Capítulo 35

8464 Palavras

Ouvindo o forte ruído de mais um trovão reverberando assustadoramente pelo céu, pela janela olho a tormenta que começou de repente e já dura horas sem parar, junto aos ruídos de uma intensa ventania.

A densidade dessa tempestade é tamanha que, mesmo ainda sendo quatro da tarde, parece já ter anoitecido, e é difícil enxergar algo do lado de fora de casa. Mesmo assim, ainda é possível escutar o portão de casa sacudindo violentamente com os fortes ventos, e consigo ver as copas das árvores sacolejando e várias folhas são carregadas pelas ondas de vento.

É inacreditável que isso tudo pode estar sendo causado por uma única criatura.

Bato os dedos no encosto do sofá repetidas vezes, esfregando uma mão pelo rosto levemente, enquanto assisto Mel terminando de saborear seu segundo pote de sorvete que comprei pouco antes de chegarmos em casa.

Havia prometido a ela que poderíamos tomar sorvete, mas desde a aparição do Cara do Casaco, e toda essa tempestade repentina, precisamos voltar para casa às pressas. Ainda assim, me permiti aproveitar um pouco do sorvete de flocos que a pequena me ajudou a escolher, e é simplesmente muito saboroso.

Eu adoraria comer um segundo pote de sorvete, mas não estou tão disposta para isso, ainda mais com tudo que está acontecendo lá fora, e Klauss ainda não voltou para casa.

Dou um suspiro, erguendo a cabeça e fitando o teto. Será que estamos seguras aqui?

- Mika? – Ouço Mel me chamar e me trazendo de volta dos meus pensamentos. Olho para a menina, que ergue uma folha para mim, com algumas coisas desenhadas – Olha o que fiz!

Levo alguns segundos olhando os traços feitos pela criança, sendo três pessoas de mãos dadas, que facilmente identifico. Uma pequena com cabelos loiros e outras duas maiores, essas tendo um par de asas cada uma.

- Somos nós? – Pergunto e Mel assente. – E esse aqui?

- É o Klauss, olha. – Mel pula para o meu lado no sofá e me aponta do desenho do Klauss – Ele está todo de branco e está com o rosto de bravo, igualzinho o Klauss.

Dou um sorriso, abraçando a criança de lado – É verdade, está igual o Klauss.

- Ei Mika, por que o Klauss está sempre tão bravo? – Mel diz de repente e ergo uma sobrancelha – Ele sempre está com um rosto bravo, ele é bem quietinho as vezes, nunca vi ele rindo, e está sempre lendo bastante. Mas não sei se ele está bravo mesmo porquê ele nunca deu bronca em mim, nem em você.

- Ele não está bravo Mel, o Klauss é assim. Alguém que só é bem calmo e muito sério. – Digo, afagando seu cabelo. – Ele era bem mais sério que isso.

- Como ele era? – Mel pergunta curiosa.

- Klauss era assustador, ele era muito mais fechado e nem sorria direito. – Digo relembrando as primeiras vezes que nos encontramos, e o pavor que ele me causava simplesmente ao aparecer – Mas fomos nos conhecendo, e o Klauss foi ficando mais leve...

- O Klauss ficou mais leve? Mas ele é tão grandão, acho que ele não ficou leve não Mika... – Ela diz pensativa e não reprimo meu riso por ela entender o que eu disse de outra maneira.

- Quero dizer que ele não é tão sério igual antes, e também sorri mais. – Explico, quando escuto o barulho da porta da cozinha e uma luminosidade é possível de ser vista, vindo até a sala – Falando nele, o Klauss chegou...

- Oba! – Mel pula do sofá com seu desenho em mãos, e corre até a porta da cozinha, abraçando uma das pernas do anjo assim que ele entra na sala. – Você está todo molhado!

Apesar da notável surpresa em seu rosto pela recepção que acabou de receber, o anjo abre um pequeno e nada discreto sorriso e pega Mel no colo – Acho que agora não sou só eu quem está molhado da chuva.

Dou uma risada vendo esses dois, quando Mel ergue o desenho que tem em suas mãos – Olha o que eu fiz.

Klauss dedica alguns segundos ao desenho, e observo a menina cheia de expectativas – Somos nós?

- Somos, esse aqui é você todo de branco, aqui e a Mika com as asas de ouro, e aqui pequenina sou eu. – Ela diz em sua animação e inocência radiante, apontando para cada desenho na folha, e assisto a cena toda com um sorriso no rosto.

- Mas você está muito pequena Mel – Klauss diz a olhando.

- É porque vocês dois são muito grandes, e eu bem pequena. – Mel explica como a coisa mais clara do mundo.

- Mas não é tão pequena assim, olha que menina grandona. – Klauss responde brincando com Mel, fazendo a menina rir com algumas cócegas, e aos poucos abaixa e deixa a criança no chão. – Vai deixar esse desenho com os outros?

A menina pensa por um momento – Não, vou deixar ele com meus desenhos favoritos, em um lugar especial só para eles. Mas já tenho tantos desenhos favoritos que não sei se vão caber novos, e vou precisar de um novo lugar especial para eles.

- Quando esse lugar especial encher, podemos procurar um novo lugar para guardar os novos. – Digo e Mel assente com um sorriso animado.

Girando sobre os pés, Mel corre para o andar superior, acho que para guardar seu mais recente desenho junto dos demais.

Após Mel nos deixar a sós, volto minha atenção a Klauss, dando um discreto sorriso para ele, que vem até mim em passos curtos.

- Desculpe, não consegui ir vê-las hoje. – O anjo diz a princípio.

Balanço a cabeça negativamente – Não tem problema... Com essa chuva, nem pudemos ficar muito tempo.

Klauss senta-se ao meu lado e, devagar me ajeito ao seu lado. Klauss me envolve em um abraço acolhedor, posicionando suas asas bem próximo de nós, e o abraço de volta fortemente, encostando minha cabeça em seu ombro e desfrutando de sua presença.

- Você está molhado... – Resmungo baixinho.

- Logo estarei seco, só preciso trocar de roupa. – Ele diz prestes a se levantar, mas o seguro no lugar.

- Fica aqui, está tão bom assim... Não precisa ir agora... – Digo manhosa.

Não tenho uma resposta. Klauss apenas mantém seu abraço, se ajeitando no sofá de uma maneira que consiga manter o abraço mais confortável.

Estou confortável e leve, finalmente me permitindo respirar aliviada por Klauss ter chego em casa. Sei que agora, não somente eu estou segura, mas ele também está, e isso me deixa tranquila.

Me aconchego em seu ombro, sabendo que até poderia adormecer aqui por alguns minutos, a preguiça começa a recair em mim, e o sono se vê presente, mas ainda não posso. Tenho algo importante para contar ao anjo.

Ergo meu corpo devagar e fito os olhar âmbar do anjo – Tenho algo importante pra te falar.

- O que é? – Pergunta apertando os olhos.

- Quando fui no parque com a Mel hoje, encontramos com Lay'L. Ela estava em meio ao trabalho dela, e me contou um pouco da ação dos anjos e como tudo está acontecendo. – Digo hesitante, e o anjo continua me observando.

- Ela te contou se estão tendo avanço? – Ele pergunta.

- Até que sim, mas... O maior problema não é esse – Seguro ambos os braços de Klauss – Eu vi ele... Vi a Cria do Abismo.

- O que? – Klauss me observa com um semblante surpreso – Onde você o viu Mika?

- Na praça dos Ipês, ele surgiu de repente por entre as pessoas, e parecia estar indo direto para onde Lay'L estava. – Respondo apreensiva após ter visto ele. – Tenho certeza que era ele, a aparência daquele humano batia com a descrição da Cria do Abismo que ouvi da senhorita Raika e de Lay'L, e aquela presença... Não tenho dúvidas, era ele...

- Cada vez mais me pergunto o que essa criatura quer. – Ele balbucia em baixo tom – Acredita que Lay'L tenha escapado?

- Sim, ela já havia ido embora quando o vi.... Mas... – Engulo em seco – Foi nessa hora que ele começou a vir atrás de mim.

- Como é? Ele foi atrás de você? – Klauss assume um tom mais sério – Vocês duas estão bem? Ele fez algo com você e a Mel?

Nego com a cabeça – Não, ele somente nos seguiu até o carro. A partir disso ele não se aproximou de nós nem falou nada para mim, ele ficou apenas olhando de longe... E então desapareceu de repente.

O anjo aperta seus olhos – Que comportamento estranho. Mas acima de qualquer coisa, é um alívio que você e Mel estejam bem.

Assinto pensativa, baixando meu olhar. Sei que o rosto daquele ser não me é estranho, na verdade me pareceu bastante familiar, e buscando nas minhas memórias, tenho a certeza de que essa não foi a primeira vez que nos encontramos.

Já encontrei a Cria do Abismo antes, em meio a uma tempestade como a de hoje. Eu estava perdida na tormenta, chegar em casa para falar com Klauss depois de um dos meus trabalhos.

Lembro que não sabia onde estava, e mal soube dar detalhes precisos de como era a casa que eu estava buscando, e mesmo com minhas informações tão vagas, ainda assim ele soube me indicar exatamente onde ir.

Me preocupo com a possibilidade dele saber onde estamos nesse momento...

Mas isso é possível?

E se ele souber...? Será que realmente estamos seguros aqui em casa?

- Ei Klauss? – O chamo baixinho – Você disse uma vez que existem barreiras de proteção em volta de casa, não é?

- Sim, que oculta nossa presença de quem está do lado de fora. – Ele aperta seus olhos – O que está pensando?

- Essa barreira pode ser fortalecida? – Pergunto com expectativa.

- É possível, tanto aumentar seu tamanho como a influência de esconder nossa presença. – Diz pensativo – O que está pensando?

- Talvez devêssemos intensificar a força da barreira. – Digo pensativa, e tenho o olhar analítico do anjo sobre mim.

- Está preocupada que a Cria do Abismo chegue até nós, não é? – Klauss diz baixinho, e confirmo devagar. – Farei isso Mika.

Avanço devagar, dando um abraço apertado em Klauss, escondendo meu rosto em seu pescoço e assim permaneço – Tenho medo que o Cara do Casaco chegue até nós.

- Ele não vai. Não deixarei que ele se aproxime daqui de casa, nem que coloque você e Mel em risco. – diz ao passar seus braços em meu redor.

Confirmo baixinho e me permito relaxar ao menos um pouco, fechando meus olhos e deixando um suspiro escapar.

*****

Baixo o livro sobre minha barriga, enquanto vagarosamente vou me balançando na rede, sentindo uma leve brisa passando pela minha pele, enquanto que meus olhos focam em Klauss e Mel, que estão brincando no balanço de pneu.

Faz alguns dias que o clima está muito instável. Faz muito frio durante as manhãs e tardes, mesmo que o céu esteja aberto e o sol brilhe no alto, mas um ar gélido sempre está presente, de forma que sinto o frio me fazer tremer toda vez que o vento toca meu corpo. Já durante as noites, fortes tempestades ocorrem, sempre repletas com muito vento, que às vezes me causa certo receio por suspeitar qual seja a origem desse clima.

Mesmo assim, isso não é o bastante para a irrefreável Mel. Ela sempre está cheia de energia para alguma brincadeira, e não nego que esse frio está me dando muitas oportunidades para aproveitar xícaras quentes de café com leite. Não reclamo dessa parte, até Klauss parece gostar disso.

Enquanto observo os dois se divertindo, levo uma mão ao bolso da minha calça e pego um pequeno frasco que tem um forte brilho emanando de seu interior. A alma de Felícia.

Enquanto giro o frasco entre meus dedos, reflito como ainda não pudemos decidir o que fazer com a alma da mãe de Mel. Klauss e eu concordamos que ela fez coisas ruins e por isso sua alma não será aceita no paraíso, contudo suas ações tinham somente a intenção de cuidar de sua filha, por isso também é errado levá-la ao submundo. Se apenas a soltarmos, ela poderá se corromper e transformar-se em uma anomalia espiritual.

De lá pra cá, tivemos dúvidas do que fazer. Uma parte de mim dizia com todas as forças para apenas soltar essa alma e deixá-la à própria sorte, ou levá-la ao submundo como uma oferenda a um dos juízes, mas sei que essa vontade não é minha. Isso vem do poder do submundo que corre dentro de mim, e a cada dia tento manter sob controle.

Esse poder que por vezes que instiga a querer coisas horríveis que eu sei não serem de mim... Mas fico assustada com o quanto essa vontade me instiga a essas coisas, cada vez mais frequentes.

Às vezes são vontades repentinas, mas todas ruins. Às vezes queimar os desenhos da Mel, derreter a corda do balanço ou incendiar a árvore inteira, outras vezes lançar chamas em torno de Klauss sem motivo algum, ou incendiar nossa casa, e para meu maior pesadelo, fazer algo contra Mel.

Mesmo agora, estou lutando contra o impulso de usar meu poder para fazer algum mal contra Klauss e Mel, ou até mesmo de romper esse pequeno frasco e descobrir se almas são imunes ao fogo.

Isso me assusta, e não me reconheço quando essas vontades surgem em mim. A frieza e desprezo pelas coisas cresce em mim de tal forma que sinto como se fosse alguém completamente diferente, guiada por poderes e vontades além do meu controle.

Nunca contei sobre isso para Klauss. Não saberia como contar sobre essas vontades repentinas que vem surgindo em mim, nem saberia como lidar com as reações de ambos, que tento conter o máximo que posso, para nunca fazer mal algum a Klauss ou a Mel.

E da mesma forma que me preocupo, cada vez mais odeio esse meu lado que insiste ver tudo isso com indiferença e apenas deseja destruir a tudo que me rodeia, me deixando tão dividida como estou.

Uma risada afasta todos esses pensamentos e chama minha atenção. Olho na direção dos dois novamente, e assisto a brincadeira de ambos. Apesar de ainda brincarem no balanço de pneu, Klauss está criando algumas expectativas em Mel, preparando bem para dar o impulso, enquanto que a menina se diverte mais pela preparação do que pelo balanço em si.

Vendo os dois, reflito que já faz quase um mês que Mel está vivendo com a gente. Os primeiros dias foram complicados, pois ela sentia muita saudade de sua mãe e sempre perguntava dela. Hoje em dia ela ainda sente falta, sei disso, mas não fala sobre.

Às vezes a menina fica quietinha rabiscando algo em suas folhas, e vez ou outra já vi ela desenhando algumas imagens dela com uma mulher, e vendo seu olhar nesses momentos, não é difícil saber que ela está desenhando sua mãe e que sente falta dela.

Ainda me culpo demais pelo que fiz. Me sinto péssima por ter retirado a alma de Felícia, mesmo que tenha sido um pedido dela mesma. Mesmo cumprindo minha promessa de cuidar dela, ainda deixei Mel sem uma mãe, e essa angústia me consome todos os dias.

Ouço um ruído repentino do portão de casa, o que chama tanto a minha atenção quanto a de Klauss. Ergo meu corpo e fico sentada na rede quando escuto algumas vozes, mas não consigo identificar quem são.

Fico de pé e caminho descalça para fora da varanda, quando, para minha surpresa, vejo Layla vindo em nossa direção com um olhar de poucos amigos e segurando um tipo estranho de corda que emana parte do brilho de uma graça, e na outra ponta dessa corda, vejo Nick amarrado.

- O que é isso? – Ouço Klauss perguntar ao parar bem ao meu lado com Mel nos braços. Agradeço que ele falou algo, já que eu mesma estou sem reações.

- Eu estava vindo pra cá pra informar vocês da nova operação que iremos fazer contra a Cria do Abismo, e quando cheguei, encontrei esse estranho espiando a casa de vocês! – Layla explica com um semblante endurecido, puxando a corda e, por consequência, Nick também.

- Eu não estava espiando nada sua maluca, só vim visitar alguém que eu conheço! – Nick devolve apertando o olhar.

- Você conhece eles? Como se eu fosse... – Layla olha bem para Nick, quando sua feição muda num estalo – Espera um pouco... Você... Você veio do submundo?!

Nick assente com as sobrancelhas erguidas, quando ele parece perceber a graça presente na corda que rodeia seu corpo, e então percebe a origem de Layla – Você veio do paraíso?!

E lá vamos nós.

- O que você veio fazer na morada de anjos? – Layla esbraveja.

- Já te disse que vim visitar alguém que conheço, mas você não me escuta! – Nick devolve se sacudindo.

- Porque eu não acredito em você! – Ela rebate.

- Então que diferença faz eu tentar te explicar? – Nick diz endireitando sua postura. – E o que você está fazendo aqui?

- Eu sou um anjo, não percebeu? – Layla ergue uma sobrancelha.

- Ah é, você pode vir aqui... – Nick diz baixinho e desviando o olhar de lado.

Solto um longo suspiro enquanto levo a mão a testa, e olhando de soslaio para Klauss, o anjo apenas solta uma risada nasal enquanto tenta apagar um discreto sorriso.

- O que a gente faz com esses dois? – Pergunto a ele.

Klauss me olha de canto, saltando os ombros – Vamos ter que dar um jeito.

Assinto, e olho para Mel, que apenas assiste o debate dos dois sem nem ao menos piscar – Mel, nós precisamos conversar com eles. Você pode ir lá pra dentro só um pouco?

A menina assente, e devagar Klauss a deixa no chão junto a um pequeno carinho no topo da cabeça. Dou um sorriso a Mel, que retribui e segue correndo para dentro de casa.

Ao ver que nossa pequena já entrou, me viro aos outros que permaneceram debatendo, e Klauss já se aproxima deles – Tá legal, já chega vocês dois!

Tanto Layla quanto Nick se calam de imediato e olham para o anjo da lua, em um misto de assustados com certo respeito por ele.

- Layla, pode soltar o Nick. – Digo também, atraindo um olhar confuso dela – Eu o conheço, é um amigo meu.

Ela olha de mim para Klauss algumas vezes, quando por fim abre sua mão e no instante seguinte, a corda se dissipa e Nick fica livre.

- Ufa, obrigado Mika. – Nick arruma suas vestes e se alonga um pouco – Nossa, aquilo estava apertado...

- Era pra apertar mesmo. – Layla diz olhando Nick com desconfiança.

- Nossa, que anjo desagradável... A Mika é bem mais legal que você... – Nick alfineta Layla, que o encara incrédula.

- Como é? Está me chamando de desagradável? Como se atreve?! – Ela esbraveja, ganhando um olhar de canto de Nick.

- O que vocês dois vieram fazer aqui? – Klauss pergunta firme, ganhando tanto a atenção como o silêncio de ambos. – Sem mais discussões, senão coloco os dois pra fora.

- Não sei se posso falar algo na frente dele. – Layla diz com cautela ao voltar seu olhar desconfiado a Nick.

- Não se preocupe Lay'L, o Nick é um amigo da Mika. – Klauss responde, mesmo que eu saiba bem que ele também não confia muito em Nick.

- Pode chamar ela de Layla. – Sussurro para Klauss. – É o nome que ela usa no mundo humano.

Klauss assente e continua – Você veio falar sobre a operação dos anjos, não é?

- Sim, a presença da Cria do Abismo está muito forte e estamos planejando uma nova emboscada. – Layla começa a falar, parecendo tomar cuidado com suas palavras – Mas ao que parece, a Cria do Abismo percebeu que estamos tentando rastreá-lo, e agora está perseguindo os anjos.

- Você veio nos pedir ajuda para emboscar a Cria do Abismo? – Klauss questiona.

- Foi um pedido do senhor Ion'Alia. Ele disse que você poderia nos ajudar. – Layla diz um pouco nervosa, talvez acuada por falar com Klauss.

Lembro-me do que conversamos no parque aquele dia, e para ela e os demais anjos da legião, Klauss pode ser considerado um tipo de lenda viva, que eles nunca viram e não sabem dizer se é real ou não. Estar diante dele pode causar certo nervosismo.

- Entendo, mas desculpe-me Layla. Não é uma missão que me diz respeito, é algo que seu esquadrão deve lidar. – Klauss responde cruzando seus braços. Ele volta seu olhar para a casa, e então retorna a ela – Tenho outras coisas que preciso cuidar agora.

- Eu entendo, a filha de vocês. – Layla diz assentindo, e não consigo disfarçar que essas palavras mexem um pouco comigo – Na verdade, já esperava que me diriam isso.

Volto minha atenção para Nick, que me olha espantado. Ele aponta um dedo para a casa e continua me olhando – Você tem uma filha?! – Ele pergunta num sussurro, ficando boquiaberto, e um pouco sem jeito por ainda estar baqueada, confirmo a ele.

- Mas... – Layla diz com cuidado – Se capturarmos ele, não estaremos deixando a cidade livre de um problema? A Mel ficaria segura, não é?

- Não temos com quem deixá-la. – Digo, atraindo o olhar de ambos – E de jeito nenhum quero deixar a Mel sozinha por mais uma vez.

Mas não posso negar que, se conseguirem capturar a Cria do Abismo, então a cidade ficará muito mais segura, e além disso, todos esses anjos e os demônios que estão na cidade hoje irão embora em pouco tempo, e poderemos respirar com mais tranquilidade.

Percebo que Klauss me observa, e imagino que ele já deve ter entendido o que passa em meus pensamentos.

- Ah, eu fiquei sabendo de uma coisa importante e vim avisar vocês. – Nick se adianta, e percebo Layla o encarando com os olhos apertados – É sobre a operação do grupo do Stefan.

- Do Stefan? – Pergunto a contragosto – O que houve?

- Parece que até agora eles enviaram poucas notícias da operação que estão cuidando, isso está deixando os três juízes impacientes, e também vi a Diana, mas... – Nick para de falar e baixa seu olhar por um momento.

- Mas? – Pergunto com uma sobrancelha erguida.

- Ela não é mais quem a gente conheceu, a Diana tá muito mudada. – Nick responde com um certo pesar. – Acho que a convivência com o Stefan mexeu muito com ela.

- Espera um pouco, você disse Stefan? – Layla intervêm, se aproximando de Nick e, o segurando pelo ombro, o vira para si bruscamente – Conhece esse maldito Stefan? É amigo dele?!

- Infelizmente conheço, mas nem em sonho seria amigo dele. – Nick responde, olhando para a mão de Layla com uma sobrancelha erguida. Somente então Layla percebe e recua um passo, retirando sua mão de Nick – Ele está aqui para cumprir uma tarefa envolvendo a coisa do Abismo que vocês estão falando.

- Teve problemas com Stefan? – Pergunto apertando o olhar.

- Eu não, mas alguns anjos foram emboscados por ele e seu bando e fugiam quando nos aproximávamos. – Layla diz com revolta – São covardes que só atacam em grupo.

- Adoraria dizer onde ele está, mas cheguei a pouco tempo. Não faço ideia do que está acontecendo nessa cidade. – Responde pensativo – Só vim avisar a Mika e o Klauss do que está acontecendo, e pedir para tomarem cuidado. Talvez as coisas piorem muito.

- Obrigada Nick, você é um ótimo amigo. – Digo e Nick da um sorriso sem jeito, sacudindo um braço como se dissesse para parar com os elogios.

- Então, devo dizer ao Ion'Alia que vocês não irão? – Layla questiona.

- Acho que ele quer mais a presença do Klauss do que a minha. – Digo cruzando os braços.

- E não temos com quem deixar a Mel, não deixaremos ela sozinha. – Klauss reforça, olhando fixamente para Layla – Sinto muito Layla, não podemos ajudar.

- Eu entendo... – Ela responde, ficando visivelmente um pouco frustrada, mas assentindo sem demora.

- Ah, Mel é a filha de vocês, não é? – Nick pergunta olhando para mim e Klauss – Se quiserem, posso ficar com ela para que vocês possam ajudar os outros anjos.

Até que gosto da ideia e me pego pensativa em aceitar, quando escuto Klauss e Layla respondendo um sonoro "O que?!" para Nick, o que me faz despertar dos meus pensamentos.

- Deixar a pequena Mel com alguém como você? – Layla questiona incrédula.

- Ué, e qual o problema? – Nick pergunta erguendo as mãos em defesa.

- Qual o problema? Como você ousa?! – Layla responde ainda mais incomodada, e ela parece prestes a voar em Nick e prendê-lo outra vez.

- A ideia não é ruim... – Digo, ficando ao lado de Nick.

- Viu?! A Mika concorda comigo! – Nick responde em uma clara provocação a Layla.

- Você acha uma boa ideia Mika? – Klauss questiona com os olhos apertados. – O Nick é...

- Sabemos o que o Nick é e de onde ele veio, mas ele foi meu primeiro amigo no submundo, e ele não é como os outros, você lembra? – Digo para Klauss, que fica um pouco pensativo, passando seus olhos pelo chão por um momento – Eu confio nele.

O anjo ergue seu olhar de volta para Nick, e cruzando os braços, ele caminha devagar até o rapaz, e a diferença de tamanho e postura entre eles me faz enxergar como se Klauss fosse uma gigantesca muralha e Nick uma pequena criança que não tem ideia do que fazer frente a algo tão imenso.

- Sei que você e Mika são amigos, mas ainda não confio completamente em você Nick. Por isso, não vou deixar você sozinho com a Mel, a menos que... – Dito isso, o anjo vira seu olhar para Layla, que pelo visto, foi pega de surpresa.

- Espera Klauss, você não está pensando em... – O anjo da lua confirma com a cabeça, erguendo uma sobrancelha – Ah não! Não, de jeito nenhum! Quer que eu fique com ele?!

- É a única forma de eu poder ir e ajudar vocês. – Klauss insiste – E você não quer deixar a Mel sozinha com ele, não é?

- Espera aí Klauss. Você quer que eu fique sozinho com ela?! – Nick pergunta, olhando para Layla e logo desviando novamente, já que ela fez uma careta.

- Alguma objeção? – Klauss questiona.

- Claro, ela me dá medo! – Nick responde aflito – Ela vai querer me amarrar de novo!

- Olha que ótima ideia. – Layla dá um sorriso maldoso.

- O que?! Isso não é uma ótima ideia, é uma péssima ideia! – Nick sacode as mãos – Vocês tem certeza que ela é um anjo mesmo?

Klauss até tenta, mas não consegue mais segurar seu riso, já eu, nem tentei segurar, pois me divirto muito com essa situação – Sim, tenho plena certeza de que ela é um anjo.

- Vocês anjos são assustadores, porque não são legais igual a Mika? – Nick pergunta em desespero.

- Não precisa ficar assim Nick, vai ficar tudo bem e será por pouco tempo. – Tento tranquilizá-lo como consigo.

- É Nick, será por pouco tempo. – Layla diz com seu olhar apertado – Mas suficiente para conversar bastante.

- Nada de assustar o Nick. Ele é um bom amigo meu e quero que ele me visite mais vezes. – Digo rindo, e Layla revira os olhos e assente com uma careta.

- Tudo bem, eu não vou exagerar. – Layla diz.

- E cuidem bem da Mel. Se nós descobrirmos que vocês ficaram brigando e não cuidaram bem dela, nós quatro teremos uma longa conversa. – Digo com firmeza, de forma que Layla e Nick se calam.

- Vocês dois estão avisados, então cuidem bem da Mel. – Klauss reforça, e nessa hora tanto Layla quanto Nick endireitam a postura e assentem nervosamente. Queria saber como ele consegue fazer isso – Muito bem. Tem algumas coisas na geladeira, podem usar a cozinha para preparar algo. A Mel gosta de desenhar, se ela quiser, tem folhas, lápis, giz de cera e canetinhas no armário da sala.

Nick vai repetindo tudo aos sussurros, contando tudo nos dedos, enquanto Layla o observa com uma sobrancelha erguida – Certo, decorei tudo Klauss.

O anjo assente, enquanto volto minha atenção a Layla – Onde nós devemos ir para encontrar os outros anjos?

- Vocês precisam ir para a região mais ao norte, estamos reunidos em um casarão bem antigo, acho que não mora ninguém lá a bastante tempo. – Layla diz pensativa.

- Um casarão abandonado. – Klauss olha para mim – Estão no quarto distrito, somente lá tem casarões abandonados. Poderemos saber onde os anjos estão sentindo a graça deles.

- Então, vamos para lá. Pegou a chave do carro? – Pergunto curiosa. Klauss nega e segue para casa em passos não muito apressados, logo sumindo da minha vista. Volto a olhar aos dois, apertando meu olhar – Vocês dois, se comportem. Nada de brigas.

- Eu irei tentar. – Layla diz olhando Nick de soslaio.

- Nick? – Insisto olhando a ele.

- Também irei tentar. – Diz, desviando seu olhar ao lado.

Após alguns poucos minutos, Klauss retorna até nos. Ele leva uma mão ao bolso da calça e ergue a chave de seu carro – Podemos ir então.

- Nós voltamos em breve. – Klauss diz e, ao trocarem um rápido olhar, os dois seguem para casa. – Acha que é uma boa ideia deixar a Mel com eles?

- Estou achando que será a Mel quem vai cuidar desses dois. – Respondo e trocamos uma curta risada – Acho que eles vão ficar bem.

- Espero por isso. – Klauss responde e seguimos ao carro – Conversei com a Mel, disse a ela que iremos sair, e que Nick e Layla ficarão com ela até voltarmos.

- Ela aceitou bem? – Pergunto, parando ao lado do carro.

- Sim, mas me pediu para prometer voltar logo. – O anjo assente com as sobrancelhas erguidas – Eu prometi.

- Então, vamos resolver tudo rápido, e cumprir essa promessa. – Digo já entrando no carro, seguida por Klauss.

O anjo da a partida em seu carro, e sem demora, partimos em direção ao quarto distrito, para quem sabe, finalmente colocar um ponto final na busca pela Cria do Abismo, e não nego que parte de mim está muito animada com essa possibilidade.

*****

Klauss dirige bem devagar em meio às ruas desertas do quarto distrito. Não deixo de notar como tudo aqui é bem diferente dos demais distritos, desde as casas com uma estrutura muito mais antiga, desgastadas pelo tempo e longos anos de abandono, até as ruas feitas de estranhos quadrados que nunca vi antes.

Além disso, tudo está muito parado, a ponto de não ter visto movimentação alguma desde que chegamos a esse distrito. Sei que já está entardecendo, mesmo assim, foram poucas casas que vi com alguma iluminação.

Apesar de tudo estar muito quieto, é possível sentir como o ambiente está diferente do restante da cidade, do mesmo jeito que foi no terceiro distrito, esse lugar tem uma energia muito forte. Sei que isso é por causa da presença do grupo de anjos próximos, da pra sentir a presença da graça deles, e provável que é isso que Klauss está usando para se guiar neste lugar.

Apoio o braço na porta, e o rosto na mão, enquanto que meus pensamentos se agitam pelo que ouvi mais cedo.

Por todo esse tempo tentei não pensar nisso, mas bem ao longe conseguia ouvir isso em meus pensamentos, meu coração se abalou com esse pensamento. A relação que Layla e Nick enxergaram entre nós dois e Mel.

Mel ser a nossa filha? Isso... Isso é impossível, é uma loucura pensar nisso, não posso ser a mãe dela. Como poderia?

Não teria como estar no lugar da Felícia. Fui eu quem levou a vida da mãe da Mel, e agora carrega sua alma de um lado ao outro, sem saber qual destino dar a ela. Como poderia me atrever a ser a mãe daquela criança?

Eu... Eu jamais poderia fazer algo assim. Não posso ser a mãe da Mel.

- Você está quieta Mika. – Klauss diz de repente, a respondo assentindo com a cabeça. – Está nervosa em encontrar outros anjos? Ou em lidar com a Cria do Abismo?

- Não, é uma outra coisa. – Digo com um suspiro, me encostando no banco e olhando ao anjo, que continua concentrado na direção – O que nós somos da Mel?

- Como? – Ele pergunta, e mesmo soando tão calmo, sei que foi uma pergunta confusa.

- O que a Layla e o Nick disseram hoje, sobre a Mel ser nossa filha... – Digo com cautela, sem saber o que ele irá me dizer ou como vai reagir. – Talvez eu esteja me preocupando com algo bobo... Mas isso ficou na minha cabeça...

O anjo não me responde, mas vejo seu dedo batendo no volante algumas vezes e um ar reflexivo surgindo em seu olhar. Um semblante de dúvida, e em seu silêncio, sei que procura por algo a dizer para mim.

- O que nós somos da Mel? O que eu sou dela? – Pergunto mais a mim mesma do que para Klauss. Antes não pensei nisso, mas desde que Layla mencionou sobre Mel ser minha filha, isso ficou na minha cabeça.

Um casarão não muito longe de onde estamos chama nossa atenção, pela iluminação presente em seu interior. Um lugar aparentemente abandonado, mas ainda em uso, deve ser ali onde os anjos estão reunidos.

- Nós conversaremos sobre isso mais tarde Mika. – Klauss diz, ao entrar na casa devagar, correndo seus olhos de um lado ao outro – Vamos resolver tudo por aqui primeiro.

- Tudo bem, estou de acordo. – Respondo pensativa, quando o carro para. Será que Klauss já pensou a respeito disso?

Deixamos o carro, não deixando de notar toda a energia presente neste lugar, e também, toda a estrutura presente.

O casarão é imenso e sua aparência desgastada mostra o quão antigo é. Sua pintura, que antes deveria ser de uma cor suave, agora está coberta por várias manchas escuras causadas pela falta de cuidado ao longo do tempo, e em partes vejo rachaduras e partes da tinta está descascada.

As janelas de madeira estão desgastadas e sua madeira está com pedaços de soltando de tão seca, sendo visivelmente seca e parecendo que irá se partir se alguém tentar forçar para abri-la. Através dos vidros tomados pela sujeira, com muita dificuldade enxergo seu interior, tendo cortinas velhas e um pouco rasgadas, além de alguns móveis igualmente antigos.

Corro meu olhar ao redor, notando a vegetação que tomou tudo de forma descontrolada, tornando o que antes deveria ser um belo jardim com arcos e vasos muito bem cuidados, um local macabro com plantas muito altas, restos de vasos quebrados tomados pelo musgo, e pedaços de ferro cobertos por ferrugem. Ouço os sons de animais por dentro de toda a vegetação alta, e além disso, é possível enxergar alguns insetos grandes e escuro de finas patas sobre estranhas linhas moldadas em um curioso padrão.

Tons cinzentos espalham ao redor, o vento frio deste lugar abraça meu corpo e seu assobio se vê presente, instigando uma sensação de abandono e melancolia imensa em mim, sendo completamente desconfortável. Mesmo me concentrando muito, não consigo ouvir vozes ou quaisquer coisas próximas. Nada além do som dos insetos e o vento neste lugar abandonado a tantos anos.

É um lugar solitário e abandonado, o que torna esse lugar muito triste.

Klauss não parece incomodado com isso. Seu semblante não se abala, e firmemente ele caminha até a porta do casarão, que agora que vejo melhor, está apenas encostada.

- Eles estão aí? – Digo correndo meus olhos ao redor por algumas vezes.

- Sim, estão todos reunidos aqui. – Ele empurra a porta devagar, e percebo como ele aperta seus olhos – Eles não ergueram uma barreira de proteção, nem estão montando guarda no portão. O que está havendo?

Klauss entra primeiro, e caminho logo atrás dele em passos cuidadosos, tentando não fazer barulhos. Mas se estamos aqui para ajudar os anjos, então por que estou tentando ser discreta?

- Ion'Alia? – Klauss chama, correndo seu olhar de um lado ao outro.

- Ka'Su? – Ouvimos do andar superior, seguido de alguns passos apressado, e trocamos um olhar. – Estou descendo.

Escuto os passos próximos e, de um corredor, o anjo surge com um semblante leve, que endurece no exato momento que me vê acompanhando Klauss.

- Recebemos o pedido que mandou através de Layla. – Klauss se pronuncia antes que o anjo possa dizer algo – Decidimos vir ajudar.

O anjo aperta seus olhos para mim – Ka'Su, podemos falar por um momento?

Klauss e eu trocamos um olhar, já tendo noção de qual seja o assunto que o anjo queira tratar. Apesar disso, assinto levemente para ele, a forma de dizer que está tudo bem.

Ambos os anjos caminham até uma outra sala, e enquanto passo meus olhos pelo cômodo, refletindo onde os demais anjos do esquadrão devem estar, consigo ouvir que começaram a conversar, e passo a prestar atenção no que falam.

- Realmente não sabe qual seja meu questionamento? – Ouço Ion'Alia reclamar – O que ela faz aqui?

- Mika está aqui pela mesma razão que eu, prestar auxílio ao esquadrão na captura da Cria do Abismo conhecida como "Cara do Casaco". – Klauss responde em mesmo tom.

- Ela não devia estar aqui. – Ion'Alia rebate de imediato – Sabe muito bem disso Ka'Su.

- Diga-me o porquê. – Klauss responde.

- Esse é um assunto que pertence aos anjos do paraíso, e ela não é uma de nós. – Ion'Alia retruca sem demora. – E mesmo que fosse, Mi'Ka não tem treinamento e experiência de combate.

- Eu sei que Mika pode e vai nos ajudar muito, mas se ainda assim não confia nela como eu, confie na minha decisão. – Klauss rebate.

- Espero que saiba o que está fazendo Ka'Su. Ela não me parece ser de confiança. – Ion'Alia diz em um suspiro, e por um segundo sinto meu sangue ferver em irritação com Ion'Alia. O que mudou? Por que ele desconfia tanto de mim? – Onde Lay'L está? Ela não veio com vocês?

- Layla ficou em casa, cuidando da Mel. – Digo ao entrar impulsivamente na sala onde os dois anjos se encontram, e paro ao lado de Klauss, que está de braços cruzados – Foi nossa condição para vir.

- Mel? Você diz...? – Ion'Alia nos observa.

- Sim, a criança que Mika e eu adotamos. – Klauss responde. – Não tínhamos com quem deixar nossa pequena, então, pedimos para Layla cuidar dela enquanto estivéssemos fora.

Essas palavras de Klauss ecoam na minha mente, e volto minutos atrás em nossa conversa sobre Mel, e o pensamento de ser a mãe dela retorna. Por mais que parte desse pensamento até me cause certo agrado, me sinto muito mais assombrada por ele, por saber que não sou a mãe dela, que a culpa é minha e eu estaria tentando tomar o lugar da mãe daquela criança.

Eu não posso fazer isso comigo. Não posso fazer isso com Mel. É crueldade demais tomar o lugar de sua mãe, sendo que é minha culpa que ela não esteja mais viva, e confinada em um frasco que carrego comigo.

- Jamais imaginei que você adotaria uma criança humana Ka'Su. – Ion'Alia diz num tom pensativo, que também me pareceu ter certa estranheza.

- Eu também não, mas as coisas mudam, e nós mudamos com elas. – Klauss responde, observando ao redor – Está tudo muito quieto. Onde estão os outros anjos? Sinto a graça deles, mas não suas presenças.

- Devido a nossa estadia prolongada, a graça de todos está concentrada neste local, mas neste momento, cada anjo está na cidade, retornando a nossa base. – O anjo explica reflexivo, e com bastante expectativa – Ele foi localizado, e estão atraindo até aqui... No momento em que a Cria do Abismo foi localizada, o anjo que o localizou nos alertou para nos reunirmos imediatamente. Nesse momento todos estão retornando a este local, pois será aqui que iremos emboscá-lo.

- É um plano arriscado. – Digo fitando os anjos.

- É o melhor que temos. O anjo que o localizou está ganhando tempo para nos reunirmos e ao anoitecer irá atraí-lo até aqui. E então, iremos neutralizar a Cria do Abismo de maneira rápida, e levá-lo ao paraíso para ser estudado pelos arcanjos da Alta Esfera. – Responde confiante, com um sorriso de canto de boca – Tudo que precisamos é atrair ele até aqui.

- Então, não temos escolha além de esperar a cria do Abismo aparecer. – Digo pensativa.

- Devemos preparar o local para que o ataque seja eficaz. – Klauss diz de repente, dando um passo à frente – O posicionamento será essencial. Já tem definido qual o local de ação?

- O jardim dos fundos. – Ion'Alia diz, fitando os fundos da casa – Lá existem locais onde os anjos poderão se ocultar, e atraindo a Cria para lá, selaremos seus movimentos e teremos ângulo de ataque completo.

- Quais os preparativos? Devemos demarcar uma esfera de contenção? – Klauss pergunta, e nesse momento os dois anjos começam a caminhar aos fundos da casa, e por um instante me sinto ignorada por eles, não que isso me incomode, minha cabeça está preocupada com outra coisa.

Sigo para fora da casa, e parando frente a porta, sento-me no chão e decido apenas aguardar. Nesse momento, não acho que tenha algo que eu possa fazer pra ajudar, e sinceramente, acredito que Ion'Alia não aceitaria qualquer ajuda minha. Acredito que ele apenas esteja fazendo vista grossa porque Klauss também está aqui. Se não estivesse, acho até que já teria sido expulsa por ele.

O tempo vai passando lentamente. Ouço os sons nos fundos da casa, indicando que eles já iniciaram os preparativos para a chegada do Cara do Casaco. É um ruído alto, o bastante para que quaisquer pessoas próximas consigam ouvir, e a claridade vinda dos fundos é tão grande que poderia chamar a atenção de humanos próximos. Se estão fazendo de forma tão indiscreta, de forma que nem mesmo existe uma barreira por aqui, é porque não devem haver humanos vivendo nas proximidades.

Procuro me distrair enquanto olho para o céu, desfrutando do vento sereno, e imaginando sozinha quantas coisas ainda devem existir nesse mundo. Ele é tão grande, e ainda tem tantas coisas que não vi, tantas coisas que não sei...

Depois que tudo isso acabar, quero perguntar a Klauss se ele quer sair para conhecer mais coisas, além da cidade e dos distritos.

O que deve haver nas outras cidades? Será que tem livrarias tão grandes quanto a que existe aqui? E os mercados, será que são tão grandes e com tantas coisas? Com barracas grandes para poder se esconder?

Mesmo que seja um mercado maior, ainda acho que prefiro o mercado daqui. É perto de casa, e não precisaria de uma viagem tão longa para chegar lá.

Mas o que quero fazer é aquilo que Klauss me disse, de pegar uma daquelas barracas e ir se conectar com a natureza... Como isso se chamava mesmo... Acho que acampar. Fico curiosa pensando como deve ser isso.

Mas e os parques? Será que tem lugares parecidos com a praça dos Ipês em outras cidades? Ou apenas outros parques grandes, com seus próprios músicos muito bons? Eu gostaria de ouvir outros músicos também.

Eu adoraria andar nos tais ônibus que vejo passando pela cidade, em seus trajetos que nunca sei quais são. Gostaria de andar em um desses e saber qual a sensação, e tem alguns bem diferentes também, Klauss me falou que eles vem de outras cidades, algumas muito longe daqui, e muito maiores.

Quero conhecer essas cidades alguma hora. Elas são grandes, então deve ter muitas coisas para ver, será que tem comidas diferentes nessas cidades?

De repente um brilho vindo do alto chama minha atenção, e quando vejo, uma figura de vestes brancas bem folgadas como se fossem roupas de lençóis, está sobrevoando a casa com um reluzente par de asas bem abertas no céu, aparentemente alheio a minha presença, já que ele pousa nos fundos da casa, onde Klauss e Ion'Alia estão. Alheio, ou indiferente a minha presença.

Até penso em me levantar, mas decido permanecer onde estou, sem interromper a ação dos anjos.

Nesse curto instante penso em Mel, e como ela deve estar em casa. O que será que ela está fazendo agora?

O que eu faço? Minha mente continua trazendo o mesmo pensamento para mim. Klauss já parece ter aceitado a tanto tempo, mas eu... Eu simplesmente não consigo, toda vez que penso a respeito, penso no que fiz e que sou a culpada de tudo.

Eu quero adotar Mel. Quero abraçar esse pensamento e dizer sem medo que ela é minha filha, é uma das coisas que mais quero, mas... Eu não posso fazer isso. Não posso tomar o lugar da Felícia, é errado, cruel e injusto, tomar o lugar de quem antes tomei a vida. Eu não consigo fazer isso, não consigo ser tão egoísta.

O que eu faço?

Começo a me perguntar também se Layla e Nick estão cuidando bem da Mel. Espero que sim, e que não estejam brigando tanto um com o outro... Mas se deram uma única brecha para que minha pequena começasse a falar, é certo que eles não terão tempo para brigar.

O tempo passa e conforme anoitece aos poucos, mais anjos vão chegando e entrando na casa. Vou contando cada um dos anjos que chegam, não reconhecendo nenhum deles. Bom, haviam tantos anjos no paraíso, e mesmo tendo vívido lá por tanto tempo não conheci todos os anjos.

E também, passei tanto tempo acorrentada no submundo, que são pouquíssimos anjos a qual ainda recordo como são seus rostos. Não que isso faça alguma diferença agora.

Os insetos cantam com maior entonação nesse momento, ocultados pela vegetação e o véu da noite. Já não é possível enxergar muito bem devido a tamanha escuridão à nossa volta.

As luzes da rua já estão acesas, o casarão já está mais ruidoso com o movimento e conversas dos anjos, mas fora isso, não existe mais movimento algum por aqui. Agora que penso melhor, não me lembro de ter visto carro algum passar por aqui. Parece até que não existem humanos nessa região.

- Mika? – Ouço Klauss chamar logo atrás de mim, e me viro para olhá-lo – Está tudo bem?

Fito rapidamente atrás dele, onde encontro dois anjos me olhando com um misto de curiosidade, mas também grande estranheza, o que com certeza é o que os mantém longe de mim.

- Está sim. – Viro para frente outra vez – Só estou esperando, e pensando um pouco...

Seu olhar âmbar fixa ao meu, como se entendesse o que passa em meus pensamentos nesse instante de uma maneira compreensiva. Ele sempre parece saber o que me aflige, me lendo em cada olhar e decifrando meu silêncio, a modo que nos entendemos sem precisarmos de palavras, e mesmo que não me toque diretamente, sinto-me acolhida pelo anjo da lua.

- Desculpe-me por deixá-la sozinha, Mika. – Ele diz após alguns momentos – Precisei me ausentar para seguir com todos os preparativos necessários para a ação de hoje.

- Não precisa se desculpar, entendo que por estarmos aqui, você tenha obrigações como um anjo da legião... – Dou um sorriso a ele – Não fiquei chateada... Como estão os preparativos?

- Já terminamos tudo. – Klauss se senta ao meu lado – Tudo que nos resta é aguardar a chegada da Cria do Abismo.

- E depois iremos para casa? – Pergunto com alguma expectativa, e o anjo confirma com um pequeno sorriso – Quero voltar logo para casa, já estou com saudades da Mel. Você acha que a Layla e o Nick estão cuidando bem dela?

- Tenho certeza que sim. – Klauss diz e me abraça de lado – E acredito que eles estejam se entendendo.

- Você acha isso? – Não contenho minha surpresa ao ver Klauss responder com um riso nasal – Por que?

- Não senti que aquelas discussões deles foram sérias. Ambos estavam desconfiados um do outro, mas aquilo parecia muito mais com uma troca de provocações do que uma real inimizade. – Klauss me olha e salta os ombros – Talvez estejam curiosos um pelo outro, e acho que só precisam conversar.

- Espero que a Layla dê uma chance, o Nick é legal. Ela vai gostar de conversar com ele. – Digo rindo baixinho.

- Eu concordo, por isso acredito que estejam se entendendo. – Klauss responde de forma leve – Mas agora, devemos nos concentrar em resolver tudo por aqui, e voltar logo para casa.

- Acho que não vai demorar. Está sentindo? – Pergunto erguendo meu olhar ao alto – A presença dele está mais forte, e a pressão cada vez maior. Ele está perto.

- Os anjos estão a postos. Assim que ele chegar, todos iremos agir. – Klauss diz, se levantando e logo após fico de pé também. – Devemos estar preparados.

- Sei disso. – Caminho até o portão em passos curtos – Fico aliviada em saber que logo, tudo vai acabar.

Olho de um lado ao outro, tendo um sentimento muito estranho com essa rua tão deserta. Mesmo com as luzes acesas no alto, tenho o pressentimento que tudo está estranhamente muito escuro.

Alguma coisa não parece certa.

Algo bem ao longe chama minha atenção, uma silhueta de alguém surge no final da rua e vem correndo de forma exausta em nossa direção. Não demoro a notar seu par de asas, o que me surpreende completamente.

- Klauss! – O chamo gesticulando apressada para que ele venha rápido – Veja, ele chegou!

Klauss avança até o meu lado e olha na mesma direção que eu, onde já podemos ouvir a respiração seca e descompassada do anjo, e vendo seu rosto lavado de suor, sei que ele esteve correndo por muito tempo, o que me parece muito estranho, afinal anjos não se cansam facilmente, e também, ele poderia ter vindo voando.

Outra coisa que me chama a atenção, suas asas estão acinzentadas e sem brilho algum, havendo manchas profundamente escuras nelas, da mesma forma que também estão em suas vestes e sua pele, o que faz Klauss e eu trocarmos um olhar preocupado.

- Se acalme. – Klauss pede, enquanto observo o caminho pelo qual o anjo veio não encontrando nada que o tivesse assustado a esse ponto. – O que houve?

- Eu o encontrei... Ele... Ele... – O anjo não consegue falar com clareza.

- Ele? A Cria do Abismo? – Pergunto com cautela.

- Ele tirou a minha graça... – Ele volta a dizer com uma voz trêmula, o que causa bastante espanto em mim – E me seguiu até aqui, ele... Eu... Eu não consegui fazer nada...

- O que está havendo? – Escuto a voz de Ion'Alia, que se aproxima de nós com uma grande interrogação em seu rosto.

- Seu subordinado chegou, mas ele não está bem. – Klauss diz, voltando a atenção para o anjo amedrontado.

Ion'Alia observa as manchas escuras no corpo e asas do anjo com certo espanto, às tocando com muita cautela – O que é isso...?

As luzes da rua começam a oscilar de repente, piscando por repetidas vezes por todos os lados. A pressão de antes se torna insuportável, e mesmo assim parece maior a cada novo segundo. Algo estranho começou a emergir do chão, algo semelhante a uma névoa negra, que rapidamente se eleva em um profundo nevoeiro sombrio, e manchas semelhantes às que existem no corpo do anjo crescem por todos os lados.

Lanço meu olhar na direção em que o anjo veio correndo, quando de repente, a luz do poste estoura, seguida de outra e mais outra, mergulhando todo o caminho na profunda escuridão da noite.

- Ele está aqui... Ele está aqui... – O anjo assustado repete essas palavras por várias vezes, enquanto Ion'Alia, Klauss e eu, olhamos fixamente na direção da rua recém apagada.

E bem ali, emergindo das sombras, a silhueta de uma figura já conhecida por mim surge, caminhando em nossa direção em uma onda esmagadora de poder.

O Cara do Casaco.

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