Capítulo 32
5922 Palavras
Termino de dobrar algumas roupas que limpei nos últimos dias, e organizando a pequena pilha de peças escuras, as levo para o quarto de Mika.
Costumo deixá-las organizadas na ponta da cama, para que assim ela escolha como prefere guardar.
Desço novamente, passando pela sala e cozinha, e ao alcançar o lado de fora, para na varanda e observo a cidade. Acho que seria bom fazer uma ronda para me certificar que tudo está bem.
Algo bem ao meu lado me chama a atenção, uma coisa que nunca vi antes. Bem ao lado da escada da varanda, duas rosas acabaram de florescer. Uma rosa branca e uma rosa preta, levemente enlaçadas entre si.
Lembro-me de ver os dois botões crescendo timidamente no decorrer dos últimos dias, e este é o momento que finalmente abriram. Mas é muito incomum rosas abrirem durante a noite, ainda mais serem de cores diferentes.
E parece que, um novo caule começou a nascer entre as duas rosas, uma terceira flor em breve irá surgir.
Observo ambas com bastante atenção, me sentindo estranhamente ligado a rosa branca, e uma sensação de estar olhando para suas belas pétalas brancas, seu tamanho e sua beleza me dão a sensação de olhar a mim mesmo.
E no momento que meu olhar se volta a rosa negra, igualmente grande e com pétalas vivas, parecendo irradiar vitalidade em cada uma de suas pétalas, e nesse momento um grande carinho parece recair em mim. Um carinho, junto a vontade de cuidar e proteger essa rosa, que mesmo repleta de afiados espinhos de pontas vermelhas que até parecem serem capazes de queimar profundamente ao mero toque, ainda assim parece muito frágil e delicada.
Estranho, não sei bem o porquê disso, mas essa rosa me faz lembrar da Mika. Olhar para ela, é como olhar para aquele pequeno anjo que mexe comigo de tantas formas.
Não sei porque estou pensando nisso, mas esse pensamento me tira um sorriso. Mas sei que gostarei de olhar para essas rosas na porta de casa durante os próximos dias.
Ouço um bater de asas não muito distante de onde estou, o que tira minha atenção das rosas. Pressinto a proximidade da graça de outro anjo, e caminhando até o gramado, uma intensa luminosidade pode ser vista no chão, criando uma longa sombra a partir de onde estou, e em seguida de dois anjos pousam a minha frente.
- Ka'Su, precisamos conversar. – Ion'Alia se pronuncia sem demora, enquanto Lay'L para ao seu lado. – Agora, se possível.
- O que se trata? – Pergunto os olhando.
- Temos novidades. – Lay'L diz em uma empolgação apreensiva – Acredito que conseguimos localizá-lo.
- A Cria do Abismo? – Questiono com os olhos apertados, e Lay'L assente.
Olho para trás por um momento, entendendo que, para ambos terem vindo aqui, essa não será uma conversa curta.
Não tive notícias de Mika até então. Por isso, imagino que ela ainda não tenha voltado do submundo. Acredito que dará tempo de ter essa conversa.
- Entrem, e me contem o que descobriram. – Digo já girando sobre os pés e seguindo para casa, escutando os passos dos outros anjos bem atrás de mim.
Entramos em casa, e com um gesto indico para que se sentem, e assim o fazem, enquanto encosto a porta.
Admito ser um pouco estranho ter s dois aqui na minha casa. A sensação de que meu espaço está sendo invadido é grande, e fico desconfortável com os anjos olhando tudo com muita atenção.
- Pelo visto, você já organizou sua morada Ka'Su. – Ion'Alia diz, olhando ao redor.
- Ainda não, restam os quartos no andar superior que mal comecei a organizar. Estou limpando tudo aos poucos. – Respondo, já sabendo qual pode ser a intenção do anjo com essa sua fala. Ele concorda sem dizer mais nada, então continuo, antes que ele insista em vir para cá – Mas me digam, quais suas descobertas?
- A primeira coisa que descobrimos é que ele está em uma região mais ao norte daqui. – Ion'Alia começa a falar – Um dos nossos anjos viu alguém que bate com a descrição da Cria do Abismo. E estamos nos preparando para agir.
- Muito bem, desejam que eu evacue a região? – Questiono, tentando entender como os dois precisam de mim.
- Não, isso poderá alertar a Cria do Abismo de que algo está acontecendo. Queremos pegar ele de surpresa. – Ele conta me olhando fixamente – E para enfrentá-lo, precisamos da ajuda do máximo de anjos que pudermos contar.
- Vieram pedir minha ajuda para lutar contra ele. – Constato os observando.
- Precisamos de você Ka'Su. – Ion'Alia insiste. – Você disse que nos ajudaria nesta batalha.
- Com sua ajuda, certamente podemos conter ele. – Lay'L reforça, e ambos me olham com expectativa estampada em suas faces. – Quanto mais anjos, melhores são nossas chances.
Assinto pensativo, sabendo que essa não é só responsabilidade deles. Também é minha, afinal proteger essa cidade é a minha missão, e devo cumpri-la. Se tantos anjos estão aqui para localizar e conter essa criatura, não posso recusar.
- Quando pretendem se mover? – Pergunto os fitando, tendo a impressão de escutar um som familiar cada vez mais próximo.
- Nos próximos dias. Estamos nos preparando para... – Ion'Alia para de falar, quando o som de antes fica ainda mais próximo. Esse é o som do motor de um carro, que parece muito com o carro de Mika, e logo de imediato o som cessa quando se encontra na frente da casa. O anjo mal tem tempo de falar, e escutamos o portão sendo aberto. – Está esperando alguém, Ka'Su?
- Não. – Digo e já fico de pé, e neste momento os outros dois anjos também se levantam.
Com certeza estava esperando pelo retorno de Mika, mas não esperava que ela chegasse agora.
Vou até a porta e a abro, encontrando Mika parada, me olhando fixamente com os lábios apertados e, para minha completa surpresa, com uma criança em seus braços.
- Mika? – Consigo dizer, em minha surpresa que me deixa sem palavras – O que...?
- Klauss, me ajuda... – Ela pede com a voz fraca, me observando fixamente em uma súplica profunda. – Eu... Eu não sei o que fazer...
- O que aconteceu? – Me aproximo, e devagar olho para a criança para ver se está tudo bem com ela, e me dou conta que é a pequena menina adormecida, é a mesma criança que reconheceu Mika no parque dias atrás.
Ergo meu olhar de volta a Mika, tentando encontrar as palavras que me abandonaram por completo. Ela desvia seu olhar ao lado, como se fugisse de mim por algum motivo.
- Quem é essa Ka'Su? – Ouço Ion'Alia dizer atrás de mim, e por um momento fecho os olhos com força, sabendo que nesse momento as coisas se tornaram muito complicadas.
Mika tem sua feição tomada pelo espanto, e erguer de seu rosto a mim, revela o medo presente em seu olhar. – Essa voz? – Ela sussurra.
Devagar me viro para os dois anjos, que nos olham em mistos de estranheza, curiosidade e até surpresa.
Não sei como os dois irão reagir, por esse motivo, fico entre eles e Mika como uma barreira para que não alcancem ela e a criança, me sentindo nervoso e incerto do que pode acontecer.
- Mi'Ka? – Lay'L diz finalmente – É... É mesmo você?
Por um momento Lay'L abre um sorriso e dá um passo à frente, mas Ion'Alia a detém, e Mika recua um passo. Esse pequeno ocorrido fez Lay'L murchar, seus ombros encolhem e sua expressão é tomada pela confusão.
Mika permanece no lugar, olhando os dois fixamente. Ela abraça a criança com mais força, até parecendo que os dois anjos fossem uma ameaça e pudessem fazer algum mal a ela.
- Mika, leve a Mel para seu quarto. – Digo a olhando de relance, e movendo a boca devagar, digo em um sussurro para ela que vai ficar tudo bem.
Ela assente relutante, e olhando aos dois, Mika passa apressada pela cozinha e em momento algum meus olhos desviaram dela, e enquanto posso ouvir seus passos ficando mais distantes, sinto o desejo de ir atrás dela e descobrir o que houve. E soltando um suspiro, tenho os dois anjos com suas atenções voltadas a mim, aguardando por explicações.
- O que está havendo, Ka'Su? – Ion'Alia questiona, e mantenho meu silêncio, apertando os olhos para eles – A quanto tempo está escondendo a presença de Mi'Ka?
- Nós... Achamos que ela havia desaparecido. – Lay'L diz com cuidado – Ela... Estava aqui todo esse tempo?
- Estava. – Respondo os observando com bastante cautela.
- Mas... Ela está tão diferente de quando estava no paraíso... – Lay'L sussurra. – O que houve com ela?
- Ela se tornou uma caída. – Ion'Alia diz me olhando, seu tom não demonstra que espera uma confirmação minha, pois certamente ele sentiu o poder de Mika. Eu, porém, não expresso nada, afinal creio que não seja necessário qualquer confirmação – Você sabia disso?
- Sim, eu sabia. – Respondo.
- Você sabia também que ela não é somente uma caída? – Ele indaga seriamente.
- Vocês não estavam querendo saber sobre o paradeiro dela? – Devolvo o questionamento, vendo sua surpresa – Agora que finalmente encontraram Mika, por que está reagindo assim?
- Isso foi antes Ka'Su! – Ion'Alia rebate – Aquela não é mais a Mi'Ka que nós conhecemos. Não sente a energia do submundo que ela emana?
- Eu senti muito bem, desde a primeira vez que a vi. – Digo com firmeza, sem permitir me alterar um pouco que seja.
- E ainda assim, ela está aqui? – Ion'Alia e Lay'L trocam um olhar. Com isso Ion'Alia suspira, e apertando os olhos se volta a mim – Está abrigando um servo do submundo?
- Não estou abrigando ninguém. – Respondo com firmeza. – Mika mora aqui comigo.
- Espera... Você mora com uma caída? Uma que, além de tudo, serve ao submundo? – Ele insiste, cada vez mais incrédulo. Por sua face, poderia até dizer que Ion'Alia está aterrorizado.
- Você não entenderia Ion'Alia. – Respondo apoiando as mãos no encosto da cadeira, já me sentindo farto dessa conversa. – Mika pode parecer diferente de quem você conheceu, pode ser um anjo caído e abrigar o poder do submundo... Mas ela é mais do que isso!
- Mais do que isso? – Ela retruca – Ela não é somente uma caída. É um dos servos do submundo, ela está junto dos demônios. Essa Mi'Ka não é mais um anjo como nós e não pode confiar nela a ponto de trazê-la a sua morada, não entende isso Ka'Su?!
- Acredito ser eu quem deve decidir se Mika é confiável Ion'Alia, você gostando ou não! – Respondo apertando os olhos.
Ion'Alia não parece estar convencido de minhas palavras, nem da minha resposta.
Seu semblante sério indica que ele não gostou nem um pouco de Mika estar aqui, de encontrá-la como está hoje, e saber que ela não serve mais ao paraíso. Já Lay'L parece dividida, e a todo tempo o jovem anjo da legião demonstrou as dúvidas em seu rosto. Até tenho a impressão de que ela gostaria de ir atrás de Mika para falar com ela, mas algo a deteve no lugar.
Mas a verdade é que isso pouco me importa o que qualquer um deles pensa, pelo menos por agora. O que quero é ir até o quarto de Mika para saber se ela está bem, e o que aconteceu para voltar para casa trazendo a Mel junto.
- E você confia nela?! – Ion'Alia questiona, caminhando até mim e parando a minha frente. Seu olhar atravessa o meu. – Confia em uma caída?
Não respondo. Permaneço calado, sabendo o que, ou melhor, quem Ion'Alia se refere com suas palavras. Seu tom foi o mesmo de um questionamento feito no passado que agora, respinga em Mika, e que por mais que eu queira responder, o que consigo é manter meu silêncio.
Vários momentos que tive com Mika me vieram em mente agora, momentos calmos e momentos conturbados, tudo que passamos volta em minha mente como se tivessem acontecido a poucas horas. Minha mente busca uma resposta, mas não sinto que deva dizer a ele. Sei qual minha decisão e também minha resposta.
- Só me digam quando irão atrás da Cria do Abismo. Eu estarei lá. – Digo, em um claro sinal de que a conversa sobre Mika está encerrada.
Os anjos assentem muito a contragosto, caminhando para a porta da cozinha. Ion'Alia me olha de soslaio com bastante desconforto em seu semblante fechado – O manteremos informado. Tenha cuidado.
Não o respondo. Apenas assisto ele se afastando e, ao abrir suas asas, ele parte ascendendo aos céus, seguido por Lay'L.
Solto um suspiro encostando a porta, refletindo como as coisas foram acontecer desse modo. Tudo que eu gostaria é que não chegasse a esse ponto, mas as coisas resolveram acontecer todas de uma vez.
Esfrego uma mão no rosto por uma vez e, às pressas deixo a cozinha, atravessando a sala e saltando os degraus em passos largos, seguindo para o quarto de Mika.
Alcanço o quarto e, após algumas batidas na porta, entro devagar no cômodo escuro, vendo a pequena Mel ajeitada na cama, e Mika sentada ao seu lado, correndo uma mão sobre os dourados cabelos cacheados da criança com bastante carinho.
Neste curto momento, consigo perceber o cuidado que Mika dedica a pequena criança. Sei da ferida que existe nela nesse momento, uma ferida que não pode ser vista com os olhos, e mesmo assim, seu zelo por Mel é muito forte.
Gostaria de não interromper isso, e observar por mais tempo... Não, não só observar. Sei que minha vontade está além disso.
Com relutância Mika ergue seu rosto e me encontra em silêncio – Precisamos conversar. – Digo num sussurro para não acordar a criança.
O pequeno anjo boreal ajeita as cobertas sobre a criança, e ao se levantar, caminhamos para fora do quarto em passos não muito ruidosos, descendo de volta para a sala.
Sento no sofá, e olho para Mika em um sinal para ela sentar-se ao meu lado, e assim ela faz, mesmo que mantenha certa distância de mim – O que aconteceu Mika?
Ela não me olha a princípio. Apertando seus lábios, ela exala um ar irritado, talvez frustrado, e claramente ela parece fugir de mim – Você vai ficar bravo comigo...
Aperto os olhos, estranhando ela dizer isso – Por que ficarei?
- Eu... Recebi um novo trabalho... – Ela diz receosa, apertando suas mãos.
Agora as coisas começaram a fazer algum sentido, e por que ela acredita que ficarei bravo. Não nego que saber desse novo trabalho causou um sentimento estranho em mim, um desconforto unido a irritação, o que faz com que algo fique inquieto dentro de mim. Apesar disso, não digo nada, prefiro deixar que Mika me conte tudo antes de falar algo.
- Sei que combinamos que quando eu recebesse um novo trabalho, eu iria te contar, mas... – Mika fala um pouco acelerada, finalmente erguendo seu olhar a mim – Eu recebi enquanto estava no submundo, e era um trabalho simples, então... Eu quis voltar ao mundo humano e cumprir ele sem te falar... Porque cumprindo ele, poderia voltar pra casa sem me preocupar com isso, e continuaríamos vivendo juntos sem isso deixando tudo estranho entre a gente, e eu não queria isso, e... E... Fala alguma coisa Klauss!
Observo seu nervosismo, percebendo como agora ela está virada em minha direção, segurando um dos meus braços com firmeza aguardando por uma palavra minha. Qualquer uma que seja.
- Qual era seu trabalho? – Pergunto. – E onde a Mel entra nesse trabalho?
- Eu... Eu tinha que buscar a alma de um criminoso que havia adoecido... – Ela diz com pesar. Seus olhos caem novamente e posso sentir o tremor de suas mãos em meus braços – Era apenas uma alma, e tinha todos os detalhes de onde eu iria encontrar ela... Tudo mostrava que era um trabalho fácil, mas eu não sabia que o criminoso que eu buscava era na verdade uma criminosa... Nem que essa criminosa era a mãe da Mel.
Me espanto um pouco ao ouvir essas palavras, e não é difícil deduzir o que pode ter acontecido, nem a aparente crueldade escondida dentro de um trabalho que parece ter surgido de forma premeditada. Minha dedução se mostra correta quando Mika busca algo no bolso de sua blusa, e o brilho presente me faz reconhecer ser uma alma.
- Eu... Eu não queria... – Ela sussurra nervosamente – Quando entendi que era a mãe da Mel, não queria mais seguir com esse trabalho, mas... Ela... Ela estava muito doente, parecia muito fraca... E ela não se assustou quando me viu...
- Me conte o que aconteceu. – Peço, segurando suas mãos e olhando fundo em seus olhos, de modo a tentar acalmá-la – Respire fundo, e me conte tudo no seu tempo.
- A mãe da Mel me contou sua história... – Mika continua, olhando para a alma que brilha entre suas mãos com firmeza – Contou que o pai da Mel morreu faz pouco tempo, e por ela não ter um trabalho estável, ela começou a roubar coisas para manter a casa e a filha, por isso a Mel sempre ficava sozinha... Ela disse que não queria, mas não tinha outra solução, e não tinha pessoas pra contar nessa cidade, e nem tem contato com a família dela... Então ela começou a fazer isso pra conseguir se manter e cuidar a Mel, mas ela foi adoecendo e não tinha condições de se cuidar... E seu estado foi piorando muito.
Com a cabeça vou concordando, dedicando minha atenção em cada palavra que ela diz.
- E... Quando eu disse o porquê de estar ali, que estava lá para buscar a alma dela, ela... – Mika aperta seus olhos, e os abrindo novamente, percebo como eles encheram, e uma primeira lágrima solitária cai pelo seu rosto, conforme sua respiração se altera com um primeiro soluço – Ela disse que estava feliz que a Mel estava certa sobre mim, e apesar de saber que aquele era seu fim, era um alívio saber que um anjo tinha ido buscar ela, era uma esperança que apesar de tantas coisas erradas, ela poderia ser perdoada... E antes de tirar a alma dela, ela me pediu para cuidar da Mel, e ela morreu com um sorriso no rosto... E por que eu estou assim?! Eu não me importo, então por que isso me dói tanto?!
Seu olhar fixa em mim, exasperada e com a raiva queimando em seu olhar intenso que até parece penetrar o mais fundo do meu ser e enxergar os meus pensamentos mais secretos, mas isso pouco dura, já que logo a raiva se esvai, dando lugar a um semblante frustrado e entristecido.
Devagar ela vai se aproximando de mim, em um gesto que a própria nem deve ter reparado, e sem que qualquer palavra seja dita, passo os braços em torno de Mika e a abraço, rompendo toda a distância que havia entre nós. O pequeno anjo esconde seu rosto em meu ombro, e devagar suas mãos passam ao meu redor, firmando em minhas vestes.
- Por que eu estou tão triste Klauss? – Ouço sua voz tremula e abafada – Eu nunca senti nada, por que agora dói tanto?
- Eu não sei Mika. – Respondo sincero, afagando seu cabelo com carinho, buscando de alguma forma confortá-la, e fazer com que se sinta melhor. Escutar seus soluços e ver sua dor é horrível, e não sei ao certo o que fazer para que ela se sinta melhor – Talvez no fundo, você se importe.
- Eu não queria... – Ela diz me apertando com força. – Eu não queria mesmo... Não queria nada disso... Eu reconheci ela, quis desistir do trabalho, e toda vez que lembro de ir buscar a Mel, eu me arrependo cada vez mais... Mas eu não podia desistir... Eu precisava continuar...
Isso me faz pensar em algo. Mika nunca desistiu de nenhum de seus trabalhos, ela sempre esteve empenhada em realiza-los, não importasse a situação.
- Por que você não podia desistir? – Questiono em um sussurro.
- Eu... Preciso te contar uma coisa... – Mika diz baixinho.
Devagar ela ergue seu rosto ao meu, sem se afastar. Vejo seus olhos inchados, a boca trêmula e as bochechas molhadas e um pouco avermelhadas, e num gesto automático, passo um dedo gentilmente pelo seu rosto para secar as lágrimas, e lentamente minha mão busca seu cabelo, em um carinho silencioso para acalmá-la, e dar o tempo que precisa para falar.
Não pretendo, e não irei forçar Mika a falar. Vejo e sei muito bem como está abalada, e não quero pressioná-la de forma alguma. Tudo o que quero agora é fazer com que ela se sinta acolhida e segura.
- Você... Se lembra de quando me falou que desapareci por um ano... E eu disse que para mim, foram cem? – Ela pergunta sem me olhar, e faço que sim com a cabeça – Era verdade... Eu... Estive aprisionada no submundo por mais de cem anos...
- Você... Esteve aprisionada por mais de cem anos? – Pergunto assombrado, e ela assente levemente. – Mas, isso é loucura. Uma punição tão grande por interferir na vida humana?
- Eu interferi na ordem natural... – Ela diz entristecida – Por isso, o Grão Mestre Arcanjo decidiu essa punição... E eu já havia cometido um outro erro antes...
- Manifestar uma aurora para um único humano, em um lugar não adequado. – Digo, sabendo de qual incidente ela se refere.
- Sim... E durante esses cem anos... Todos os dias eu era castigada pelo meu erro... – Mika se encolhe ao começar a contar. Sua voz treme, e percebo como ela está hesitando em continuar, mas respirando fundo, ela volta a falar – Sempre, não havia um dia que não acontecia algo comigo... O calor escaldante, ou o frio congelante na minha pele... Os golpes vindos de todos os lados, acertando meu corpo sem parar, as lanças que perfuravam minha pele... Os líquidos escaldantes que me cobriam até que eu sufocasse, as mãos e garras que me feriam... Dia após dia, tudo acontecia, sempre repetia, me levava ao limite da loucura e por mais que eu implorasse por perdão, por mais que eu implorasse para morrer e tudo acabar, nunca fui ouvida, e por cem anos, aquela torturas se repetiam todos os dias...
Estou horrorizado com o que Mika está me contando, baqueado ao saber pelo que ela foi forçada a passar. Suas palavras, apesar de agora estarem calmas, carregam toda a dor que ela sentiu sozinha por todos esses anos.
- Eu já não aguentava mais Klauss, aquilo me quebrou e eu sabia que não tinha como escapar dali, então perdi minhas forças, e desisti... Parei de gritar de dor, parei de pedir por ajuda, ou por perdão... Eu nunca fui ouvida, e ninguém nunca apareceu lá para mim... Eu perdi minhas esperanças, desisti de mim, e só aceitava toda a dor que viria a seguir, sem mais demonstrar o quanto tudo ainda doía... – Mika diz com pesar, e sequer encontro palavras para dizer qualquer coisa – Mas um dia, aconteceu uma coisa... Algo diferente dos cem anos que passei...
- O que houve? – Pergunto com cuidado.
- A soberana do submundo apareceu, e me fez uma proposta... – Mika respira fundo por uma vez, retomando seu fôlego – Eu poderia ter minha liberdade, mas... Mas para isso, eu deveria servir ao submundo, coletando almas para eles...
- É por isso que você sempre tenta cumprir seus trabalhos. – Sussurro.
- Sim... Na primeira vez que nos vimos, também era a primeira vez em longos cem anos, que pude deixar o submundo e vir ao mundo humano. – Ela diz num sussurro, e lembro daquela noite que vi Mika pela primeira vez, quando não sabia nada sobre si e acreditava ser somente outra enviada do submundo como tantos outros.
Tudo naquela noite volta nas minhas memórias num lampejo. As lembranças de quando a vi pela primeira vez correndo para longe da bagunça causada e o que senti naquele momento que meus olhos pousaram sobre ela. Eu a enxergava como uma nova ameaça que havia surgido e que deixei escapar.
Sequer imaginava que aquela era a primeira vez que voltava ao mundo humano depois de tanto tempo, e era o momento que finalmente estava tendo sua liberdade novamente.
- Eu fiquei assustada quando te vi... Fiquei surpresa, e muito encantada por ver outro anjo no mundo humano, mas eu fiquei assustada... – Ela diz com pesar – Só depois, quando consegui fugir e chegar ao submundo, que pensei no que poderia ter me acontecido se tivesse falhado naquele trabalho... Lembra que eu tinha uma mochila comigo?
- Sim, eu me lembro. Você não largava dela. – Digo enquanto penso naquele momento.
- Tinha uma alma dentro dela, a primeira que eu precisei coletar. – Ela confessa baixinho, e percebo que sua voz, apesar de trêmula e com muita tristeza, está mais calma – Mas acho que você já sabe disso...
Deixo escapar um sorriso com o que ela diz – Realmente sei.
- Mas sabe, eu sempre tentei cumprir meus trabalhos... Sempre tentei cumprir eles... E não sei o que pode me acontecer se eu não cumprir... – Ela diz com a voz assustada, me segurando com força – Tenho medo de falhar, e acabar acorrentada naquele lugar outra vez... Mas... Eu não quero cumprir esse trabalho Klauss... Não quero levar essa alma para eles...
Penso sobre o que ela me contou, e preocupado com o que pode acontecer com Mika se ela retornar ao submundo sem levar consigo a alma que foi enviada para buscar. Pode ser arriscado, e talvez decidam punir Mika de alguma maneira por não cumprir seu trabalho, e não irei permitir que isso aconteça.
- Dói Klaus... – Ela sussurra apertando seu rosto em mim – Dói demais, meu coração dói tanto que não consigo suportar...
- Acho que não deve retornar ao submundo agora. – Digo sussurrando, e apesar do alívio notório em Mika, seu olhar também é confuso. – Você está muito abalada com tudo que aconteceu, isso te machucou demais, e agora, você precisa se recuperar.
- Tem certeza...? – Ela indaga, gaguejando um pouco.
- Sim, e agora, a Mel também está aqui conosco. E ela vai precisar de você quando acordar. – Explico tocando seu rosto – Devemos pensar no bem daquela pequena, e cuidar dela durante os próximos dias.
- É verdade, não quero que ela fique sozinha... E agora, eu... – Mika me olha, e seus olhos enchem novamente – Klauss, eu... Eu tirei a alma da mãe da Mel... Ela foi uma das primeiras humanas que conheci, e é mãe de alguém que é importante pra mim... O que eu me tornei?
- Nós iremos dar um jeito Mika. Se acalme, você não está sozinha nisso... Você não vai carregar tudo isso sozinha, eu estou com você nisso. – Digo com suavidade tentando confortá-la, e mesmo entristecida querendo chorar, ela assente devagar.
- Você... Você promete? – Ela pede devagar – Promete que não vai me deixar sozinha...?
Sorrio para ela, assentindo com a cabeça – Sim, eu prometo. Não vou te deixar sozinha.
- E... E quanto a ela? – Mika ergue as mãos com a alma que cintila timidamente entre seus dedos, como uma espectadora de toda nossa conversa.
- Vamos decidir o que fazer. – Respondo pensativo, quando algo me vem em mente – Irei usar as Revelações para descobrir mais sobre a vida dela, e saber se existe algum familiar da Mel que podemos procurar.
- Você sabe usar as Revelações? – Ela pergunta.
- Sei. Aprendi enquanto ainda vivia no paraíso. – Digo, pegando a alma de suas mãos gentilmente. – Você teve um dia muito conturbado Mika, quer ir descansar com a Mel?
- Tudo bem se for? Não quero deixar ela sozinha, mas... – Ela hesita, me olhando por alguns segundos, e sei que ela própria está confusa com tantas coisas.
- Pode me chamar a qualquer momento, eu irei correndo até você. – Digo com um sorriso sereno.
O olhar do pequeno anjo permanece em mim, e nesse momento Mika me abraça mais uma vez, a qual retribuo com carinho sem hesitar, e assim permanecemos por algum tempo.
- Se eu chamar, você vem mesmo? – Ela pergunta manhosa, se afastando devagar em claro contragosto.
- Sim, eu irei. – Respondo, e ela esboça um pequeno sorriso. O primeiro desta noite, e me alívio ao finalmente vê-la sorrindo outra vez.
Mika deixa o sofá e vai seguindo escada acima, parando por um momento e me olhando novamente. Um olhar que, por mais curto que seja, para mim foi como se perdurasse por longas horas, em que sei como ela se sente e tudo que existe em seu interior, suas confusões, dúvidas, inseguranças e seus medos, muitas coisas foram ditas, sem a necessidade de quaisquer palavras.
Em um pequeno aceno, ela me da um novo sorriso, antes de seguir subindo ao quarto. Pequeno, mas sincero, capaz de aquecer meu interior com uma sensação boa que me preenche profundamente, eu mesmo não entendo tal sensação.
Solto um suspiro enquanto me encosto melhor no sofá, olhando para a alma que paira entre meus dedos, refletindo como as coisas chegaram a esse ponto.
Mas fico contente em ter conseguido convencer Mika a não retornar para o submundo por enquanto. Isso me dá tempo o bastante para pensar em uma desculpa satisfatória do porquê desta alma não ser levada.
Definitivamente, eu não permitirei que essa alma seja levada aos domínios do submundo.
E com certeza, encontrarei um meio de Mika entrar e sair ilesa daquele lugar. Ela não receberá punição alguma!
Levanto do sofá, e caminhando até fora de casa, me preparo para iniciar as Revelações. Quero saber mais sobre a mãe de Mel, como era sua vida e também, ter certeza se não existe alguém que poderemos procurar que irá cuidar bem daquela pequena.
Manifesto minhas asas, que rompem as sombras da noite com seu brilho intenso, estendo meus braços e junto minhas mãos frente ao corpo, e com isso começo a manifestar minha graça sem demora.
O ambiente à minha volta reage com o agir da minha graça. O vento se altera, percorrendo ao meu redor e mergulhando fundo entre a vegetação que rodeia este lugar, de uma forma que não fere o que existe ao redor. É um vento que apesar de continuo, é uma corrente de ar serena que se expande por todos os lados.
Fecho meus olhos, concentrando meu poder na alma entre minhas mãos – Revelações!
Mesmo com meus olhos fechados, enxergo pequenos feixes branco azulados que se assemelham a pequenas chamas manifestam-se a partir da alma, crescendo pelo meu braço e envolvendo meu corpo, e espalhando-se ao meu redor.
Dessas chamas, uma intensa luz se manifesta, tão forte quando a luz do sol iluminando a tudo ao meu redor, quando algumas imagens começam a aparecer para mim, como se estivessem acontecendo bem diante de mim.
Concentro-me e entre tantas imagens que saltam por todos os lados, enxergo vários momentos da mulher que vi antes naquele parque, em lampejos diferentes. Lugares diferentes, momentos diferentes, muitas etapas de sua vida, desde sua infância até a idade adulta.
Enxergo seu crescimento, uma adolescência sadia com uma família que, apesar de não ser de muitas posses, ainda era unida. Vejo seu envolvimento com alguém que surgiu no início de sua vida adulta e o envolvimento forte que tiveram, os momentos que passaram e o caminho que percorreram juntos, além das sensações que teve.
Enxergo um momento sombrio se iniciando, nos momentos que sua gravidez se anunciou, e consigo notar um desprezo pela vida que ainda não havia sido concebida. A família antes unida, agora estava afastada, e pessoas que antes eram próximas se distanciaram, e muitos deram as costas um ao outro, convertendo-se em estranhos.
Mesmo assim, uma grande onda de felicidade pode ser sentida em um momento, não preciso ver tal momento para saber o que significa. Consigo sentir neste lampejo como foi o momento que mais marcou sua vida, o momento que ela tinha ao seu lado alguém que a fazia bem de todas as maneiras e sempre estava ali, e era o momento que uma nova vida surgia de sua união.
Vejo os primeiros momentos de Mel, seus primeiros dias, e com o passar dos lampejos, a pequena menina arrisca seus primeiros passos acompanhada dos pais, e apesar de recorrentes complicações, estavam frequentemente juntos, sendo apoio um do outro em todas as situações.
Os lampejos avançam, e a figura que antes surgiu no início da fase adulta desta mulher e era a figura que Mel tanto gostava, teve um fim prematuro, causado em um acidente de carro. Deste momento em diante, a mãe se encontrou em meio a um cenário conturbado e cada vez mais difícil, onde a cada dia as coisas se tornavam mais complicadas, e mesmo buscando aqueles que antes eram sua família, não encontrou apoio.
Sua busca por soluções não teve resultados, as portas nunca abriam para ela, e sua aflição cresceu a cada dia. O sentimento de desespero foi crescendo, tomando sua mente, e saber que logo aquilo afetaria sua filha que mal entendia ou tinha culpa a fez tomar medidas drásticas.
Com a dor no peito de deixar sua filha sozinha e praticar aquilo que nunca desejou, ela passou a cometer delitos, muitos deles pequenos sendo eles apenas furtar mantimentos para sua casa, outras vezes eram ações maiores como levar carteiras ou esvaziar caixas registradoras, sempre escapando o mais rápido que podia e voltando para sua filha.
Isso perdurou por meses, e sua aflição a adoeceu cada vez mais. Sua saúde se debilitava, mas mesmo assim ela se arriscava dia após dia pela filha para que nada faltasse, e mesmo sabendo dos riscos e do quão errado estava agindo, tudo que ela pensava era na pequena que sempre a esperava, e sempre sorria em sua inocência quando a via chegando.
Tudo encontra seu fim no momento em que reconheço a figura que surge em sua frente, parada em meio a sala de sua casa com uma mão envolta em chamas e um olhar surpreso no rosto.
A mulher, que antes estava assustada com a aparição repentina e com medo do que a aguardava, sentiu a esperança de talvez ser perdoada, e em paz por poder partir e deixar sua filha com alguém que sabia que verdadeiramente gostava de sua filha e poderia cuidar dela, e desse momento sua vida se encerra, com a mulher partindo em paz e com um sorriso sincero no rosto.
Seu nome era Felícia.
Abro meus olhos novamente, observando a alma entre minhas mãos e algumas chamas ainda percorrendo em torno de meus braços. Lentamente aproximo a alma para perto de mim, e a acolhendo entre minhas mãos, dedico um pequeno momento a essa alma e a vida de Felícia.
Meus pensamentos se assemelham a um conturbado mar em meio a uma noite de tormenta de tantas coisas presentes em minha mente nesse instante, baseadas em tantas coisas que acabei de presenciar nas revelações, e da família que virou as costas para ela.
Essa alma não merece ser condenada ao submundo. Apesar de seus erros, nenhuma de suas ações foi pelo mal, sempre foram pelo bem da jovem menina de cabelos dourados que Felícia amou mais que a sua própria vida.
Torno a caminhar de volta para a casa em passos lentos, refletindo o que podemos fazer. Vi a família de Felícia que apenas viraram as costas para ela e não mantinham tanto contato. Muitos deles são parentes que sequer conhecem a pequena Mel.
Não quero entregá-la a pessoas que mal a conhecem, e que nunca foram sua família.
Aproximando-me da porta da cozinha, quando meu olhar é atraído para algo que momentos antes chamou minha atenção. Observo as duas rosas de antes, onde tanto a rosa branca quanto a preta aparentam estar um pouco diferentes. Não sei ao certo o porquê, mas algo está diferente.
Reparo também que o pequeno botão, apesar de muito menor, parece dar os primeiros sinais de que irá desabrochar nos próximos dias, em uma rosa menor.
Olhando para as rosas, algo me vem em mente. Algo estranho, uma hipótese que eu mesmo não entendo, e junto dessa hipótese, tomo uma decisão.
A Mel deve ficar conosco.
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