – O Abismo sempre foi um lugar considerado de pouco valor se comparado ao mundo humano. As criaturas que habitam esse local são de baixa importância por não possuírem almas como dos seres que habitam o mundo humano, mas o Abismo podia ser usado para operações secretas e experimentos do Paraíso. Por isso, um acordo foi realizado entre o Paraíso e o Submundo, e um conflito combinado, mas tudo era somente um pretexto...

- Um pretexto? Mas para o que? – Nick pergunta.

- Para varrerem o Abismo e todos os seres que habitam aqui. – O Cara do Casaco responde, cruzando os braços e baixando seu olhar.

- Soube que tudo estava correndo bem, restavam poucos seres para serem eliminados, e o conflito entre o grupo de anjos e demônios seria somente simulado, não havendo baixas reais em nenhum dos lados. – Ela fita o Cara do Casaco – Mas tudo mudou quando o humano envolto pela escuridão surgiu e interferiu no conflito.

Estou levemente boquiaberta ouvindo tudo isso, mas Layla demonstra ainda ter mais para contar sobre esse incidente.

- Disseram que tudo saiu do controle quando você surgiu, e se opôs a todos os forçando a uma retirada. – Ela conta, e vou reparando como Layla aos poucos fica menos tensa, mas sempre mantendo sua guarda alta – Após isso, acontecimentos estranhos e fora da ordem natural acontecem toda vez que você é visto, e ao que tudo indica, você perturba o equilíbrio entre o Paraíso e o Submundo.

- Que tipo de acontecimentos você causa? – Nick pergunta curioso, apertando seus olhos levemente.

- Anomalias climáticas, ou um hospital inteiro repleto de crianças humanas sendo curadas repentinamente, de enfermidades impossíveis dos humanos remediarem em seus conhecimentos atuais, por exemplo. – Layla explica, e Nick faz uma leve careta com a explicação.

- Ah tá, o milagre da AACD, verdade, aquilo fui eu mesmo. – A Cria do Abismo admite casualmente, demonstrando uma feição bem despreocupada, enquanto que não faço a mínima ideia do que ele está falando.

- Desde esse evento anormal, foi relatado sobre sua presença no local, e desde então os Arcanjos da Alta Esfera estão atentos quanto a suas aparições, mas por algum motivo o Paraíso não consegue te rastrear a tempo, já que você sempre desaparece sem deixar vestígios. – Layla balança a cabeça negativamente – Mas por que você tinha que fazer aquilo?!

- Eu estava querendo entender melhor meu poder, precisava testá-lo e saber quais eram meus limites. – Ele salta seus ombros – Por que não testar e fazer uma boa ação também?

- Porque existe um equilíbrio a ser mantido. – Explico com certo pesar, lembrando das palavras do Grão Mestre Arcanjo uma centena de anos atrás – E caso esse equilíbrio seja abalado, a ordem natural das coisas também é, e isso causa consequências.

- Então, uma boa ação feita gerou problemas? – Ele salta uma sobrancelha, e Layla confirma. – Que irônico.

- Acredite, eu sei. – Respondo soltando um suspiro.

- Soube que a perturbação a ordem natural foi tão grande que uma catástrofe absurda foi causada no mundo humano para que o equilíbrio fosse restaurado. – Layla torce a boca, e o incomodo toma sua face – Acredito que seja por esses motivos que o Paraíso esteja atrás de você. Isso é tudo que eu sei...

- Tudo bem, isso já me deu uma boa noção do porque eles estão atrás de mim. – O Cara do Casaco responde erguendo seu olhar e apertando a boca, aparentemente refletindo em tudo que ouviu.

- Como sabe tanto sobre isso Layla? – Pergunto.

- O senhor Ion'Alia me contava a respeito enquanto estávamos no Paraíso. – Ela para por um momento, baixando seu olhar e o voltando a mim. – Mas ele nunca entrou em muitos detalhes.

- Bom, já falamos o que você queria saber. – Digo com certo receio, e fito a Cria do Abismo – O que acontece com a gente agora?

- Quem disse que terminamos nossa conversa? – Ele solta um sorriso, levando uma mão para dentro de seu sobretudo, retirando um pequeno frasco de um bolso interno, e de imediato reconheço o frasco pelo brilho emanado. A alma da Felícia. – Ainda temos algo para conversar.

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