Capítulo 34

7970 Palavras

Paro frente a porta do último quarto do corredor, o qual nunca entrei e não sei o que tem dentro. Antes de entrar, olho para Klauss, que me lança um aceno positivo com a cabeça, não percebido pela criança entre nós.

Devagar empurro a porta e olho o cômodo escuro que se esconde aqui. Ele tem muitas coisas velhas, sendo uma cama antiga, um guarda-roupas com uma porta solta, uma estante e uma poltrona velha, todos cobertos por panos brancos já desgastados e cobertos pelo pó, além disso, existem e muitas caixas cheias espalhadas em pilhas pelo chão e cama.

Somente entrar nesse quarto já me causa muita vontade de espirrar de tanta poeira acumulada, e até mesmo o ar desse lugar parece muito diferente. Do restante da casa. É um ar carregado e bem antigo, me dando a certeza de que este local não é aberto a muito tempo.

Sem dúvidas, teremos bastante trabalho por aqui.

- E então... – Digo com um suspiro, olhando para o quarto e me sentindo perdida – Por onde começamos?

- Vamos tirar todas essas caixas e levar lá pra fora. – Klauss diz entrando, analisando a tudo com calma – Depois, acho que devemos desmontar esses móveis velhos para trocar por novos.

- Temos bastante coisa pra fazer... – Digo olhando ao redor.

- E como, mas não temos pressa. – Klauss responde, enquanto caminho dentro desse ambiente tão novo para mim. Incrível que já moro nessa casa a algum tempo e sequer havia entrado nesse quarto antes. Várias parei em frente a porta e tive curiosidade de ver o que tinha aqui, mas nunca fiz mais do que espiar alguns segundos.

- Quanta coisa velha... Será que tem alguma coisa útil nessas caixas? – Pergunto olhando o interior de uma delas, encontrando algumas revistas velhas, fios e pedaços de equipamentos que não faço ideia de qual seja a origem.

- Tenho minhas dúvidas Mika. Muitas coisas aqui já estão bem velhas, será difícil encontrarmos algo que ainda tenha utilidade. – Ele me responde, erguendo as mangas de sua camisa e pegando uma primeira pilha de caixas – Mas podemos olhar tudo antes de jogar fora.

- Por que estão mexendo nesse quarto? – Mel pergunta, parada na porta do quarto, com as mãos atrás do corpo, correndo seu olhar curioso pelo ambiente, mas sem se aproximar de nada.

Klauss e eu trocamos um olhar, sabendo que ainda não tocamos nesse assunto com ela. Com isso, chamo Mel para perto com um pequeno gesto, e assim que ela se aproxima, me abaixo ao seu lado – Mel, nós... Precisamos conversar...

Solto um suspiro demorado, escolhendo bem as palavras nesse momento, que não esperava que fosse ser tão complicado como está sendo. Mel me observa com expectativa e curiosidade, e vejo as dúvidas saltando em seu rosto.

- Nós... Você... Vai morar com a gente agora... – Consigo dizer com o máximo de cuidado para não causar espanto nela.

- Vou morar aqui? – Mel pende a cabeça para o lado devagar, e confirmo devagar – Isso ainda é um sonho? Porque eu lembro que dormi em casa, que a mamãe me deixou na cama, e desde que acordei eu estava aqui, eu gosto porque você está aqui Mika... Mas eu estou com saudade de casa e da mamãe...

Aperto a boca e com muito custo sustento meu olhar. Essas palavras me abalam por um momento e não sei o que responder a Mel. Minhas palavras simplesmente desapareceram.

Olho para Klauss em busca de ajuda, e ele se aproxima de nós, deixando as caixas com cuidado no chão e abaixando ao nosso lado – Você ficaria triste se soubesse que não está sonhando?

Mel balança a cabeça negativamente bem devagar, olhando para nós com inocência, mas claramente querendo entender o que está acontecendo.

Seguro as mãos da menina, tentando me dar um tempo para saber o que falar. – Mel, a sua mãe... Ela... Estava bastante doente, e... E ela pediu para nós cuidamos de você daqui em diante. É por isso que você acordou aqui em casa e está com a gente.

A menina nada responde. Ela assente devagar, me olhando de uma maneira estranha, repleta de dúvidas. Dúvidas que não sei se posso, ou se consigo esclarecer.

- Tudo bem morar com a gente Mel? – Klauss pergunta. Novamente a menina concorda com a cabeça – O que acha daqui ser o seu quarto?

- Aqui? – Mel vira seu rosto de um lado ao outro – Não, eu quero continuar dormindo com a Mika. Aqui é sujo, escuro, e tem muita coisa, não quero ficar nesse quarto Klauss, vou ficar com medo de ficar aqui.

Dou uma curta risada, vendo o rostinho emburrado dela – Nunca que irei deixar você ficar em um lugar assim. A gente vai arrumar tudo, e vamos tirar toda a bagunça daqui... E quando arrumarmos tudo, será seu quarto.

Ela aperta seus olhos, nos observando por alguns segundos. Klauss então toca seu ombro de leve, ganhando a atenção da menina – Temos muito a fazer aqui no seu quarto Mel, muita bagunça para tirar. O que acha de nos ajudar a escolher como vamos decorar tudo?

- Eu posso? – Ela pergunta empolgada, com um largo sorriso crescendo em seu rosto – Eu já sei como quero arrumar tudo, aqui é muito escuro e eu não gosto de coisas escuras demais, me dão bastante medo. Então acho que aqui ficará muito bonito com cores bem claras igual é lá em casa. E não acho que todas essas coisas vão ficar legais, é difícil andar aqui, acho que... Eu tive uma ideia, eu posso desenhar como imagino esse quarto e podemos deixar ele igual! Eu desenho muitas coisas, então vou conseguir desenhar como imagino como o quarto vai ficar, tenho muitas ideias.

Me permito rir com o jeito espontâneo e tão desenfreado da Mel. Eu adoro a forma como ela sempre fala e, apesar de muitas vezes se embolar nas palavras por ainda ser tão nova, ela sempre se faz entender muito bem. E também, Mel sempre fala com tanto brilho em seu rosto que me encanto em ouvi-la cada vez mais. Sua energia e animação me contagiam que, sem perceber, já estou sorrindo e repleta de sua animação, que me trazem um sentimento de felicidade único em muitas maneiras.

- Gostei da sua ideia Mel. – Klauss começa a falar – Sabe a estante lá da sala? Tem algumas folhas lá, e alguns lápis também, você pode usar para desenhar suas ideias... Mas vou querer ver cada um dos desenhos depois.

- Eu vou mostrar, vou fazer muitos desenhos e vou mostrar todos, e vou escolher o melhor para o quarto. – Mel diz completamente empolgada, deixando o quarto às pressas antes de falarmos mais algo.

Dou um sorriso para mim mesma, enquanto o anjo ao meu lado torna a se levantar – Obrigada Klauss. Não sei se conseguiria contar sozinha.

- Você não está sozinha. – Ele me responde com um sorriso, pegando as caixas novamente, e sem perceber me encontro perdida olhando para seu sorriso – Vamos, temos muito a fazer.

- Sim, e preciso voltar na casa da Mel para pegar mais roupas. Trouxe poucas quando vim de lá. – Fico de pé, já pegando algumas caixas para tirar do quarto.

- Quando pensa voltar lá? – Klauss pergunta.

- Acho que ainda hoje. – Respondo, parando um instante – E hoje, depois que a Mel dormir, eu irei ao submundo... Não posso deixar de dar notícias a eles...

Klauss assente de leve, com certo pesar em seu rosto – Eu entendo.

- Mas pensamos nisso mais tarde, agora temos muito a fazer. – Digo oferecendo um sorriso leve, para que o anjo não se preocupe.

Ele permanece ali, apenas me olhando. Mesmo depois de tanto tempo que nos conhecemos, e agora que vivemos juntos, o olhar do anjo não mudou em nada. Seu olhar âmbar continua profundo e misterioso, envolto em uma calma envolvente e mística a qual sempre quero mergulhar mais fundo.

Sua figura que, ao mesmo tempo que é firme e quase intocável de tão imponente, também é serena como as águas de um lago e emana um calor acolhedor e muito protetor. Um anjo que cada vez mais me causa muitas reações, me causa sentimentos e me causa pensamentos.

*****

Três semanas depois.

- Vamos Mel! – Chamo a menina, e ouço seus passos apressados no andar de cima. Devagar, a vejo descendo e vindo até mim com um sorriso radiante que sempre me encanta.

- Estou pronta! – Ela responde animada.

Me abaixo a sua frente, ajeitando a blusa em seu corpo, e passando os dedos pelos seus cachos loiros por algumas vezes – Podemos ir então.

- O Klauss não vai no parque com a gente? – Ela me pergunta.

- Ele está cuidando da cidade, mas espero que ele nos encontre lá. – Sorrio para ela, e fico de pé.

Pego a mochila da Mel no sofá, e seguimos para fora de casa, em direção ao meu carro.

Assim que saímos de casa, sinto o vento frio abraçando minha pele, e na hora me encolho dentro da minha blusa. Olho para Mel de soslaio, e ela treme um pouco, jogando o capuz da blusa sobre a cabeça e escondendo as mãos nos bolsos, e com isso corremos para o carro.

Assim que o ligo, deixamos a casa e vou dirigindo rumo a cidade, e nesse momento, minha mente vagueia, mergulhando em pensamentos.

Mel está muito tranquila e acho que até se adaptou bem desde o dia que contamos que ela iria morar conosco. Ela sempre é muito animada e adora fazer várias coisas sem perder o ritmo, e eu adoro acompanhá-la em cada uma de suas brincadeiras, e cada vez mais um grande afeto tem crescido em mim.

Contudo, sempre sinto um aperto no coração quando ela me pergunta sobre sua mãe e diz que está com saudades. Nunca sei o que responder a ela, tudo o que consigo é abraçar Mel, para ao menos tentar confortá-la um pouco que seja. Ela não faz ideia de que a alma de sua mãe ainda está guardada conosco pois Klauss e eu ainda não sabemos o que fazer com ela.

E também, tenho passado bastante tempo em casa, e estou aproveitando este tempo com Mel. Já fazem semanas desde que recebi meu último trabalho, e não sei se isso é por causa da minha falha em levar a alma da Felícia para o submundo. De qualquer maneira, o juiz Aecos não pareceu incomodado quando relatei isso, na verdade ele estava indiferente.

O que o juiz realmente quis saber foi sobre a Cria do Abismo. Ele perguntou se tenho alguma informação por atuar na região que essa tal criatura se encontra atualmente, ou se Stefan e seu grupo me relatou alguma coisa, já que Stefan não notificou o submundo por nenhuma vez desde que foi ao mundo humano. Mas, por não saber de nenhum detalhe e nem saber o paradeiro de Stefan, além de nem gostar dele, neguei de imediato.

Mas, apesar de não saber onde Stefan e seu grupo está, suas ações não são tão desconhecidas para mim.

Essa foi uma coisa que reparei em todos os três juízes no pouco tempo que retornei e precisar ficar no submundo. Tanto Minos quanto Radam também estavam muito interessados sobre a localização da Cria do Abismo, mas não sei nada sobre ele, nunca o vi e nem mesmo sei como ele é.

Tudo o que sei é uma descrição que Klauss fez sobre sua aparência, mas essa criatura é tão misteriosa que nenhum de nós sabe de fato como ele é.

Uma outra coisa que também sei é a maneira como se referem a ele. Quando ainda vivia no submundo, lembro que a senhorita Raika disse que essa criatura é conhecida como "Cara do Casaco", um nome que Klauss desconhecia.

Vendo as proporções que isso tomou, fico me perguntando... O que essa coisa tem de tão incrível, que conseguiu chamar a atenção tanto do Paraíso quanto do Submundo?

Sei que os anjos estão atrás dele e estão cada vez mais perto de capturar ele, pelo que Klauss me contou, nesses últimos dias Ion'Alia e seu esquadrão de anjos até conseguiu emboscar ele, mas a Cria do Abismo conseguiu escapar dos anjos ao mergulhar na escuridão, algo que eu nem sabia ser possível, e desapareceu sem deixar rastros.

De qualquer maneira, seguimos em alerta e tomando cuidado. Ion'Alia nos visitou e disse que, se o virmos, não devemos enfrentá-lo sozinho... Mas quando nos visitou, tive a impressão de que seu aviso foi muito mais para Klauss do que para mim.

Ion'Alia ainda olha para mim e Mel de uma forma muito estranha, e com grande desconfiança. Acho que ele não gosta da gente...

De qualquer maneira, isso não importa. Desde que o ouvi dizer aquelas coisas, entendi que não tem mais qualquer chance de nos entendermos e voltar a ser o que era antes, no tempo em que ele me via como uma amiga, que sentávamos juntos e ele contava várias de suas histórias no mundo humano. Não preciso mais disso, estou vivendo minha própria história.

De canto de olho, percebo Mel entretida com os lugares que passamos. Não tem muitas coisas chamativas para ver no caminho, mas ao que parece isso não importa para Mel, já que ela ainda assim se distraí com as paisagens da rodovia entre a cidade e os distritos.

Dirijo por bons minutos até chegarmos à cidade. O caminho foi feito em variações entre me perder em meus pensamentos, e ouvir Mel desatando a falar sobre algo que achou interessante e que sempre gosto de ouvir. Apesar de tão nova, e se embolar bastante nas palavras, é muito bom ouvir o que ela tem a dizer.

- Chegamos. - Anúncio enquanto paro o carro, comemorando que finalmente consigo estacionar esse Mustang de uma forma suave. – Vamos Mel?

Com a cabeça, Mel assente empolgada e deixamos o carro. A menina vem correndo até mim e, segurando minha mão com bastante firmeza, fazemos nosso caminho até o parque.

Conforme caminhamos, ergo meu olhar ao céu nublado por um instante. Desde cedo, estou com uma sensação muito esquisita, o ar parece mais pesado que o normal, e estou bastante desconfortável.

E agora que chegamos na cidade, essa sensação está ainda mais forte.

Não sei se é só uma impressão minha, mas isso está me incomodando. Algo não parece certo.

Meus instintos gritam que alguma coisa está muito errada nessa cidade, e esse desconforto todo está me deixando muito apreensiva. Não somente isso, essa sensação tão esmagadora me parece até... Familiar... Como se já tivesse sentido isso antes..

- Ah, o parque está fechado. – Ouço Mel choramingar, o que chama minha atenção para si – E agora Mika?

- Não tem problema, posso pensar em outro lugar... – Dou um sorriso amarelo ao olhar o portão do parque de diversões fechado, e quando algo me vem em mente, me abaixo para ficar bem na altura de Mel – Conheço um outro lugar aqui perto, ele não tem brinquedos, mas é muito bonito. Vamos lá ver?

- Sim, ele é muito bonito? – Mel pergunta com um brilho em seu olhar curioso.

- Muito bonito e bem diferente. – Respondo me levantando, segurando a mão de Mel – Vamos, não é longe daqui.

- Sabia que eu já fui nesse parque antes Mika? – Mel começa a falar – Só que quando fui, disseram que eu era muito pequena para ir em vários brinquedos, e só me deixaram entrar em alguns, todos os outros eu só podia ficar olhando... Eu fiquei triste e muito brava por não poder ir, e eu queria tanto. Tinham vários brinquedos que eu queria ir, e naquele dia que vi você e o Klauss, estava pensando em quais brinquedos poderei ir quando for maior... O Klauss é grandão, acho que ele pode andar em todos, eu queria ser grandona também...

- Logo você vai crescer Mel, e vai ficar grande igual o Klaus, e poderá andar em todos os brinquedos. – Digo e ela assente com certa admiração.

- Ele pode ir em todos os brinquedos?! – Pergunta empolgada e confirmo – Eu quero ser grande igual o Klauss e andar em todos os brinquedos do parque, será que vai demorar muito?

- Um pouquinho Mel, mas logo você estará grande, e vai andar em todos os brinquedos com a gente. – Digo e tenho o contagiante sorriso da menina como resposta.

Essa conversa me ajudou a me distrair e ficar um pouco mais leve, e esquecer a sensação que me incomoda, mesmo que ainda permaneça.

E também, já estamos perto da praça. Nunca prestei atenção que as coisas na cidade são bem próximas umas das outras, e as mais distantes estão nos distritos, que na verdade também não são tão longe assim. Antes me pareciam ser tão distantes.

Poucas quadras a frente identifico as folhagens coloridas das árvores que se destacam de tudo que as rodeia. Sem dúvida alguma, a praça dos Ipês é um dos meus lugares favoritos em toda a cidade.

- Já veio aqui Mel? – Pergunto a menina, que boquiaberta, corre seus olhos de um lado ao outro, sem ter um único local para olhar. Ela avança alguns passos, ficando pouco a minha frente, girando seu pequeno corpo algumas vezes, e acho que tenho minha resposta – O que achou daqui?

- É bonito... É tão bonito... – Ela responde.

- Klauss e eu viemos aqui quando nos conhecemos. – Digo com um tom leve ao me lembrar daquele dia que visitamos a praça dos Ipês pela primeira vez. Mel volta sua atenção a mim – Mas eu não podia ficar, e precisei ir embora correndo.

- Vocês vieram aqui só dessa vez, Mika? – Ela pergunta correndo de volta até mim e segurando minha mão.

- Não, voltamos aqui mais vezes. – Respondo rindo, e tornamos a andar – Tem um lago mais à frente que gosto muito, e também tem um músico que sempre fica perto desse lago, e ele toca muito bem... Vamos ver se ele está lá?

Mel assente sorrindo, e caminhamos em uma pequena corrida até o local, alcançando o lago em pouco tempo. Em cada passo que nos aproximamos do lago, vou escutando os toques cada vez mais próximos, e sei que o músico está aqui.

Chegamos na beira do lago, e o vejo parado em seu lugar de sempre, de olhos fechados e entregue a sua música, com algumas várias pessoas paradas ao redor, atentas aos toques que ele cria sem parar em seu violão.

É possível ver um pouco do suor escorrendo pelo seu rosto, sua boca se mexe como se estivesse dizendo algo para si mesmo, e a música continua sem perder seu ritmo nem por um instante.

Gostaria de ir cumprimentá-lo, mas de forma alguma quero atrapalhar seu ritmo. Tenho vontade de somente me sentar em algum lugar perto daqui, e apreciar a música até o momento em que ele terminar e respirar um pouco antes da próxima.

Vou caminhando com Mel até um banco perto do músico para escutar algumas de suas músicas antes de andar um pouco mais – Mi'Ka?

Ouvir isso me causa um calafrio que faz meu corpo paralisar por completo, por saber que os únicos que conhecem esse nome são os anjos... E principalmente, aqueles que me conheciam.

Viro o rosto de uma vez, encontrando alguém que somente vi de relance na casa de Klauss, mas que até então não troquei nenhuma palavra. Lay'L.

Ela me olha com certa surpresa em seu olhar castanho, estando levemente boquiaberta – Mi'Ka, é... É você mesmo?

- Desculpa, mas esse não é meu nome. – Respondo desviando o rosto para o lado – Você deve estar me confundindo com alguém.

- Eu te vi na casa do anjo Ka'Su... E ouvi claramente Ion'Alia falando seu nome. – Ela insiste, e aperto a boca com força, e devagar volto meu olhar para ela. – É você, não é?

Respiro fundo e solto todo o ar em um suspiro, assentindo devagar com a cabeça. Seu olhar para em mim, como se acabasse de ter a confirmação que tanto desejava somente por fitar meu rosto, e com a surpresa tomando seu rosto, decido dizer o que ela quer saber – Sim, sou eu.

A confirmação daquilo que Lay'L já suspeitava a deixa em completo choque. Seus olhos vão ao chão por alguns segundos, e ela claramente está tentando absorver a informação.

- Mas... – Ela tenta se aproximar, mas imediatamente recuo um passo, abraçando Mel e a aproximando bem de mim, em um gesto protetor tão instintivo que eu mesma não esperava realizar, e meu olhar ao anjo endurece, a fazendo parar no lugar. – Nós... Podemos conversar?

Espio Mel por um momento, vendo como ela não parece incomodada com a presença de Lay'L, mas a menina está um pouco acuada. Penso durante alguns segundos, até finalmente tomar uma decisão – Mel, senta ali no banco... – Peço num sussurro.

A menina ergue sua atenção a mim um pouco preocupada, e sentindo como ela me abraça de volta um pouco mais forte, entendo sua preocupação desse momento.

- Não vou te deixar sozinha Mel, eu te prometo isso. – Digo com um sorriso e me abaixo ao seu lado, tocando ambas as mãos em seu rosto – Vou ficar onde você pode me ver.

- Você promete? – Ela pede com a voz baixa, e com um sorriso leve confirmo enquanto brinco com seus cabelos loiros bem ondulados.

- Eu prometo, vai lá. Vou ficar de olho em você. – Digo, e vejo a menina indo até o banco que não é nem um pouco distante de onde estamos, e a vejo se sentando, me olhando fixamente. Imagino serem apenas três passos de distância, mas ainda assim sinto falta da menina que tenho tanto carinho.

Meu sorriso se desmancha aos poucos e me levanto, voltando meu olhar ao anjo, que acompanhou a tudo com um semblante que mistura muitas sensações diferentes.

Olho para a cerca que rodeia o lago da Praça dos Ipês, e faço um sinal com a cabeça para que Lay'L se aproxime, e devagar me encosto na cerca, de modo que eu possa conversar com ela, e ainda assim ficar de olho em Mel.

Lay'L se aproxima e para ao meu lado, e a observando de soslaio, percebo que ela não parou muito perto de mim. Talvez ela desconfie de mim, da mesma forma que Ion'Alia.

Apesar de tanto tempo, percebo que ela não mudou. Lay'L parece ter o mesmo olhar de antes, de quando ainda vivia no paraíso junto deles. Seus traços são os mesmos, os cabelos castanhos estão idênticos a como era naquela época, bastante ondulados caindo em torno do rosto, do mesmo tom de seus olhos.

Não é surpresa que ela permanece igual. Para mim, passaram-se mais de cem anos desde que fui expulsa do paraíso. No mundo humano passou somente um ano, não sei quanto tempo deve ter passado para Lay'L desde que tudo aconteceu.

A única diferença que vejo nela, é que agora, ela veste roupas humanas discretas, sendo uma camisa de botões branca com as mangas enroladas até a altura dos cotovelos, e uma calça de tons azuis tão claros que lembram o branco.

- O que quer falar comigo? Eu estou ocupada agora. – Digo sem demora.

Ela me olha, tendo suas mãos juntas frente ao corpo, e um semblante bastante apreensivo em seu rosto. Noto também muita hesitação dela nesse momento – Você desapareceu de repente... Nunca mais tivemos notícias suas desde seu último trabalho... O que aconteceu?

Reflito um pouco antes de finalmente dar uma resposta, e lembrando tudo que conversei com Klauss, e torcendo a boca, ergo meus ombros levemente – Uma porção de coisas.

- Soube que você interferiu na vida dos humanos, que chegou a revelar ser um anjo, um deles foi uma criança humana... – Lay'L diz cada palavra com cuidado e desvia seu olhar do meu, talvez pela maneira desconfiada a qual a estou encarando. – ...É ela?

Observo Mel sentada no banco, balançando seus pés no ar enquanto olha atentamente ao músico, porém logo em seguida ela volta sua atenção a nós, e percebendo que a estou olhando, Mel acena para mim com um sorriso radiante, a qual respondo acenando de volta e retribuindo com outro sorriso.

- Ela foi a primeira humana que conheci quando vim a esse mundo. Ela estava sozinha naquele dia, sua mãe estava resolvendo algumas coisas e aquela criança não podia estar junto, então fiz companhia a ela. – Explico sem desviar meus olhos de Mel, e minhas lembranças me levam de volta para aquele dia em que minha vida mudou por completo. Apesar de não desviar meu olhar da criança, sei que tenho toda a atenção de Lay'L em mim – Quando precisei retornar para cumprir meu trabalho, sua mãe ainda não havia voltado, e não quis deixa-la sozinha. Naquela hora, me encontrei em um impasse entre ir e permanecer ao lado daquela criança... Ela já estava sozinha quando me encontrou, mas eu estava realmente preocupada com o bem estar dela, e prometi ficar com ela até que sua mãe retornasse... Por isso tomei aquela decisão e a levei comigo para cumprir meu trabalho...

- Foi nesse momento em que você se revelou um anjo para ela? – Lay'L questiona.

Confirmo com a cabeça, sorrindo de leve ao conseguir me lembrar da expressão de encanto que Mel teve naquele dia, quando estava no céu vendo uma aurora tão de perto.

- Então... Foi... Por isso que não retornou ao Paraíso? – Ela questiona baixinho, mais a si mesma do que a mim – Você decidiu ficar no mundo humano?

- Eu retornei ao Paraíso Lay'L... – Digo erguendo meu olhar a ela – Eu retornei...

- Mas se retornou, o que aconteceu? – Ela pergunta sem entender.

Solto uma risada dolorida com as lembranças, com meu olhar caindo ao chão – Eu fui expulsa assim que cheguei... Fui recebida pelos Arcanjos e pelo Grão Mestre, e fui condenada ao Submundo.

A expressão de choque de Lay'L é intensa, e verdadeira. O anjo está boquiaberto com seus olhos fixos em mim, e por mais que tente, nenhuma palavra sai de sua boca.

- Não foi somente isso, também interferi na vida dos humanos... Salvei a vida de alguém que não era para ser salvo. – Ergo bem meu rosto ao céu, fitando as nuvens ao alto e o balançar suave das folhas dos ipês acima de nós – Esse erro me condenou as profundezas do submundo.

O silêncio recai entre nós, e volto minha atenção a Mel. Ela continua atenta ao músico, que nesse momento percebo que parou de tocar. Volto meu olhar a ele, e o jovem músico, que já estava me olhando nesse tempo, me abre um sorriso amigável e lança um cumprimento, a qual retribuo sem demora.

- Eu não sabia... – Ouço Lay'L dizer, rompendo o silêncio eu havia entre nós – Só escutei boatos, mas nunca soube o que havia acontecido... Nunca nos contavam nada.

- E vocês perguntavam? – Questiono, sem realmente fazer questão de ter uma resposta.

- Sim, várias vezes busquei respostas... Busquei com Ion'Alia que sempre vinha ao mundo humano, busquei com os arcanjos, mas ninguém nunca me disse nada... Diziam que seu paradeiro era desconhecido a eles. – Ela responde, e essas palavras me deixam pensativa – E ninguém nunca falou nada sobre o que aconteceu depois daquele trabalho, somente que você havia desaparecido.

- Então, os arcanjos da alta esfera decidiram ocultar o que aconteceu comigo... – Chegar a essa conclusão não me surpreende por completo, já que uma vez Klauss me contou que os arcanjos decidem manter certos incidentes em segredo dos demais anjos, especialmente aqueles que envolvem a legião, supostamente para protegê-los e não causar pânico.

- Nunca soubemos mais que isso... Do incidente da criança, e a interferência nas vidas humanas, isso foi o que nos contaram, mas nada do que houve depois. – Ela diz com pesar – Houveram especulações sobre seu desaparecimento, mas não que havia sido condenada ao submundo... Isso... Isso é impensável... Você no submundo? Por que?

- Essa é a consequência de interferir na vida humana, e na ordem natural das coisas. – Digo deixando escapar um suspiro – Essa é a punição dos meus atos imprudentes...

Lay'L ainda parece tentar absorver tudo que estou falando, em um estado de choque – Isso é assustador... Você... Se arrepende do que fez?

Assinto devagar, sem nem ao menos pensar duas vezes, e olho para o anjo ao meu lado – Sim, em cada dia dos cem anos que passei acorrentada no submundo, e ainda hoje, eu me arrependo de tudo que fiz... Se tivesse outra chance, eu faria diferente... Jamais tomaria as mesmas decisões que tive naquele dia, seguiria outro caminho...

Percebo que Lay'L não responde. Ela me observa de volta, sem esboçar reação além da surpresa de tudo que contei. Nesse curto momento, tudo que ela faz é retornar seu olhar a Mel, e acabo fazendo o mesmo, assistindo a menina brincando animada com uma folha e conversando com um menino tímido que sentou do outro lado do banco a pouco tempo e já é alvo da animação e falas desenfreadas da pequena Mel.

- Então... – Volto a falar, rompendo o silêncio – Você conseguiu ingressar na legião... Meus parabéns Lay'L.

- Obrigada, consegui a pouco tempo. – Ela diz com um sorriso discreto – Não foi fácil conseguir ingressar na legião, mas é o caminho que escolhi.

- Achei que Ion'Alia iria te instruir, por já estar na legião a mais tempo. – Digo, curiosa para saber mais sobre os dois.

- Pelo contrário, ele tentou me convencer a seguir outro caminho até o dia que fui expor minha decisão de ser um anjo da legião. – Ela diz com um riso, e deixo escapar um sorriso – Ion'Alia sempre repetiu que ser um membro da legião é perigoso demais, mas ele também se expõe a perigos para preservar o paraíso.

- Ele sempre se preocupou muito com seu bem estar. – Sussurro ao me lembrar vagamente daquela época – Desde seu nascimento.

- Sei disso, ele diz que os membros da legião se expõe a muitas coisas, muitas delas são horríveis, e não gostaria que eu ficasse exposta a isso. – Ela sorri, e assente devagar com a cabeça – Mas era minha decisão, e segui na legião... A partir daí, ele me apoiou sempre.

- E como se sente, agora que pertence à legião? – Pergunto curiosa.

- Me sinto bem, nunca imaginei que haviam tantas coisas entre eles. – Responde num tom leve, e fico levemente intrigada com isso – Acreditava serem somente trabalhos no mundo humano, proteger pessoas, travar batalhas... Mas não, tem tantas outras coisas mais amplas, também atuamos como guardiões de únicos humanos, grupos ou de regiões, atuamos para impedir grandes catástrofes no mundo humano, impedimos que anomalias surjam no mundo...

- Anomalias? – Aperto os olhos.

- É, humanos chamam de fantasmas, lobisomens, feiticeiros, invocadores, aparições, possessões... – Ela vai contando, tentando se lembrar – Para nós, são consideradas anomalias que perturbam o equilíbrio... E também temos os anjos que previnem o despertar de feras sagradas e bestas demoníacas, que são criaturas que foram seladas a muito tempo e sempre mantemos o cuidado de mantê-las adormecidas... Especialmente de um lugar chamado "Zona Dimensional Morta", mas ainda não sei nada sobre esse local.

- Está gostando muito, não é? – Digo ao ver o largo sorriso do anjo, enquanto conta cada detalhe sobre a legião.

- Estou, é sempre uma coisa nova. – Ela me olha de lado – Inclusive, o Ka'Su é muito conhecido na legião. Enquanto estava nos meus primeiros dias de estudo, ouvi muito a respeito dele. Os membros antigos o respeitam muito e os mais novos tem ele como um exemplo.

- Klauss nunca contou muito sobre ele, ou suas experiências como membro da legião. – Digo reflexiva – Você ouviu muito sobre ele?

- Sim, Ka'Su, o temido e impiedoso anjo da lua. Capaz de fazer frente a oponentes formidáveis estando sozinho e sem se abalar, como da vez que ele conteve um dos juízes do submundo para que membros da legião pudessem escapar de uma emboscada, ele é um exemplo de poder do Paraíso. Por todos os feitos que ele tem, dizem que ele é um dos pouquíssimos anjos que se aproxima do poder e da graça dos Arcanjos. – Lay'L diz com um ar de admiração, algo que não me incomoda, mas me faz erguer uma sobrancelha. Ela recitou tudo isso parecendo até com palavras decoradas, mas ainda assim fico reflexiva de que ela sabe mais sobre Klauss do que eu, e também sobre o porquê Lay'L falar sobre ele. – Ele é muito conhecido por todos na legião, mas muitos acham que ele não existe por retornar poucas vezes ao Paraíso. Foi uma surpresa quando o vi pessoalmente na primeira vez, e ainda fico bem nervosa para falar com ele.

- Estou vendo que ele é mesmo bem conhecido por todos. – Digo ao mesmo tempo que forço minha memória para tentar me lembrar se já ouvi algo a respeito de Klauss enquanto ainda vivia no paraíso – Até falam sobre ele nas instruções da legião.

- Demais, e foi uma surpresa ver ele em pessoa. Ele e Ion'Alia eram membros de um mesmo grupo, e eles eram responsáveis por cumprir trabalhos que mais ninguém no paraíso conseguiria fazer. – Ela assume um ar pensativo de repente – Ouvi boatos de que havia um terceiro anjo no grupo, mas Ion'Alia nunca me contou sobre esse anjo.... Ele também nunca contou quem é, ou se esse anjo existiu, na verdade, ele sempre evita esse assunto.

Paro por um momento, pensando a respeito, quando por fim salto os ombros – Isso deve ser um segredo deles. Os anjos da legião costumam manter segredos, não é?

- É, isso é verdade... – Lay'L dá um meio sorriso, e somente agora percebo que minhas palavras soaram um pouco acusatórias.

- Mas, acredito que alguns segredos sejam necessários... – Desconverso, a fim de não estragar uma conversa que, até então, está sendo muito boa. Neste momento, algo me vem em mente, e sei que preciso perguntar – E seu trabalho nessa cidade... Como está indo?

- Ah, você diz... Sobre a Cria do Abismo? – Ela me olha com as sobrancelhas erguidas, e confirmo com a cabeça – Nós... Fomos instruídos a não falar sobre isso, mas...

- Mas? – Questiono erguendo uma sobrancelha.

- Logo quando recebemos nosso trabalho, Ion'Alia e os demais anjos concordaram em falar a respeito para o Ka'Su, talvez para conseguir a ajuda dele nas buscas. – Ela diz pensativa, e então olha para mim, um pouco relutante. – Acho que posso te contar, sem dar maiores detalhes.

Olho de volta para Lay'L, apertando um pouco os olhos – Você não desconfia de mim como Ion'Alia? Ele já notou que existe o poder do submundo em mim agora...

- Eu também senti, e isso me impactou muito quando te vi de novo... – Lay'L me responde, apertando a boca e respirando fundo – Mas se um anjo como Ka'Su decidiu confiar em você, então... Acho que posso confiar também.

Essas palavras me deixam aliviada, e trazem um grande ânimo por poder descobrir mais coisas sobre essa criatura que está sendo tão caçada nas últimas semanas.

- Nosso trabalho vem tendo progresso. A presença dele é muito forte, e isso dificulta determinarmos sua localização... Mas temos outras maneiras, você está sentindo essa pressão absurda ao nosso redor? – Ela pergunta, e confirmo com a cabeça – Isso é um sinal da presença dele... E pela intensidade, ele parece estar muito perto.

- Espera, então... Essa pressão toda que estou sentindo desde que saí de casa, está sendo causada pela presença dele? – Lay'L assente – Isso é insano...

- E eu estou aqui procurando por qualquer sinal dele... Se o vir, irei lançar o aviso aos anjos, e todos virão para tentarmos capturar ele. – Diz, enquanto solta um suspiro – E não vou mentir, estou muito assustada de estar aqui sozinha.

- Mas... Você já o viu antes, não é? Como ele é? – Questiono, querendo saber de fato como é essa Cria do Abismo, para saber identifica-lo, e quem sabe até evitar um contato com ele.

- Ele tem a aparência de um homem não muito velho, ele não é muito alto... Tem um cabelo escuro bem longo todo cacheado, uma pele de meio tom... Ele também aparenta estar muito cansado, parece que não descansa a dias... – Explica e me olha de volta. – E também, ele sempre está usando um sobretudo todo preto... E é conhecido como Cara do Casaco.

Pisco algumas vezes – É somente isso?

- Acredite, isso é o bastante. – Ela olha o chão por algumas vezes.

Assinto devagar, saltando as sobrancelhas – E como foi quando encontrou ele?

- Foi no dia que conseguimos emboscar a Cria do Abismo. – Ela solta um suspiro – Naquele dia conseguimos cercar ele e iniciamos um ataque, mas ele manifestou um poder de sombras que nunca vi antes, e desapareceu mergulhando nessas sombras... Mas ainda assim foi assustador, aquele poder era muito grande, e parecia envolver tudo...

- Mas o que farão quando o encontrarem? – Pergunto, já que Klauss nunca mencionou isso.

- Nossas ordens são para capturarmos ele, e levarmos ao Paraíso... Mas... – O anjo ergue seu rosto ao céu – Se ele oferecer resistência, temos autorização para eliminar ele.

O silêncio recai novamente entre nós, e tenho a impressão de que Lay'L não quer seguir por esse caminho de eliminar a Cria do Abismo. Acredito que ela prefira captura-lo. Além disso, mencionar esse assunto a deixou visivelmente tensa.

- Quer que eu fique aqui? – Pergunto um pouco preocupada ao vê-la tão apreensiva.

- Não, você está aqui com uma criança. – Lay'L responde com um sorriso – Não quero que vocês duas se envolvam nisso... Não conseguiria colocar você e sua filha em problemas, ainda mais no dia que finalmente conseguimos conversar de novo...

- Foi bom poder falar com você também... Senti falta de outros anjos, e é bom saber que nem todos vão me ver com desconfiança por ser uma caída. – Digo verdadeiramente aliviada.

Alguns passos atraem nossa atenção, e vejo Mel voltando a mim, abraçando minha perna com força, e me ergue o olhar com um riso brincalhão – Peguei!

- Me pegou mesmo Mel. – Respondo rindo, a erguendo nos braços e abraçando forte.

Percebo Lay'L nos olhando com as sobrancelhas erguidas, mas devagar sua expressão se alivia e ela se permite a um sorriso genuíno – Ela é uma graça Mi'Ka.

- Não é? – Respondo sorrindo da mesma forma, e brinco esfregando o rosto na barriga da criança, que ri me abraçando – E é um anjinho também, né Mel?

- Eu não sei, eu sou? – Mel pisca algumas vezes em sua inocência, olhando pra mim e para Lay'L, e nós duas confirmamos.

- Você se chama Mel? – Lay'L pergunta curiosa com um ar leve para a menina.

- Sim, mas na verdade, meu nome é Melissa... Mas eu não gosto, é muito grande e eu acho muito mais bonito Mel do que Melissa... E eu gosto mais de Mel... – Contenho meu riso, por já conhecer essa pequena e saber o quanto ela vai falar em seu jeitinho embolado e muito tagarela que cada dia gosto mais – É igual a Mika. Ela não se chama Mika, sabia? Ela se chama Mikaela, mas não gosta tanto, então prefere muito mais Mika do que Mikaela, do mesmo jeito que gosto muito mais de Mel do que Melissa.

Lay'L demonstra sua surpresa pelo tanto que Mel acabou de falar – Uau... – É a única coisa que ela responde.

Dou um sorriso que logo vira uma risada – Essa é a Mel.

- E você, é amiga da Mika né? – Mel pergunta, me abraçando.

- Ah, sim, Mika e eu nos conhecemos a muito tempo... – Lay'L responde sem jeito – Meu nome aqui é Layla...

- Layla? – Questiono curiosa, e ela assente – Então, também decidiu um nome para você... É uma boa escolha.

- Digo o mesmo. Mika é um ótimo nome, acho que combina com você. – Ela responde. – Como você prefere ser chamada?

- Mi'Ka já não é mais meu nome... – Respondo sincera – Por isso, pode me chamar de Mikaela, ou então Mika.

Percebemos Mel fazendo um barulho repentino que atrai nossa atenção, e pela sua expressão, ela está pensando em algo. – Você também é um anjo?

- O que? – Lay'L questiona em surpresa.

- Você conhece a Mika a muito tempo, e você se veste toda de branco igual a Mika e o Klauss, mesmo a Mika não usando mais branco igual quando conheci ela... E você escolheu um nome, então você é um anjo, né? – Mel pergunta inocente.

O anjo olha da criança para mim por algumas vezes, sem saber o que dizer – A Mel mora com dois anjos Layla... Acho que ela aprendeu a nos identificar.

- Eu... Estou muito surpresa Mel... – Ela responde com uma risada – Nunca fui descoberta assim como você fez.

- Então, você é? – A menina insiste com os olhos brilhantes e Lay'L assente. – Que legal!

Trocamos uma risada com a empolgação de Mel. Sua animação é sempre contagiante, e pelo que percebo, acho que mais alguém caiu nos encantos dessa criança.

- Agradeço a conversa, mas eu preciso ir... – Lay'L diz de repente, agora tendo um semblante bem mais leve de quando nos encontramos – Preciso falar com os outros, e continuar observando a região.

- Tudo bem, não vou mais te distrair. – Digo sorrindo de volta.

- Foi muito bom te ver de novo, Mika. – Ela diz, e olha para Mel – E também, foi muito bom te conhecer Mel, você é uma criança encantadora.

A menina ri sem jeito, me abraçando forte, e de imediato afago seus cabelos, sendo uma surpresa ver esse lado um pouco mais tímido em Mel.

- Você sabe onde moramos Layla, por isso apareça lá em casa para fazer uma visita qualquer dia desses. – Convido tranquila.

- Eu posso? – Ela pergunta sem jeito.

- É claro, por mim você pode ir lá em casa, está convidada. – Salto meus ombros – E eu convenço o Klauss a prepararmos um almoço, e conversamos com mais tempo.

- Tudo bem, eu irei visitar vocês sim. Até logo Mika. – Layla diz se despedindo com um aceno.

- Até Layla, se cuide. – Aceno de volta observando o anjo se afastando em passos calmos, contente comigo mesma por não ter impedido uma conversa com Lay'L. Na verdade, agora que penso foi tão agradável poder conversar com um anjo que conviveu comigo a tanto tempo atrás, e não existir hostilidade alguma. – Vamos Mel?

- Estou com um pouco de fome... – Mel diz baixinho, com uma mão na barriga.

- Eu também, vamos comer alguma coisa. – Proponho e começo a caminhar, erguendo o olhar por um momento, e lembro de algo que Mel me disse gostar bastante, e que eu ainda não experimentei nenhuma vez – Que tal... Sorvete?

- Sorvete! Eu quero! – Mel comemora nos meu braços, e dou uma risada.

- Certo, vamos comprar então. Acho que tem algum lugar aqui perto que vende. – Digo animada, enquanto caminhamos.

A praça dos Ipês encheu bastante nesse momento. Muitas pessoas pararam próximo ao músico, que se ajeita para iniciar uma próxima música, e acabo me despedindo com um aceno, que ele responde com um gesto como se perguntasse se eu já estou indo embora, e respondo com a cabeça.

Conforme caminho para fora do parque, a pressão que eu sentia antes, de um segundo para o outro, se tornou completamente insuportável, e uma repentina ventania se inicia, vinda da entrada da praça. Meu corpo inteiro entra em estado de alerta, todos os sons parecem distantes, em uma sensação que já tive antes.

A muito tempo atrás, quando criei uma aurora para um único humano, senti algo esmagador vindo na minha direção. Algo que não sabia o que era, mas era assustadoramente forte e me causou um pavor que nunca tive na vida.

E agora, tenho exatamente a mesma sensação daquele dia. O mesmo pavor ressurge em mim, e sequer consigo me mover quando percebo uma ameaça iminente bem a minha frente.

Uma figura apavorante vem caminhando pela entrada do parque. Uma figura que, em um rápido correr de olhos, identifico cada uma das características. Uma homem não muito alto, longos cabelos cacheados que voam com o vento, e uma veste escura que cobre quase todo seu corpo.

A Cria do Abismo que tem chamado tanta atenção...

Esse... Esse é o Cara do Casaco?

Permaneço parada prendendo a respiração, observando o homem caminhando em passos lentos até passar bem ao meu lado, mantendo um olhar sem brilho e um sorriso descontraído no rosto.

Acompanho ele a todo momento, e agora que paro para pensar, eu já o vi antes... Já o vi tanto na biblioteca quando procurava os onze arcanos, como também naquele dia da tempestade quando voltei para procurar por Klauss.

Eu me lembro, era ele nas duas vezes!

Respiro fundo buscando me acalmar e, relutantemente, me viro devagar e olho para trás, buscando ter certeza se estou delirando, ou se realmente acabei de ver a Cria do Abismo.

Para meu choque, a figura está bem ali, parada de costas para mim. Não somente está parada, seu olhar está voltado diretamente para mim, e ele mantém o mesmo sorriso de antes.

De repente a figura deixa seu lugar e vem caminhando na minha direção em passos largos, mantendo seu olhar cravado em mim, e consigo sentir esse poder esmagador vindo.

Assustada, viro os pés e começo a andar o mais apressada que consigo, desviando das pessoas que entram na praça e caminham pela calçada.

Preciso sair daqui. Preciso tirar Mel e a mim de perto dessa coisa!

- Mika? – Ouço Mel me chamar, um pouco assustada.

- Tá tudo bem Mel, não se preocupe. – Digo olhando para trás por uma vez, não vendo a Cria do Abismo em nenhum lugar. Sua presença continua igual, mas não vejo mais ele, e isso me causa um certo alívio.

Mas meu alivio desaparece no exato momento que uma pessoa acaba passando pela calçada, e ele ressurgiu de repente, muito perto e ainda com sua atenção voltada a mim.

De onde ele apareceu?

Volto a fazer meu caminho até meu carro o mais rápido que consigo, sem me importar se esbarrei em alguém no caminho ou não. Eu apenas vou o mais rápido que consigo, mas por mais rápido que eu caminhe, o mundo inteiro está diferente.

Tudo ficou completamente silencioso. O som das vozes, o barulho dos carros, o ruído do vento, tudo desapareceu por completo. Escuto somente minha respiração apressada.

E logo atrás de mim, escuto seus passos, um de cada vez, junto de sua presença esmagadora.

Ele está logo atrás de mim. Ele está cada vez mais perto.

Alcanço meu carro e, sob as várias perguntas confusas de Mel, a coloco no banco do passageiro e volto correndo ao outro banco, e olhando ao redor, vejo a figura parada perto, de braços cruzados e ainda mantendo seu olhar em mim.

Ele não se aproxima mais, apenas me observa fixamente. Mesmo a essa distância, é impossível não sentir a força tão esmagadora que vem dele, e com uma nova onda de vento passando por mim, um ruído estranho percorre o céu, e uma forte chuva começa.

Permaneço onde estou, o encarando assustada sem conseguir me mover, sentindo a água da tempestade molhando meus cabelos e minha roupa aos poucos, e ali parado ele continua me olhando, imóvel e indiferente as pessoas que passam correndo tentando fugir da chuva.

Ele sorri com os olhos apertados. Clarões rasgam o céu, e mesmo assim não escuto o som dos trovões ou o barulho da chuva, e me sinto minúscula diante disso. É aterrorizante estar sob o olhar dessa criatura, e sentir como a pressão em meu corpo é sufocante, estou tremendo por completo de sentir a energia insana emanada dele.

E olhando para ele agora, não consigo enxergar nada, não sinto intenção alguma, é como estar olhando para uma grande escuridão onde nada pode ser visto.

De um segundo ao outro, mesmo sem ninguém passando próximo, a figura desaparece por completo como se fosse um vulto, me causando um espanto.

Um trovão ensurdecedor pode ser ouvido reverberando pelo céu, e isso me pega tão desprevenida que me assusto com o ruído repentino, ao mesmo momento que o som da tempestade e dos ventos pode ser ouvido, retornando de uma vez e me acertando com tudo.

Pisco algumas vezes, olhando em volta repetidas vezes tentando encontrar qualquer sinal da Cria do Abismo, que desapareceu no ar sem deixar vestígios.

O que aconteceu? Eu estou delirando?

Entro no carro às pressas, e sem perder um segundo, faço o caminho de volta para casa, onde torço com todas as forças ser um lugar onde Mel e eu estaremos seguras. 

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