Capítulo 33
7253 Palavras
Encontro-me em minha poltrona, tendo um livro em mãos e aproveitando deste momento sozinho para continuar minhas leituras.
Passei parte da noite fora, tanto para observar a cidade para ter certeza de que tudo estava bem, quanto para espairecer de tudo que vi nas Revelações.
Ainda estava muito reflexivo quando cheguei, então decidi iniciar uma nova leitura, o que se mostrou uma escolha muito bem feita. Adquiri esse livro a pouco tempo e estive curioso a seu respeito, e seus primeiros capítulos já me entreteram muito.
Tenho minha atenção tomada quando tenho a impressão de escutar algo no andar de cima, e mirando meu olhar na escada, encontro a origem dos sons.
Vejo a pequena figura de cabelos dourados bem cacheados me olhando timidamente, em uma notável confusão presente em seu rosto.
- Bom dia, Mel. – Cumprimento com um sorriso, e acompanho a menina descendo devagar e se aproximando de mim, me observando bem desconfiada.
- Você... – Ela diz ao parar bem a minha frente, apertando seus olhos – É o namorado da Mika, né?
Solto um pequeno riso pela maneira que ela usou para me identificar – Sim, eu sou.
Mel olha para o sofá e então para mim, e entendendo sua vontade, faço um pequeno gesto para que se sente ao meu lado, e assim a pequena faz, mantendo certa distância de mim.
- Você dormiu bem? – Pergunto, fechando o livro em minhas mãos, decorando em qual página parei minha leitura.
- Dormi, mas... – Ela para, um pouco pensativa – Ontem fui dormir no meu quarto, quando a mamãe me colocou na cama, mas hoje eu acordei e não estava mais no meu quarto, e a Mika estava dormindo do meu lado... Ei, seu nome é Klauss, né? Eu estou sonhando?
- Não Mel, você está acordada. – Respondo a observando.
- Mesmo? Porque já sonhei com isso uma vez, sabia? – Ela diz voltando a me olhar – Mas não era aqui que eu acordava. Era em um outro lugar, era um quarto enorme com muitas coisas lá, e tinha um tapete bem macio que eu me jogava nele e nem sentia nada, era muito fofinho. Ai a Mika também estava lá, mas ela estava acordada... Mas você não estava lá daquela vez, mas está dessa vez.
- Acha que é um sonho? – Pergunto, entretido com o quanto essa pequena consegue falar sem perder o fôlego.
- Acho, e esse é um sonho muito diferente, e eu não lembro se no último sonho a Mika roncava tanto... – Ela diz e volta ao seu tom pensativo.
- A Mika ronca? – Pergunto sem segurar meu riso.
- Sim, ela ronca bastante. Você nunca ouviu? – Ela me olha fixamente, e balanço a cabeça negando – Mas ela ronca muito. Ela não ronca alto, mas ela ronca bastante. Eu mexi nela pra acordar, mas ela não acordou. Acho que a Mika está bem cansada, mas eu nunca imaginei que os anjos roncavam... Você sabia que os anjos roncavam?
- Não, eu não fazia ideia desse detalhe. – Respondo sincero, deixando o livro de lado, e me concentrando totalmente na Mel, entendendo cada vez mais a razão de Mika se encantar tanto com essa pequena.
- Eu também não, descobri hoje que anjos roncam... Espera um pouco! – Ela salta no sofá, e seus olhos parecem brilhar nesse instante – Você é um anjo também! Igual a Mika!
- Sim, sou um anjo também. – Respondo, já sabendo que tudo que eu falar, estarei dando corda para ela. Não que isso seja ruim, na verdade, essa conversa está bem agradável.
- Mas se você é um anjo igual a Mika, por que você não precisa dormir? – Ela indaga, pendendo o corpo para frente e balançando as pernas – Eu fiquei pensando nisso quando a Mika me falou que você não dorme, se você não se sente nem um pouco cansado, aí por isso não dorme. Se é assim, você pode falar pra Mika como ela pode fazer para não ficar cansada, e aí ela poderia ficar sempre acordada também. Eu adoraria poder ficar sempre acordada... Mas sabe, eu acho que ainda prefiro ficar cansada e precisar dormir, porque assim eu posso sonhar mais sonhos como esse em que estou agora, e todos os sonhos são legais. Mas esse é bem diferente... Mas agora estou pensando, você não dorme, mas se dormisse, será que você roncaria também?
Dou uma pequena risada – Não tenho ideia. Você acha que eu roncaria?
- Eu não sei, você não tem cara de quem ronca. Mas eu estou curiosa... Você precisaria dormir pra gente descobrir. Eu ficaria te olhando de olhos fechadinhos e ficaria esperando para descobrir se você ronca ou não, e aí quando você acordasse eu te diria. Mas talvez eu iria querer te acordar antes pra te contar. – Ela permanece me olhando com curiosidade. – Mas por que você não dorme Klauss?
- É que não sinto sono igual a você e a Mika. – Respondo – Minha maneira de repousar é diferente.
- Não sente sono e por isso não dorme... – Ela repete pensativa – Mas você sente outras coisas? Por exemplo... Você sente fome? Lembra quando a gente estava no parque, a Mika falou também que você não precisa comer.
- Também não sinto fome Mel. Por isso, não preciso comer. – Respondo, e ela salta as sobrancelhas com minha resposta.
- Não precisa comer, e é grandão assim... A mamãe sempre falou que preciso comer bastante pra ficar grande, mas você não come e é grandão... – A menina sussurra para si mesma, mas consigo ouvir perfeitamente cada palavra. Ela mencionar sua mãe me deixa um pouco atordoado – Eu gosto de comer, e gosto muito de comer de manhã. Gosto muito de comer um pedaço de bolo bem grande de café da manhã, também gosto quando tem pão macio bem quentinho, e também gosto de algumas torradas com manteiga que a mamãe prepara, junto com um copo cheio de chocolate quente... Eu gosto muito, sabia? Mas eu gosto mais de um bolo de manhã do que das torradas ou de pão macio, o bolo é muito mais gostoso, adoraria comer um bolo agora, e um copo cheio de chocolate. É ruim você não sentir fome, porque essas coisas são muito gostosas...
- Não sinto fome, mas consigo sentir sabores... – Paro de falar ao perceber a menina me olhando fixamente, balançando seus pés fora do sofá, aparentemente esperando por alguma coisa. Aperto os olhos por um momento, e tenho a impressão de ouvir seu estômago reclamar, e acho que entendi o que ela quer me dizer – Você quer comer alguma coisa Mel?
Ela acena com a cabeça prontamente – Sim eu quero... Sabe, a mamãe sempre me diz que crianças precisam comer pra crescer bastante, Klauss.
- Vem, vamos preparar algo. – Digo já ficando de pé, e Mel se levanta logo em seguida.
Entramos na cozinha já pensando em todas as coisas que tenho no armário, e também o que posso preparar para o café da manhã de Mel. Desde que Mika passou a morar comigo, passei a ter mais coisas nos armários e também a usar bem mais a cozinha.
Olho para a pequena, que já se sentou em uma das cadeiras e, apoiando o queixo sobre ambas as mãos, ela me olha com certa expectativa. Me vem em mente como Mel falou que gosta de bolo no café da manhã, que é exatamente isso que decido preparar para ela. Um bolo de caneca, semelhante com o que preparei para Mika poucos dias atrás.
Sei que um bolo de caneca é rápido de preparar, e tenho coisas o suficiente para fazer um sabor diferente do que preparei para Mika da última vez. Imagino que ela acorde com fome, ela foi dormir sem comer nada, então irei preparar para ela também.
Pego todos os ingredientes necessários e começo a preparar a massa em um pote largo, eu uma quantidade que sei ser o bastante para duas porções. Durante todo o momento ergo meu olhar e espio Mel, e a menina continua assistindo o que preparo, bastante entretida. Fico curioso com o que ela pode estar pensando nesse momento.
Não demora até que eu tenha terminado a massa, e a esteja levando a caneca para o micro-ondas para terminar de preparar o bolo. Em poucos minutos ele estará pronto para Mel, e poderei colocar a segunda caneca.
- Não vai demorar para ficar pronto. O que acha de me ajudar com a cobertura? – Pergunto, e Mel ergue seu olhar curioso para mim.
Ela pisca algumas vezes – Cobertura?
- Alguém me disse que gosta de bolo no café da manhã. – Dou um discreto sorriso ao ver como a feição da menina se ilumina – Imagino que deve ficar mais saboroso se tiver uma cobertura.
- Bolo? Você fez bolo mesmo? – Ela pergunta empolgada, olhando de mim para o micro-ondas algumas vezes, nitidamente tentando entender –Mas um bolo ali? Fica bom?
- A Mika gostou. – Digo de modo a deixar a pequena ainda mais interessada. – Quer me ajudar?
Ela pula da cadeira e vem até mim – Mas eu nunca fiz nada antes, eu posso ajudar mesmo?
- Claro, você pode me ajudar a preparar, e também, pode ser a degustadora. O que acha? – Pergunto.
- O que é uma degustadora? – Ela pergunta com bastante inocência.
- É alguém que experimenta muitos sabores diferentes, que sabe entender bem os sabores, e sabe dizer como pode ficar melhor. – Explico para a menina atenta em cada palavra.
- Uma degustadora experimenta muitas coisas boas? – Confirmo com a cabeça – Então eu quero ser uma degustadora, e comer muitas coisas gostosas. Tem muitas coisas que já vi por ai e fiquei com muita vontade de experimentar, mas nunca tinha chance porque via de longe e não voltava nesses lugares. Sabia que uma vez que o papai me levou em um lugar muito colorido? Eu tinha acabado de fazer aniversário e não lembro bem, mas sei que tinha tantas coisas pra escolher e eu não sabia o que queria. Aí o papai escolheu um doce pra mim, que era pequeno, mas lembro que era branco e tinha uma cobertura vermelha, falaram que era um bolo mas era tão mole que não acreditei ser um bolo, ele parecia uma outra coisa... Mas ele era bom, fico pensando como eram as coisas que não escolhi, acho que comeria uma de cada se pudesse... Mas eu serei uma degustadora, então vou poder comer todas essas coisas que não pude antes.
Dou uma risada ao escutar tudo que ela diz, enquanto vou posicionando algumas coisas propositadamente longe de mim para dar a chance de Mel poder me ajudar a preparar a cobertura – Mas você vai degustar só coisas doces? Coisas salgadas são boas também.
- Coisas salgadas são boas? – Mel faz uma careta, e balança a cabeça negativamente várias vezes de modo que seus cachos se agitam bastante – Não são não, Klauss, elas são salgadas! Eu não gosto de coisas salgadas, elas tem um sabor ruim, você já comeu saladas? Elas são salgadas, tem um gosto estranho... Quero ser uma degustadora só de coisas doces!
- Muito bem Mel, como você será uma degustadora de doces, então acho que precisarei fazer uma cobertura doce para o bolo. – Digo em brincadeira.
Mel salta suas sobrancelhas em um notável espanto – Você pensou fazer uma cobertura salgada? Eca, bolo com uma cobertura salgada não combina! Não, de jeito nenhum, imagina um bolo com uma cobertura salgada Klauss? Bolo precisa de uma cobertura doce, doce e bem gostosa.
- Sabia que existe bolo salgado? – Pergunto curioso com sua reação.
- Deve ser ruim! – Ela responde prontamente. – Bolo salgado? Ele vai com cobertura salgada?
- Não sei te dizer isso. – Vou segurando meu riso com ela.
- Deve ir, bolo salgado com cobertura salgada, e deve ser muito ruim. – Ela mantém sua careta – Por que estamos falando de coisas salgadas? Podemos continuar falando de coisas doces, não é? Me fala que você vai fazer uma cobertura doce, ela vai combinar muito mais do que uma salgada.
- Sim, irei fazer uma cobertura doce, e você vai me ajudar. – Digo e seu rosto se ilumina, e assim paro frente ao fogão já com uma panela em mãos. – Preciso que me passe o leite...
- Leite... – Ela se vira para as coisas que deixei separadas, e pegando o leite ela me entrega – Aqui.
- Ótimo, agora a manteiga. – Digo despejando um pouco do leite na panela, e vejo que ela já tem o pote de manteiga em mãos. Alcanço o pote e coloco certa quantidade na panela – Obrigado, agora o chocolate em pó.
A menina se volta aos itens e, após alguns segundos olhando, ela pega o pote e vem até mim – Esse?
Assinto com a cabeça – Esse mesmo. Quer colocar o chocolate?
- Eu posso? – Ela pergunta olhando do pote para mim, e confirmo com um aceno.
Me abaixo e devagar ergo Mel com um braço, a deixando em uma boa altura. A menina passa um de seus braços ao redor do meu pescoço, e olha para a panela, que aproximo para ela conseguir colocar o chocolate – Agora, só colocar um pouco de chocolate, devagar...
Mel abre o pote e o vira um pouco longe da panela. Uma parte do chocolate entra na panela, outra parte cai no fogão, outra no chão, e um pouco cai sobre nós dois.
- Eu coloquei um pouco demais... – Ela diz um pouco sem jeito, e se encolhendo um pouco ela me olha – Desculpa.
Sorrio de leve, a abaixando e deixando novamente no chão – Não tem problema Mel, não precisa se desculpar.
- Não está bravo? – Ela pergunta me olhando curiosa, enquanto bate as mãos nas suas roupas.
- Não, por que ficaria? – Digo pousando uma mão em sua cabeça – Só falta o leite condensado. Pode pegar para mim?
Ela assente e segue até onde estão as coisas, já eu sigo mexendo tudo na panela, enquanto observo o chocolate caído perto de mim, soltando um pequeno riso nasal, e logo observo Mel se aproximado e me entregando a lata de leite condensado – Ei Klauss... Você é um anjo também, né?
- Sou. – Digo, pegando a lata e despejando uma quantidade razoável na panela e mexendo com uma larga colher.
- Sabe, eu nunca vi suas asas. – Ela diz, e a observo de canto de olho por um momento, intrigado com este novo e tão repentino assunto – E agora eu estou pensando, como elas devem ser? nunca vi as suas, e desde o dia no parque fiquei pensando como podiam ser suas asas. Eu já vi as asas da Mika, duas vezes, elas são grandes e muito bonitas, e brilham tanto, e elas ficam muito bonitas de noite, bem abertas assim...
Vejo a menina esticando bem seus braços pra tentar demonstrar as asas da Mika. – Isso é verdade, de noite elas brilham bastante.
- Ficam grandonas e brilhantes, e eu amei ficar olhando para elas... – Ela solta um suspiro – Mas ainda não sei como são suas asas...
Por alguns segundos reflito em suas palavras, e deixo escapar um sorriso pela clara vontade da Mel. Entendi bem o que está pequena quer dizer.
Sem dizer nada para fazer uma pequena surpresa, devagar manifesto minhas asas e as abro devagar, passando em volta de Mel. A menina percebe o brilho repentino e olhando de um lado ao outro, ela percebe a presença das minhas asas, e nesse instante seus olhos brilham.
- Elas são... – A menina sussurra, virando-se para elas, e nenhuma nova palavra é dita por ela.
Paro para refletir no que acabei de fazer, eu revelei minhas asas a um humano. Antes apenas mencionei para essa criança, mas agora dei a ela a prova de que de fato sou um anjo. Em nenhum outro momento da minha vida pensei me revelar a um humano, afinal é proibido a nós anjos revelar nossa natureza a qualquer humano, por diversas razões. É considerado um erro grave pelos arcanjos, pois pode despertar a ambição humana em sua pior essência por algo novo e desconhecido para si.
E eu acabei de cometer esse erro.
Mas sinceramente, ver o olhar maravilhado e o belo sorriso de Mel, faz com que eu não me arrependa do que fiz.
Mel ergue suas mãos e um pouco hesitante, volta a me olhar, como se pedisse autorização para continuar. Entendendo sua vontade, afirmo com um pequeno gesto, e Mel toca as plumagens brancas.
- Elas são tão macias... – Devagar ela aproxima mais, encostando seu rosto – E tão quentinhas... Elas são maiores e mais bonitas do que eu imaginei... Elas brilham igual as da Mika.
Assisto a menina brincando com minhas asas nesse momento, quando um apito chama minha atenção. Erguendo meu olhar, reparo que o micro-ondas já apitou, e começo a refletir quanto tempo ele já deve ter apitado.
- O bolo está pronto. – Anuncio e me viro para a panela, desligando o fogo – E a cobertura também.
- Não se esqueça de me deixar experimentar a cobertura Klauss, eu sou uma degustadora agora, lembra? – Ela diz com animação.
- Claro, não me esqueci. Aqui está, mas cuidado que a cobertura ainda está quente. – Digo entregando a colher que usei para Mel, que a recebe com um largo sorriso.
Mel comemora, e volta correndo para a mesma cadeira que estava antes, sacudindo sua mão para esfriar o chocolate, e o provando logo após. Não consigo acreditar na minha expectativa pela opinião dela sobre a cobertura.
- E então? O que achou? – Pergunto indo até o micro-ondas e pego a caneca com o bolo pronto, e imediatamente já coloco a segunda caneca dentro e ativo o temporizador para preparar o bolo da Mika.
- Ficou muito... – Ela diz, erguendo seu olhar a mim finamente – Muito... Mas muito, muito bom mesmo! A cobertura ficou gostosa demais, acho que é uma das coberturas mais gostosas que já comi, agora já nem sei se o bolo vai ficar tão bom como a cobertura, eu espero muito que esteja... Mas se estiver tão bom quanto, não saberei dizer qual dos dois é mais gostoso, eu terei que comer um bolo e a cobertura separada para poder saber qual dos dois é melhor...
- Então, o que acha de experimentar os dois juntos Mel? – Pergunto e recebo um olhar curioso da pequena. Enquanto deixo seu bolo no prato e despejo um pouco da cobertura, continuo – Eles ficarão melhores se fizer isso.
- Eles ficarão melhores? – Ela pergunta, e seus olhos acompanham quando deixo o bolo com a cobertura escorrendo lentamente, junto a uma pequena colher de sobremesa.
É um bolo até que simples, mas ainda assim Mel ficou boquiaberta com ele.
- Espero que você me confirme isso. Afinal, você será uma degustadora, não é? – Digo sorrindo, me sentando a sua frente. – Espero que goste.
A menina pega a colher e começa a saborear o bolo. Mel solta um demorado suspiro de aproveitando o sabor, e com alguns pulos animados na cadeira, ela prontamente desfere novas colheradas, sempre reagindo de formas parecidas em cada novo pedaço, aproveitando um bolo que, agora que percebo, é bem grande para ela. Solto um riso nasal com as reações de Mel, e um pequeno sorriso me surge no canto da boca.
Acho interessante que, apesar de não dizer nada, suas reações demonstram o quanto gostou do bolo. Ela e Mika são muito parecidas nisso, ambas se fazem entender muito bem.
Vou me entretendo vendo Mel aproveitar o bolo, quando escuto os sons de alguns passos vindos de fora da cozinha, e lançando meu olhar para a porta, encontro uma Mika com uma cara amassada, recheada de sono e olhos um pouco inchados entrando na cozinha. Pela sua feição surpresa, ela deve ter se assustado quando acordou e não viu a Mel com ela.
- Oi Mika! – Mel diz animada, sacudindo uma de suas mãos a ela.
Mika a olha com um sorriso, abaixando ai lado da menina e lhe dando um demorado abraço, quase como se não se vissem a muito tempo – Bom dia Mel, como você está hoje? Dormiu bem?
- Eu dormi, na verdade acho que ainda estou dormindo, porque ontem eu dormi na minha cama e hoje acordei aqui, e estou comendo um bolo muito gostoso que duvido não ser de um sonho de tão gostoso. – Dou um sorriso vendo as duas, e Mika se senta em uma cadeira ao lado de Mel.
- Tem bolo? – Ela pergunta com as sobrancelhas ao alto, olhando para a mesa, e por fim volta seu olhar a mim. – Eu também quero, tem pra mim também?
- Tem sim, irei pegar. – Me coloco de pé e vou ao microondas pegar o bolo de caneca de Mika. Da mesma forma como preparei o de Mel, deixo o bolo em um pequeno prato, despejo um pouco da cobertura, e o entrego a Mika – Aqui está.
Ela me observa com os olhos miúdos e um ar desconfiado. Sorrio de leve por saber o que vem a seguir – Você quem fez?
- Sim, fui eu. – Respondo puxando a cadeira e me sentando.
- Pois eu não acredito. – Mika responde risonha, pegando um primeiro pedaço e o levando perto da boca – Eu não vi.
- Mas o Klauss fez sim Mika. – Mel diz de repente. Mika e eu trocamos um olhar, já que nenhum de nós esperava que ela dissesse algo.
- Tenho uma testemunha dessa vez. – Digo rindo, apoiando o queixo sobre a mão.
- Ele fez mesmo, Mel? – Mika pergunta com um sorriso leve para a menina.
- Fez sim, e eu ajudei, sabia? – Mel diz com animação – Fui eu quem colocou o chocolate da cobertura, e eu experimentei também, porque eu serei uma degustadora de doces e posso comer muitas coisas doces.
- Então... Eu acredito. – Mika diz rindo, saboreando o primeiro pedaço, e um genuíno sorriso ela saboreia o bolo, até parecendo ser a primeira vez.
- Você acredita quando a Mel diz que fizemos? – Pergunto intrigado, e Mika faz que sim com a cabeça, com a feição mais limpa do mundo – Mas não acredita quando eu digo?
- Isso mesmo Klauss, não acredito. – Ela responde rindo, claramente querendo me provocar – Acho que você comprou o bolo.
- Mas por que não acredita Mika? – Mel pergunta com inocência.
Mika passa sua mão carinhosamente pelo cabelo da criança – É uma coisa de quando nos conhecemos Mel. Eu sempre acreditei, só falo que não para irritar o Klauss.
- Para irritar ele? – A menina olha de Mika para mim algumas vezes, um pouco confusa – Mas irritar alguém não é uma coisa ruim?
- Dependendo de como se irrita, não. – Digo as olhando, e Mel ainda parece confusa. – É divertido.
Mel olha de mim para Mel algumas vezes, e pela careta de estranheza que faz, acredito que ela ainda não entendeu – Vocês namorados são esquisitos.
- Eu sei, é uma coisa nossa Mel. – Mika diz rindo abraçando a pequena de lado, quando volta minha atenção para mim – Eu não acredito. – Ela sussurra e me mostra a língua.
Sorrio com o comentário tão espontâneo – Você não me disse se gostou.
- Eu gostei, e gostei muito. – Mika diz, prestes a saborear mais um pedaço do bolo – Ele se parece com o bolo que você fez antes, mas o sabor deste é diferente. Gostei disso, sempre me lembro que no mundo humano, uma mesma coisa pode ter tantos sabores diferentes...
- E você sempre se surpreende com isso. – Pontuo, e ela concorda.
- Isso é verdade, é uma das coisas que sempre me encantam neste mundo. – Ela diz sincera.
Percebo que Mel olha de mim para Mika por algumas vezes, repetindo isso por algum tempo – Ei Mika, por que você não deixa suas asas soltas também?
- Ah, bem... – Ela direciona seu olhar a mim, como se buscasse por uma resposta que não tenho – Não sei, eu só... As mantenho escondidas...
- Mas elas são tão bonitas, você precisa esconder suas asas? – Ela pergunta.
Mika fica sem uma resposta, baixando seu olhar por um momento, nitidamente sem saber o que responder para Mel.
- Estamos em casa. – Digo baixinho, mas alto o bastante para atrair a atenção de ambas – Pode manifestar suas asas, se você se sentir à vontade para isso.
- Mas... Não tem problema mostrar minhas asas? – Ela pergunta com cautela.
- Nunca teve. Gosto de suas asas. – Respondo calmamente e com sinceridade. Olho para a criança que faz um gesto afirmativo com a cabeça – Mel e eu gostamos. Mas não precisa se forçar a isso se não estiver confortável.
Mika encara o bolo a sua frente, girando a colher devagar entre seus dedos e torcendo sua boca levemente, em uma clara indecisão. Imagino que não devia ter tocado nesse assunto ao ver como Mika ficou, mas tenho uma surpresa quando, em um abrir suave de plumagens douradas, ela manifestou suas asas.
- Acho que... – Mika sussurra, abrindo um sorriso sem jeito para mim e Mel – Não tem problema abrir minhas asas em casa.
Mel abre um sorriso largo e seus olhos brilham vendo as asas de Mika. Também aproveito este momento para poder apreciar as belas asas do anjo boreal, saciando uma vontade que não imaginava ter dentro de mim.
Elas brilham da mesma maneira que as vi da primeira vez, sem mudarem sem tom ou sua aparência. Me preocupei que, com Mika absorvendo mais poder do submundo, alguma mudança mais drástica poderia acontecer, mas ela permanece a mesma até então.
O anjo abre um sorriso tímido ao notar como meu olhar está atraído para suas asas. Mika então olha para Mel, notando que a mesma nutre o mesmo olhar admirado, e afagando o cabelo da pequena, juntas elas continuam servindo-se de seu bolo de café da manhã, sem dizerem nada. Acredito que Mika não precisa dizer, enxergo seu alívio ao ver que Mel esteja bem.
Terminando de comer seu bolo silenciosamente, a atenção da pequena se direciona para a porta da varanda, e ali permanece. Ela apoia as mãos sobre a mesa, e descansa o queixo sobre elas, e não deixo de notar como seu olhar fixa lá fora.
- Mel? – A chamo, e a menina volta sua atenção a mim – Está tudo bem?
- Só estava pensando como deve ser ali fora. – Responde pensativa em seu jeito único.
- Pode ir lá. – Digo – Você poderá ver boa parte da cidade daqui. Só tome cuidado.
Mel levanta-se da cadeira e corre para fora em passos animados. Sorrio a acompanhando com o olhar, e ao me voltar para Mika, tenho a impressão de vê-la acompanhando a criança e ficando um pouco inquieta na cadeira.
- Quer ir também, Mika? – Pergunto arqueando as sobrancelhas, e com um sorriso brincalhão ela me confirma balançando a cabeça.
Solto um pequeno riso com isso, e com um gesto leve, confirmo para Mika, e prontamente ela se levanta e vai na mesma direção que Mel seguiu. Meu olhar acompanha o caminho que elas seguiram, e nesse momento, começo a refletir novamente em como essas duas são parecidas.
*****
Termino de lavar as louças do almoço e as deixo secando, e com um pano em mãos, sigo até a porta da cozinha para observar Mika e Mel por mais uma vez.
As duas passaram boa parte da manhã se divertindo no quintal, Mel é uma garotinha bem energética e adora brincar, enquanto que Mika entra em todas as brincadeiras, mesmo sem conhecê-las muito bem. É bem perceptível como o anjo está adorando esse momento com a pequena.
Apesar de não ter participado de brincadeira alguma, sentei em uma cadeira na varanda e comecei a ler, mas não conseguia me concentrar, pois acompanhar Mika aproveitando um momento tão leve atraiu mais minha atenção.
Pela primeira vez pude ver o balanço de pneu dessa casa foi usado. Mika não soube bem o que fazer a princípio, mas logo pegou o jeito, e em instantes eu conseguia ouvir as risadas da Mel, e logo as de Mika. Ouvir os risos delas foi tão agradável quanto escutar o assobio do vento, ou o cantar dos pássaros.
Não sei em qual momento me levantei e fui preparar o almoço para elas, mas podia escutar a empolgação do anjo em cada ideia que a criança dava. Teve momentos em que quis largar tudo para retornar a porta e apenas olhar por mais um instante.
E agora que terminei de arrumar tudo na cozinha, volto para a varanda, onde vejo Mika deitada de bruços no gramado com suas asas bem próximas de seu corpo, e o pequeno corpo de Mel deitado sobre si.
Acho curioso que estejam tão quietas, e vou até elas, querendo saber se está tudo bem.
Ao me aproximar, vejo Mel abraçando Mika com seus olhos fechados e, com seus cabelos bem espalhados, ela ressoa baixinho, dormindo com bastante leveza. Já Mika deitou o rosto sobre as mãos, e ele nutre um sorriso cativante em seu rosto, e consigo sentir uma sensação de tranquilidade e uma alegria irradiando dela, algo inexistente ontem a noite.
Mika precisava disso. Precisava desse momento.
Apesar de não conseguir mensurar quanto, sei bem que ela precisava muito desse momento depois dos últimos ocorridos.
Abaixo ao lado de ambas e as observo, com uma sensação agradável em meu peito, que não sei descrever. Mas entendo ser uma das primeiras vezes que a sinto, já que me é um sentimento tão novo.
Mika abre seus olhos devagar, e preguiçosamente me olha – A Mel está tão quietinha... Ela dormiu?
- Sim, ela brincou bastante. – Devagar pego Mel no colo e a levanto – Deve estar exausta. Vou levá-la para a cama.
Ajeito a menina nos braços e, de soslaio, noto Mika se sentando e esticando bem os braços, se espreguiçando por longos momentos, quando por fim me sorri de um jeito bastante carinhoso.
Caminho de volta para casa, pensando como começar o assunto com Mika. Ainda não conversamos sobre ela de fato, nem o que vi nas revelações que levou a minha decisão de ficarmos com ela. Nem mesmo sei se Mika concordará com essa ideia.
Ao entrar, sigo direto para o quarto e deixo a criança deitada, descansando em sua tranquilidade. A observando, me vejo dividido entre contar tudo que houve, ou por enquanto, deixar que ela acredite que tudo seja um sonho.
Ela tem somente cinco anos. Como contar que o que houve com sua mãe? Devemos contar o que aconteceu?
Termino de ajeitá-la na cama, e desço para a sala novamente, encontrando Mika esticada no sofá, com seus olhos fechados.
- Parece que mais alguém está com sono. – Mika esboça um riso, e devagar ela se levanta – Coloquei a Mel na cama. Se quiser, pode descansar também.
Ela balança a cabeça negativamente, e estica aos braços para mim – Não quero... Vem cá um pouquinho.
Ergo uma sobrancelha ao notar o sorriso travesso dela, e assim que me aproximo, Mika passa seus braços ao redor do meu pescoço e me puxa para si de um jeito bem brincalhão.
Acabo não conseguindo me apoiar rápido o bastante, e dessa maneira caio em cima de Mika, que pela maneira que está rindo, adorou fazer isso.
Estou para me erguer um pouco, mas Mika me segura. Nossos olhares se encontram, e ela mantem seu sorriso – Não levanta... Fica aqui pertinho...
Nossa proximidade é grande, e a verdade é que não quero me afastar. Contudo, uma ideia me vem em mente – Não irei me afastar. Pensei em algo melhor.
- Algo melhor? – Ela me olha curiosa, e sorrio em resposta – O que é?
Envolvo sua cintura com uma mão e, me erguendo de uma vez, puxo Mika comigo. Ela me segura firme com um pequeno grito surpreso seguido de seu riso, e me sentando no sofá e tenho Mika sentada sobre o meu colo.
- Essa ideia. – Digo finalmente, passando ambas as mãos em torno de sua cintura, aproveitando de uma proximidade que antes nunca tivemos.
- Eu gostei disso. – Ela responde, passando seus braços em torno do meu pescoço e aproximando-se de mim.
É a primeira vez que nos aproximamos dessa maneira, e mesmo que antes já tenha sentido o corpo de Mika, dessa vez é diferente. Nossa proximidade difere da outra vez, é envolta em uma intimidade que antes não imaginava ter com ela, e algo nela me atrai mais do que antes.
Nossos olhares permanecem ligados um no outro, nossos rostos estão próximos de maneira que quase se tocam. A respiração de Mika encontra minha pele, e consigo sentir o suave calor de seu leve corpo. Meu olhar percorre pelo seu rosto, o olhar que parece enxergar o mais profundo de meus pensamentos e o sorriso travesso que prende minha atenção.
- O quanto gostou? – Sussurro curioso.
- O bastante para não querer sair daqui. – Ela me sussurra de volta.
- Não quero que saia. – A puxo para mais perto, seu corpo se aperta ao meu, e sinto seus lábios roçando os meus.
- Eu não vou. – Ela me sorri, mas logo seu sorriso se desmancha, e isso me preocupa.
- Tudo bem? – Pergunto, e apesar dela assentir, não senti firmeza. – Mika, tem algo te incomodando?
Ela suspira, encostando sua testa na minha e baixando o olhar – Não... É só que...
- É a Mel, não é? – Sussurro, fazendo um carinho lento em seu cabelo.
Mika afasta devagar, apertando a boca. Ela fecha seus olhos, e com pesar, faz que sim com a cabeça. – Não consigo parar de pensar nela, e no que aconteceu.
- Quero conversar com você sobre isso. – Começo a falar – Tomei uma decisão sobre a Mel.
Mika tem um semblante entristecido, mas me confirma – Vamos levá-la para a família dela...
- Vamos adotar ela. – Digo, e ganho um olhar surpreso – A Mel vai morar com a gente.
- O que...? – Mika gagueja, apoiando as mãos nos meus ombros – Mas... Klauss...?
- A família da Mel não a conhece e nem parece se importar com ela, não estiveram presentes e rejeitaram ela e a mãe. – Explico o principal motivo da minha decisão – Talvez o melhor seja ela ficar com a gente.
- Como soube de tudo isso...? – Mika pergunta num sussurro.
- Vi nas Revelações. Vi a vida da mãe da Mel, vi o nascimento daquela criança, e tudo que ela e a mãe passaram. – Digo pensativo – Tomei essa decisão, mas quero saber se você concorda em adotarmos a Mel.
- Ela... Vai ficar com a gente? – Mika pergunta com a voz trêmula. – Mas... Tudo aconteceu porque...
- Você não tem culpa Mika. – Respondo tocando seu rosto – Você foi a escolhida para cumprir um trabalho horrível, mas acredito que por ter sido você, ela pode partir em paz. Ela sabia o tanto que você gostava da Mel, que você cuidaria bem dela... Foi por isso que Felícia partiu sorrindo.
- Ela... – Uma lágrima solitária cai pelo rosto de Mika – Ela se chamava Felícia?
Confirmo levemente, permitindo que Mika absorva essa informação por alguns instantes.
- Klaus, você... Acha que eu poderei cuidar da Mel...? – Pergunta com uma voz fraca, se aproximando e escondendo seu rosto no meu pescoço. Suas palavras sussurradas contrastam com seu respirar profundo – Eu não sei se consigo...
- Não tenho dúvidas de que você consegue. – Digo a abraçando de modo a tentar acalmar Mika e te transmitir conforto – E você não fará isso sozinha, eu estou com você, lembra?
Ela confirma movendo seu rosto, e com isso, me sinto aliviado por termos conversado sobre isso, e concordado sobre ficar com Mel. Tinha receio de Mika discordar, e querer que levássemos Mel para seus parentes, que certamente não se importariam e nem mesmo cuidariam desta criança radiante. Não sei se conseguiria entregá-la a eles.
Acredito que neste mundo, não exista ninguém que goste mais da Mel do que Mika. Basta olhar a maneira como o pequeno anjo fica quando Mel está presente, e presenciar todo o carinho e o cuidado que Mika tem com ela, que tenho certeza de que Felícia não errou em sua escolha.
Mas antes de levarmos isso adiante, tenho algo igualmente importante em mente. Sei como Mika está abalada com tudo isso, e o tempo que ela precisa para poder se recuperar de tantos momentos conturbados.
E farei o que puder para que Mika sinta-se melhor, e possa superar a tudo.
- Klauss? – Ela me chama baixinho. – O que fez com a alma da Felícia?
- Eu a guardei comigo. – Respondo – Seria errado fazer qualquer coisa com esta alma antes de te contar primeiro.
- Não quero levá-la para o submundo. – Ela confessa novamente.
- Você não vai. – Digo com cautela – Sei que precisará retornar ao submundo, quando fizer isso, coloque a culpa em mim. Diga que quando chegou, eu estava ali, e levei a alma embora.
Mika ergue seu rosto e me observa nos olhos, incrédula com o que eu disse – Mas, colocar a culpa em você?
- Já causei problemas ao submundo antes. Um a mais não terá problema algum. – Respondo temendo pelo que pode acontecer, temendo por Mika pela incerteza de não cumprir com um trabalho dado por eles.
- Eu espero que acreditem em mim... – Ela diz me olhando.
- Eu também Mika. – Digo no mesmo tom, torcendo com todas as forças que nada aconteça com Mika por chegar ao submundo sem a alma que foi enviada para buscar.
Devagar aconchego Mika em meu colo, continuando a fazer alguns carinhos em seu cabelo. A sua maneira, ela se ajeita e tenho sua respiração quente encontrando meu pescoço, e um momento de silêncio surge, onde mergulhamos em nossos próprios pensamentos.
- Pensei em uma coisa... – Mika diz após alguns momentos – Ion'Alia e Lay'L estavam aqui quando cheguei com a Mel...
- Estavam. – Confirmo baixinho. – Vieram me contar sobre o tal ser do Abismo. Querem que eu os ajude a enfrentá-lo.
- Você... – Mika hesita em sua fala.
- Não tenho a intenção de ir com eles. – Digo, deixando que um suspiro me escape – De fato, é meu dever proteger essa cidade, junto de todos que vivem aqui. Contudo, a missão de enfrentar a Cria do Abismo não pertence a mim, mas ao esquadrão deles.
E agora, tenho algo mais importante para cuidar. Algo que não é uma missão que me foi dada pela Alta Esfera do Paraíso, mas sim algo que escolhi por mim mesmo.
- Você já os conhece, não é? – Pergunto.
- Sim, a muito tempo atrás convivíamos juntos no paraíso. – Ela me responde – Por pertencer a Legião, Ion'Alia era o único de nosso grupo que podia vir ao mundo humano, e ele nos contava sobre algumas coisas que conheceu aqui. Lay'L era a mais nova de nós, e muito apegada a Ion'Alia por ser o primeiro anjo que viu desde seu surgimento.
- Desde então, Ion'Alia seguiu cuidando de Lay'L como um mentor. – Digo pensativo, me recordando de conversas que tive com o anjo, e as vezes que mencionou alguém que viu surgir e tinha seu afeto.
- Ela seguiu pela legião por querer seguir os passos de Ion'Alia. – Mika sussurra.
- E ele não gostou a princípio. – Mika ergue seu rosto para mim – Ele me procurou para conversar, e mencionou um "certo anjo" que ingressou na legião, e ele estava preocupado com seu bem estar.
- Sério? Eu lembro que ele não queria mesmo... – Mika diz reflexiva – Tentou fazer a Lay'L mudar de ideia quando falou sobre o caminho que desejava seguir.
- Mas pelo jeito, suas tentativas não tiveram resultado. – Mika assente de leve com as sobrancelhas erguidas – O que sentiu ao ver eles?
- Tantas coisas... Você nem faz ideia. – Ela diz, com as mãos apoiadas em meus ombros. – Fiquei tão empolgada em ver eles depois de tantos anos, já nem lembrava do rosto deles, mas... Ao mesmo tempo me lembrei quem sou hoje... E fiquei assustada, tive medo deles, de outros anjos. Tive medo que me atacassem, que tentassem fazer algo com a Mel ou tirassem ela de mim. Eu fiquei assustada demais...
Ela suspira profundamente e um semblante perdido se forma em seu rosto. Os ombros de Mika caem e ela torce a boca, e suavemente toco seu rosto – Eu não permitiria que fizessem algo com você Mika.
Mika segura minha mão, aproveitando os carinhos que faço em seu rosto – Eu... Ouvi o que Ion'Alia falou... Sobre eu ser uma caída e pertencer ao submundo...
- Você ouviu? – Pergunto surpreso.
- Eu estava no alto da escada... Escutei toda a conversa, e tudo o que ele disse. – Mika diz com pesar, baixando seu rosto devagar.
- Não de importância ao que ele disse. Ion'Alia não conhece quem você é hoje Mika... – Ergo seu rosto novamente, de modo que ela volta a me olhar – Ion'Alia e os outros anjos não conhecem você como eu conheço.
Ela mantém seu silêncio, apertando o lábio devagar. Devagar minha mão vai até seus cabelos, e meus dedos brincam com os fios levemente, e nossos rostos se aproximam.
- Você é mais que uma caída. – Sussurro com um sorriso sereno.
- Eu sou? – Pergunta baixinho, sorrindo também.
- Muito mais. – Respondo, e num toque suave, nossas bocas se encontram.
Um beijo leve se forma entre nós, tranquilo e envolto em carinho. Um que não existe pressa ou um desejo ardente, mas que ainda demonstra de uma maneira única os sentimentos que surgiram entre nós, e agora se revelam em mais essa maneira.
Devagar as mãos de Mika tocam meu rosto, percorrendo seus dedos pela minha pele lentamente, e conforme abraço sua cintura, aos poucos vamos deitando no sofá, sem abalar a suavidade de nosso beijo.
Conforme deitamos, nossos corpos se mantém unidos, em mistos de sensações que emanam de ambos. Sensações suaves e cálidas, que nos envolvem em um momento apenas nosso. Um beijo que, apesar de calmo, é profundo, tal qual foi nosso primeiro.
No momento que nossas bocas se afastam, trocamos um olhar, e a leveza que vejo em Mika me agrada. Seu semblante sereno é algo que aprecio, e mesmo nesse instante, depois de tantas coisas que a vi passar, ela mantem a curiosidade genuína e até mesmo a inocência em seu olhar.
Apesar de todo o poder do submundo que está contido em seu corpo, é claro para mim que Mika não mudou nem por um momento. Apesar das mudanças físicas cada vez mais presentes, seu cabelo que perdeu os tons loiros e o olhar afiado, ela continua a mesma de quando a conheci, sua essência é a mesma, e isso me traz grande alívio.
Devagar Mika deita em meu ombro, se aconchegando sobre mim, e mantenho meu abraço, fechando meus olhos e aproveitando deste momento tão agradável. Sinto um suave calor ao nosso redor, e sei que ela aproximou suas asas.
- Klauss? – Mika me chama, sem se mover – Eu estava pensando... Já que a Mel vai ficar com a gente, ela vai dormir comigo?
- Acho que por enquanto, sim. – Respondo pensativo – Essa casa tem três quartos, e o terceiro está livre. Nós podemos deixar ele para a Mel, mas temos muito para arrumar.
- Não me incomodo com isso, e eu sei que você não dorme... – Ela diz devagar, brincando com os dedos sobre meu peito – É que na casa dela, a Mel tinha um quarto, acho que ela iria gostar de ter um quarto só dela aqui também.
- Podemos arrumar o quarto para ela nos próximos dias. – Respondo.
- Vamos arrumar tudo quando eu voltar do submundo. – Ela diz de repente.
- Mika... – Sussurro preocupado.
- Eu sei, não quero ir, mas preciso. – Ela responde com firmeza – Mas não vou demorar lá. E assim que voltar, vamos cuidar do quarto dela.
- Tudo bem, estou de acordo. – Respondo.
- Então... – Ela para por um segundo – O que vamos comer mais tarde?
- Mika! – A repreendo rindo, ela ri junto comigo – Almoçamos faz pouco tempo.
- Estou brincando. – Ela devolve rindo – Ou não... Podemos comer algo diferente... O que acha?
Arqueio as sobrancelhas – Vamos pensar nisso mais tarde.
Mika ergue seu rosto e sou confrontado por um par de olhos pidões, e deixo um curto riso me escapar, e com isso, o pequeno anjo me mostra a língua, tornando a deitar. Ela sempre foi manhosa assim?
Ouço os risos travessos de Mika, e ela volta a me olhar com seu belo sorriso.
Gosto dessa leveza, desse momento agradável que cada vez mais é frequente em nossos dias.
Momentos que, agora que temos Mel conosco, espero que se repitam por muito mais vezes.
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