Capítulo 27
5630 Palavras
Da porta do quarto, observo Mika descansando em sua cama, ressoando baixinho em sua profunda serenidade. Seu sono está tão profundo que ela mal se moveu a noite inteira, e mesmo assim, não deixo de admirar a leveza em seu rosto.
Mesmo no escuro, consigo enxergar perfeitamente os belos traços de seu rosto, e a aparente tranquilidade que existe nela. Não deixo de sorrir sozinho enquanto assisto seu sono.
Chegamos tarde ontem, já que Mika quis conhecer a cidade o máximo que aguentava, até ficar cansada e querer voltar para casa. Não neguei sua vontade, afinal, se irá morar aqui, o ideal é que conheça a região.
E no momento que voltamos, imaginei que ela iria querer dormir, mas o que fez na realidade foi se jogar no sofá, com um livro em mãos, e começar a ler, até então desmaiar de cansaço. Mika até que leu bastante antes de adormecer de fato.
Acabei a trazendo para seu quarto e a ajeitei para poder dormir melhor, e voltei para a sala para me dedicar a uma das minhas leituras, mas vez ou outra vim ver se Mika estava bem, e neste momento foi uma dessas vezes.
Encosto a porta e desço de volta para a sala, ainda pensando sobre o que aconteceu ontem. Foram tantas coisas que meus pensamentos estão bem bagunçados, e até então estou tentando organizar, mas sequer sei por onde começar.
Aqueles momentos malucos no parque de diversões, que a Mika pareceu adorar cada segundo. Isso foi uma certeza, e acredito que Mika vai querer voltar ali, para o meu desespero... Como humanos conseguem achar aquelas coisas divertidas?
É tudo tão repentino e rápido, senti que fui jogado de um lado para o outro tantas vezes, que foi a primeira vez que senti o mundo a minha volta girando daquela maneira... Mika também, mas ela sempre queria mais, e não pareceu se cansar em momento algum.
Quando achei que ela havia se cansado, Mika apenas recuperou o fôlego para repetir a dose em todos os brinquedos mais rápidos. Mas por ela ter se divertido e gostado tanto, acredito que valeu muito a pena.
Já depois, encontramos a pequena Mel. Logo a princípio notei que aquela encantadora criança era importante para Mika de alguma maneira, mas não sabia ao certo como... E acredito que Mika também seja muito importante para Mel, é notável.
Mas entendi o que cativou tanto o antigo anjo boreal. Ela conversa muito, e não é cansativo ouvi-la falar. É bem o contrário, seu jeito descontrolado de conversar é até divertido, e duvido ser possível ficar sem assuntos ao conversar com aquela menina.
Foi uma surpresa saber que ela foi a criança que Mika se revelou como um anjo e levou para ver uma de suas auroras, como também foi a primeira humana que conheceu quando veio a este mundo um ano atrás.
Tudo foi se encaixando quando a pequena pediu para ver as asas de Mika com tamanha inocência e também tanta certeza do que pedia, e ela aceitou mostrar, mesmo estando tão relutante. Na verdade, eu esperava que Mika aceitasse mostrá-las, pois eu mesmo gostaria de vê-las novamente.
O que me deixou sem reação alguma, foi Mel comentando sobre namoro, e logo depois Mika me perguntando, e eu não soube como responder, nem o que responder. Não esperava que ela me perguntasse sobre.
Inclusive, eu mesmo não conheço muito sobre namoros e outros relacionamentos, além do básico e do que ouvi de alguns humanos que conversei algumas vezes.
Mas a respondi ontem, e não a neguei. Isso significa que, agora, Mika e eu namoramos?
Se for, então isso explica a recorrente e muito agradável sensação que espalha-se em meu interior em todo momento que a vejo, ou que penso nela? Explica essa preocupação que tenho com ela e seu bem estar? Ou até mesmo o desejo de cuidar dela, desfrutar de sua presença e seu sorriso sempre?
Aliás, se estamos mesmo namorando, o que acontece agora? O que Mika e eu fazemos agora? O que eu faço agora?
Não sei e nem faço a mínima ideia de qual seja a resposta desses meus questionamentos, mas eles crescem em mim conforme busco por respostas. Não tento reprimir esse sentimento anormal, nem nunca tentei, mas é normal parecer tão profundo?
Alcanço a cozinha, e parando ao lado do batente, observo a bela, porém fria manhã por alguns momentos. Assistindo o horizonte, sinto a brisa matinal tocando meu rosto, me envolvendo no aroma natural dessa região onde vivo, e em meio a leveza dessa brisa, me dou conta da mensagem silenciosa presente em meio ao suave assobio da brisa, e com isso, sei que eles já chegaram à cidade.
Devo ir encontrá-los.
Sei que tem algumas coisas nos armários, então Mika poderá se servir assim que acordar.
No momento, não me preocupo em deixá-la sozinha, pois creio que não irei demorar. Entretanto, podem sentir a presença dela no futuro, então será bom erguer uma barreira de proteção em torno da casa assim que voltar.
Deixo a casa, caminhando até meu carro em passos não muito apressados. Neste momento, preciso resolver algo, além de lidar com minhas próprias dúvidas sobre ontem.
Na verdade, não ignorarei minhas dúvidas. Após lidar com os assuntos maiores, irei procurar alguém que poderá me ajudar a entender melhor o que estou pensando, e talvez, o que eu esteja sentindo.
*****
Deixo meu carro, e vejo o pequeno grupo reunido aguardando minha chegada, frente a uma modesta praça, pouco movimentada para essa hora da manhã.
Todos os anjos vestem o característico branco do paraíso, de formas não muito diferentes uns dos outros. Os humanos que já os viram devem achar que são um grupo de médicos, ou algo bem próximo disso.
Reconheço Ion'Alia e Lay'L de imediato, eles estão acompanhados de outros cinco anjos que, apesar de reconhecê-los de antigas missões juntos, não tenho tamanha amizade.
- Demorei a chegar? – Questiono ao me aproximar do grupo.
- De forma alguma Ka'Su. – Ion'Alia responde com um sorriso.
- Qual a situação atual? – Questiono olhando a todos.
- Estamos nos organizando sobre onde ficar, ainda não temos isso resolvido. – Lay'L explica com as mãos na cintura, e isso me preocupa inicialmente – Ainda não recebemos orientações exatas sobre nossa estadia.
- Passei pelo mesmo quando me enviaram para essa região. – Explico com base na minha própria experiência – Esperei alguns dias até me falarem onde eu iria morar. Mas tive o benefício de explorar a região. Recomendo fazerem o mesmo para conhecerem mais da cidade, e também os distritos próximos.
- Talvez façamos isso. De fato, será bom termos melhor conhecimento deste local. – Ion'Alia diz em tom pensativo, e no momento em que seu olhar vem a mim, entendo perfeitamente o que ele está pensando nesse instante – Apesar que, podemos ficar abrigados em sua casa até recebermos nossa própria morada.
Torço a boca com essa proposta de Ion'Alia, e me preocupo por Mika estar morando comigo, e levar tantos anjos para minha casa é uma sentença de morte para Mika, e jamais farei algo desse tipo com ela. A convidei para viver comigo para que pudesse ficar segura e ter certeza que ela fique bem, e não para entregá-la para a Legião.
E também, já imaginei que os anjos enviados teriam a ideia de se reunir na casa onde estou, mas esperava que isso não acontecesse.
- Sinto muito, receio que isso não será possível. – Respondo, ganhando um olhar interrogativo de Ion'Alia. Já Lay'L se mantém em silêncio, talvez por não ter muito como se opor nesse instante.
- Por que não? – Ion'Alia questiona – Sua morada é grande, capaz de comportar a todos, e quem sabe, até se tornar uma base para nós anjos da Legião.
- De fato. – Respondo, me preparando mentalmente para proferir essas palavras – Mas minha casa não está em bom estado recentemente. Existe muita bagunça pela casa inteira, resultado de muitos objetos que coletei para estudos, não sobra espaço nem para mim.
- Eu ouvi direito? – Ion'Alia dá um pequeno riso – Ka'Su, o metódico anjo da lua pálida, deixou sua morada bagunçada?
- Nem eu sei como aconteceu. – Respondo, tentando parecer verídico no que acabei de falar, o bastante para convencê-lo – Mas quando vi, tudo estava desorganizado e eu já estava habitando com uma pilha de coisas, e ainda não tirei um tempo para organizar a casa. Existem muitas coisas a qual preciso me desfazer para poder recebe-los devidamente.
Com um sorriso em seu rosto, Ion'Alia se aproxima levemente de mim, apoiando uma mão em meu ombro. Apesar de não me mover, temo que ele não tenha acreditado na minha desculpa.
- Pode ser sincero comigo. – Diz num sussurro – Você não quer se despedir do silêncio.
- Também. – Respondo sem demora, um pouco aliviado pelo meu amigo ter compreendido de tal maneira – Aprecio o silêncio da minha casa, e acredito que ter tantos anjos comprometerá meu silêncio.
- Eu o entendo. – Diz se afastando – Espero que em breve, possamos ir para sua morada, Ka'Su.
- Em breve, vocês irão. – Respondo observando o grupo, já pensando como eu os deixarei longe de Mika. Outra coisa me vem em mente, sendo o motivo deles terem vindo para cá – Sentiram a energia?
- Sim, o ar é muito mais denso nessa região. – Lay'L comenta em voz baixa – Ainda estou conhecendo este mundo, mas é notável como essa cidade é diferente das demais. Aparenta ser mais pesada do que onde estávamos antes.
- Reconheço essa pressão. Já a senti antes – Ion'Alia comenta, com seu olhar erguido ao céu. Seu semblante endurece, e ele aperta os olhos – Ele está mesmo aqui.
- Você já o encontrou antes, não é? – Questiono apertando os olhos, e o anjo me confirma em um acenar. – Sabe dizer se ele está próximo?
- Infelizmente, não. É uma força muito densa. – Ion'Alia balança a cabeça – Ele parece não saber como ocultar a própria presença, mas não faz diferença. Por ter um poder tão massivo, não conseguimos identificar sua presença exata.
- Precisaremos procurar por essa criatura do Abismo do método mais difícil. – Constato pensativo.
- Sim... – Ion'Alia encara o chão, e sua frustração é tão grande, que chega a ser palpável – Eu deveria ter arrancado a cabeça dele fora quando tive a oportunidade. Ainda não creio como me deixei assustar quando o vi da primeira vez, ainda mais tão fraco como estava.
- Terá outras chances Ion'Alia. – Lay'L diz, em uma tentativa de animar o mais velho.
- Sim Lay'L, eu terei. E só preciso de uma única nova oportunidade para lidar com ele. – Os olhos do anjo brilham e os cabelos prateados flutuam levemente, ao momento em que o vento ao nosso redor se agita bruscamente nessa manifestação sutil, mas intensa, de seu grande poder, escondido em uma aparência tão bela e também tão frágil.
Os demais anjos não acreditam no que esse anjo é capaz, iludidos pela aparência esguia que une o masculino e o feminino. Mas eu sei muito bem o porquê dele ser chamado de Ion'Alia, o Anjo da Lua Sangrenta.
O anjo suspira e tudo se acalma aos poucos. O vento diminui seu ritmo, e as árvores param de sacolejar, conforme sua tranquilidade é retomada – Inclusive, ouviu sobre Ru'Ri? – Ion'Alia questiona.
Cruzo meus braços, refletindo por um momento – Alguns poucos boatos, que se mostraram infrutíferos. Desde que se tornou uma caída, Ru'Ri desapareceu por completo.
Ion'Alia assente devagar, com um semblante nostálgico. Sei que sente falta de Ru'Ri, assim como também sinto. Era o terceiro anjo do nosso esquadrão, e a muito tempo se tornou uma caída. Após isso, se tornou difícil ter qualquer informação concreta sobre ela.
- Receio que eu deva ir. – Digo de repente, atraindo o olhar de ambos – Tenho um lugar a ir agora cedo.
- Repleto de compromissos. – Ion'Alia brinca.
- De certo modo, sim. Irei assistir à apresentação de um músico humano. – Digo, recuando um passo. – Desculpe-me por precisar ir tão rápido. Tornaremos a nos ver.
Mal dou tempo de me responderem. Entro no meu carro e dou a partida, indo para a casa do jovem músico.
Minha cabeça está cheia neste momento, mas ter encontrado os anjos me deixa mais calmo.
Agora, preciso entender o que são todos esses sentimentos dentro de mim.
*****
Encontro-me frente ao portão não muito alto, mas completamente fechado. Por trás dos muros, consegui ver algumas janelas abertas, então sei que a casa não está vazia.
Aperto a campainha e espero. Após pouco tempo, ouço passos do outro lado, e o jovem rapaz de barba falhada e aparência bem desalinhada aparece a minha frente, com um ar de espanto.
- Senhor Klauss? – Ele diz assim que me vê – Que bom vê-lo. Mas... O que faz aqui?
- Preciso conversar com alguém. – Respondo – E acredito que você seja a pessoa certa.
- Ah, claro... – Ele gagueja a princípio – Quer entrar e tomar um café?
- Agradeço o convite, mas não. Não pretendo tomar muito de seu tempo. – Digo e ele assente.
- Mas, sobre o que precisa conversar senhor Klauss? Te conheço a anos, e nunca te vi tendo uma dúvida sequer. – Ele diz em tom pensativo. – Acho que essa é a primeira vez... Me diga, claro, se eu puder te ajudar...
Reflito em meus pensamentos nesse curto momento, e tudo que houve ontem – Como funciona um namoro?
O rapaz salta as sobrancelhas – Como é?
- O que ouviu. Como funciona um namoro? – Reforço minha pergunta, e decido expandir um pouco mais – Como funciona, o que as pessoas envolvidas fazem, como as coisas acontecem?
- Uau, quantas perguntas... Nunca te imaginei tendo dúvidas com isso. – Ele diz, passando a mão na barba – Olha... Acho que não tem uma forma única, tem namoros e namoros. E cada um funciona de um jeito diferente...
- De um jeito diferente? – Questiono.
- É, alguns são bem movimentados, cheios de brigas, de idas e vindas... Outros são calmos e quase nunca dão problema, os dois se entendem bem... Alguns são bem intensos... – ele diz, bastante pensativo por sinal – Acho que a única coisa que eles tem em comum, é que as pessoas costumam se gostar.
- Costumam? – Aperto os olhos.
- É, tem muitos namoros que as pessoas não se gostam de verdade, estão ali apenas por estar... Ou são unilaterais, de só uma pessoa se entregar... Ou porque é conveniente de alguma maneira. – Ele conta, torcendo a boca levemente.
- Existe a possibilidade de um não gostar do outro? – Pergunto surpreso.
Ele assente quase que de imediato – E como, não é difícil de acontecer não... O porquê disso, eu não sei... Isso que não falei das pessoas enjoarem e deixarem de se gostar.
Balanço a cabeça, tentando ignorar essa última parte que ouvi. Não quero saber detalhes sobre relacionamentos onde os envolvidos não se gostam, pelo menos não agora.
Já sabia que haviam muitos detalhes, mas não sabia que havia esse lado dos namoros. Agora tenho a certeza de que, tudo que sei sobre isso, na verdade ainda é muito pouco.
- Agradeço por me contar sobre. Não tirei um momento para ponderar sobre esse outro lado. – Digo pensativo – E se alguém começou um namoro recentemente, e nunca ter namorado antes, o que essa pessoa precisa fazer?
- Olha, não sei... – Ele responde – Isso depende bastante... Não sei se você lembra, mas no meu último namoro, eu sempre procurei agradar e fazia muita coisa que ela gostava.
- E como tudo caminhou? – Minha pergunta é principalmente por ele estar sozinho hoje. Lembro como esse rapaz sempre falava de seu namoro.
- E por mais uma vez, eu não sei. – Ele salta os ombros – Certo dia ela quis terminar tudo comigo. Não sei se por eu ser músico, ou por eu querer agradar demais e ela enjoou disso.
- Mas se você trata uma pessoa que gosta tão bem, e sempre tenta agradar, por que ela enjoaria? – Realmente não entendo nesse instante. As coisas não parecem se encaixar.
- Não tem uma resposta, senhor Klauss. – Ele diz num suspiro – Apenas acontece. As vezes podemos fazer as coisas, mas não é o bastante... Ou a pessoa busca outras coisas, outros momentos ou até outras pessoas, não temos como saber. Às vezes, tudo que nos resta é aceitar.
Baixo meu olhar por um momento, pensando sobre o que acabei de ouvir. Será que isso pode acontecer comigo e com Mika? Eu me enjoar dela, ou então ela enjoar de mim? Se isso ocorrer, isso significa que ela irá embora?
Somente pensar nisso me causa algo horrível, num baque que invade meu corpo e atinge meu interior com uma profunda intensidade. Uma estranha dor no peito, a qual nunca senti em toda minha existência, mas é tão ou mais sufocante que qualquer dor física que já sofri.
O nervosismo cresce dentro de mim quando penso nessa possibilidade, e quanto mais isso permanece em minha mente, maior é essa dor. Uma sensação de medo quando penso em Mika indo embora por qualquer motivo. Mas não entendo, por que sinto medo?
Tenho medo de um enjoar do outro? De Mika ir embora? De não ter mais sua companhia e não vê-la mais? Do que tenho tanto medo?
- Mas senhor Klauss... – O rapaz me chama, me tirando de tantos pensamentos. Ele aperta os olhos, em um ar pensativo – Por que está perguntando sobre isso, assim tão de repente?
- Isso me veio em mente recentemente. – Respondo simplesmente.
- Por acaso... – O rapaz assume um ar surpreso – O senhor está namorando aquela moça?!
- O que? Como você...? – Tento falar, mas paro ao ver a animação do rapaz.
- Está sim! – O músico diz animado andando de um lado ao outro, me olhando com um sorriso que salta de orelha a orelha – Agora entendi me perguntar sobre isso tão de repente.
Salto as sobrancelhas, sem desmanchar minha expressão nesse momento.
- Você está namorando ela mesmo! E nem tenta dizer que não. – Ele diz animado.
- Não vou negar isso. – Respondo calmamente, cruzando meus braços.
- Bem que achei diferente você vir acompanhado nas últimas vezes. E nunca me contou que gostava de alguém senhor Klauss. – Ele diz rindo.
- Eu não gostava. – Respondo, me calando por um instante – Mas de repente, aconteceu. Não sei quando, ou como foi, mas aconteceu.
- E como foi isso? Eu estou bem curioso com isso senhor Klauss. – Ele pergunta.
Opto por não contar todos os detalhes do último dia – Estávamos tirando um dia para ela conhecer melhor a cidade, quando surgiu o pergunta se eu era o namorado dela... E... Eu não neguei... E quando dei por mim, já estávamos namorando, eu creio que foi isso.
- Você fala como se sentisse culpado por isso. – Ele me ergue uma sobrancelha.
- Não culpado, e nem arrependido. – Digo, enquanto reflito – Só que isso nunca ocorreu comigo. Estou confuso, e não sei ao certo o que fazer daqui para frente.
- Você nunca namorou? – Ele se mostra ainda mais surpreso quando nego, com isso, ele solta um pequeno riso – Não fique pensando o que fazer, nem buscando soluções. Não funciona assim.
Assinto devagar, me sentindo sem opções – Você entende disso melhor do que eu. O que posso fazer daqui para frente?
O rapaz reflete por alguns segundos – Não a force, nem force o que você sente por ela. Demonstre com calma, a deixando com espaço para expressar o que sente também.
- Saberei como fazer isso? – Sussurro para mim mesmo.
- Não sei, mas é uma forma de tentar, e a gente sempre dá um jeito. É o que precisa fazer, tentar... E... – Ele me diz, e com um pequeno sorriso, ergue o olhar a mim – E se ela sentir o mesmo por você, ela vai falar, ou você mesmo perceberá... Não a conheço, mas pelo pouco que vi daquela garota, acho que ela não vai esconder o que sente.
Demonstrar o que sinto, sem forçar. Fazer isso com calma, ao mesmo tempo que deixo um espaço para que Mika demonstre o que sente. Ainda não sei como farei isso, mas pretendo descobrir ao meu modo.
- Eu agradeço por tudo, e pela conversa. – Digo finalmente – Foi esclarecedora.
- E para mim foi surpreendente. – Ele diz rindo, e o olho de soslaio.
- Bom, devo retornar para casa. Quero preparar algo para o café da manhã, e planejar o restante do meu dia. – Digo, o cumprimentando com um aceno de cabeça.
- Tudo bem, venha me visitar mais vezes senhor Klauss. – Ele diz devolvendo o aceno.
Enquanto caminho de volta ao meu carro, minha mente fervilha com todos os pensamentos nessa conversa, no medo que ainda reside em mim, e como irei agir. Apesar de tudo, encontro certa clareza nesse momento.
Mentalmente me sinto satisfeito em ter essa conversa. Havia me esquecido que nós, anjos, também podemos aprender muito com os humanos.
*****
Conduzindo devagar, vou me aproximando de casa enquanto observo o bairro, tendo refletido muito durante todo o caminho, até finalmente acalmar minha mente por este momento.
Pelo menos, acredito ter acalmado minha mente, ao menos um pouco.
A verdade, é que ainda não sei o que devo fazer. Mesmo com os conselhos recebidos, muitas dúvidas ainda permeiam minha mente, e as soluções me parecem escassas, mas creio que pensar nisso não fará diferença. Pelo menos não agora.
No agora, o que preciso me concentrar é em reforçar às barreiras de proteção em torno da casa, como já havia pensado antes. Elas são muito úteis para ocultar minha presença e o poder da minha graça para qualquer um que esteja do lado de fora, não sendo possível me localizar.
E com tantos anjos vindo para a cidade, e eventualmente demônios também serão enviados, acredito que reforçar esse poder me parece necessário, já que criei essas barreiras para esconder somente minha presença, e em momento algum eu contava com a chegada de Mika.
A barreira atual pode ser insuficiente para ocultar a nós dois.
Se bem que, por um curto momento, me questiono se será realmente necessário, já que os demais anjos estão concentrados no Abismo, e sua presença é tão pesada que não conseguem distinguir onde ele está exatamente.
De qualquer forma, é melhor prevenir.
Paro em frente de casa e sigo para a sala, e assim que entro, tenho a impressão de ouvir alguns sons na cozinha, e além disso, existe um forte aroma de chocolate no ar.
Guiado pelos sons e pelo cheiro, sigo para a cozinha, e ali, frente ao fogão, vejo uma Mika bastante concentrada preparando alguma coisa em uma pequena panela, exalando entusiasmo em cada movimento.
Vestida com uma longa blusa de moletom escura, calça jeans preta e pés descalços, o anjo cantarola algo baixinho, parecendo dançar devagar enquanto troca o pé de apoio repetidas vezes. É certo que ela está mergulhada em um mundo quase que completamente seu, alheia a tudo que acontece ao redor.
Acho isso minimamente curioso, e sequer tento desviar meu olhar dela. Desde que vim morar aqui, nunca tive companhia, ainda mais uma como Mika. E agora que tenho, acho impossível eu me enjoar de algo assim.
Devagar vou me aproximando, olhando os ingredientes que está usando, e não me recordo de ter comprado esses antes, e então tento espiar o que ela está preparando com tanto empenho.
Quero me aproximar dela e ver mais de perto, mas algo faz com que meu corpo não me obedeça, me obrigando a permanecer onde estou.
Ela para um instante e parece saborear o que quer que esteja fazendo, e sua reação empolgada entrega como ela está satisfeita com o resultado alcançado, e nesse momento ela vira-se para mim num movimento brusco.
- Klauss! – Ela diz em sobressalto, abrindo um sorriso sem jeito e se posicionando em frente ao fogão, como se quisesse esconder o que estava fazendo. – Você voltou!
Se já não tivesse reparado em tantos detalhes na cozinha, sua expressão sapeca me levaria a entender que Mika estava aprontando alguma coisa no mínimo engraçada.
- Acordei e não te achei em lugar nenhum. – Percebo a curiosidade presente em sua voz.
- Precisei sair. Os anjos chegaram na cidade, e tive que ir encontrá-los. – Explico a observando, erguendo uma sobrancelha – Acordou faz tempo?
- Um pouco. Fiquei andando pela casa... Fui lá fora, olhei a cidade... – Ela diz, dando umas olhadas rápidas para trás, e logo voltando a mim.
- O que está fazendo aí? – Questiono, finalmente cedendo a minha própria curiosidade.
- Ah, isso? – Ela diz lançando seu olhar para trás, e quando faço menção de me aproximar para ver, ela ergue as mãos para mim, revelando uma colher de madeira, melada com algo que acredito ser chocolate derretido – Não é nada demais, não precisa pensar nisso Klauss.
Ergo uma sobrancelha ao olhar para a colher de madeira, a qual Mika esconde atrás das costas prontamente, e exibe um belo e travesso sorriso.
Dou um pequeno riso nasal com seu jeito travesso, e esboçando um minúsculo sorriso, balanço a cabeça e cruzo meus braços, esperando que ela diga algo.
Ela parece perceber que já entrei em sua brincadeira, já que começa a rir enquanto me olha de volta, e vem se aproximando – É sério! Não precisa pensar nisso, inclusive, por que você não se senta bem ali, e espera só uns minutos?
Acompanho o olhar de Mika e vejo qual cadeira ela me indica, sendo uma a qual ficarei de costas para ela, e por consequência, sem ver o que ela estará fazendo. – Não posso ver o que está aprontando?
Com a cara mais limpa do mundo, Mika fecha seus olhos e balança a cabeça algumas vezes, em seu jeito brincalhão. – Não, não pode.
Sequer faço menção de avançar, e o pequeno anjo apoia sua mão em meu peito, me empurrando levemente para trás, até que eu encoste na mesa.
- E não vale espiar! – Ela diz em tom mandão, apertando seus olhos.
Diferente de uma resposta falada, avanço e num preciso movimento, seguro Mika pela cintura e giro nossos corpos, fazendo com que agora, ela é quem esteja contra a mesa.
Ela me observa com um semblante tomado pela surpresa, me olhando nos olhos, soltando o ar de uma vez. Eu mesmo não esperava tal ato meu, e agora que o fiz e estamos tão próximos, não quero me afastar. Quero é me aproximar ainda mais, mas o que acontecerá quando não houver mais distância alguma?
Essa incerteza me mantém no lugar, incapaz de avançar como gostaria, mas sem vontade alguma de querer me afastar dela, e por mais uma vez, não sei o que devo fazer.
Devagar viro meu rosto ao fogão, mas sinto os dedos de Mika tocando meu rosto, e o virando novamente para si – Não vale espiar... – Ela repete num sussurro.
- Não irei espiar Mika. – Sussurro de volta. – Não espiaria nem se quisesse, meu olhar está voltado apenas a você, e não quero desviá-lo.
- Somente a mim... Que coincidência Klauss... – Mika diz com um pequeno riso – O meu está voltado só para você, e também não quero desviar.
Agora que me dou conta, continuo com minha mão enlaçando a cintura de Mika, com mais firmeza que antes. Já ela percorre sua mão pelo meu rosto, indo até atrás da minha cabeça.
Nossos olhares percorrem os traços um do outro, sei que ela olha para cada pequeno detalhe do meu rosto, assim como faço exatamente o mesmo, admirando cada detalhe.
O formato de seu rosto, a cor de sua pele e seus cabelos, o formato de sua boca, as pequenas curvas em seu nariz, e a beleza de seu olhar tão sincero e espontâneo, e até mesmo seu aroma que é tão agradável que me aparenta um perfume. Tudo nela me fascina de uma maneira irreal que não experimentei antes.
Nossos olhares por fim se encontram, e assim permanecem, em um momento em que palavras já não parecem mais serem necessárias. Tudo a nossa volta parece silenciar aos poucos, de maneira que não houvesse mais nada além de nós, e cada vez mais, sinto-me diferente.
Não existe menção de nos afastarmos, e mesmo temendo avançar, isso acontece sem que eu perceba, e não tento impedir. Tanto Mika quanto eu nos aproximamos, mais e mais, tão lentamente que poderia ser imperceptível. E mais e mais, algo ganha intensidade em meu peito.
Nossos rostos estão perto, até restarem poucos centímetros um do outro. Tenho sua respiração levemente descompassada encontrando minha pele, e seu corpo unindo-se ao meu cada vez mais, de tal maneira que parece estarmos buscando um ao outro inconscientemente.
A proximidade é tanta que sinto minha pele roçar a sua, em lábios tão próximos que tenho a certeza de sentir a suavidade deste encontro e um sabor completamente novo, mesmo que não nos toquemos de fato, ou na verdade acho que não nos tocamos, é incerto para mim. Nesse instante a sinto sorrir levemente, talvez eu mesmo também esteja sorrindo.
- Promete que não vai espiar...? – Ela me sussurra, olhando fixamente em meus olhos.
- Prometo... – Sussurro de volta.
Em claro contragosto de ambos, nos afastamos devagar, e cumprindo o prometido, me sento no local indicado, e apoiando os cotovelos sobre a mesa, encosto o queixo nas mãos e aguardo. Escuto os risos de Mika e seus passos, seguido pelos barulhos na panela.
O aroma de chocolate continua bem presente no ar, e tento identificar o que ela pode estar fazendo ao me guiar somente com isso, e também com os ingredientes que a vi usando, e aos poucos vou chegando a minha conclusão.
De repente, Mika vai até um armário e pega um pequeno apoio, o deixando na mesa bem perto de mim, seguido de duas colheres. Vou a acompanhando cada movimento seu com atenção, e mesmo no momento que nossos olhares se encontram, não consigo decifrar o que ela esteve fazendo até então. Mas não me importo, me satisfez muito mais ver o brilho no olhar de Mika.
Realmente aprecio sua companhia, sua presença e também todo seu jeito.
- Eu queria ter feito isso ontem... – Mika começa a falar, quando retorna a mesa trazendo consigo a panela, a deixando sobre suporte, e então puxando uma cadeira e sentando-se próximo de mim – Eu queria preparar algo para comemorar que vim morar aqui... Mas ontem quando chegamos, eu nem lembrava mais.
Observo Mika, e logo espio o que ela esteve preparando até então, e a princípio observo uma quantidade de chocolate derretido na panela. Acho curioso, já que não me lembro se já vi essa forma de chocolate antes.
- Se chama brigadeiro, aprendi a fazer enquanto ainda vivia no submundo. – Ela diz, puxando a panela até nós, e então me olhando –Você já experimentou?
Percebo sua expectativa com minha resposta. Já experimentei brigadeiro, mas foi um bem diferente deste que Mika fez, e também, já faz tanto tempo que sequer me recordo qual seja o sabor – Não, nunca experimentei.
- Então... Será a primeira vez que você irá experimentar? – Nesse instante, percebi um novo brilho no olhar do anjo, e sua empolgação acabou de intensificar por completo.
- Acredito que sim Mika. – Respondo, pegando uma das colheres.
Ela continua me olhando com expectativa, e entendo que ela aguarda ansiosa para que eu experimente primeiro, e assim o faço.
Mergulho a colher na panela e, devagar, coleto uma quantidade razoável de chocolate derretido, que escorre devagar de volta a panela num fio, e fico curioso pelo sabor, e sem me demorar mais, finalmente experimento.
- E aí, o que achou Klauss? – Ela pergunta, apoiando o queixo sobre as mãos e me olhando com brilho nos olhos, enquanto saboreio por alguns segundos
- Está saboroso, o sabor do chocolate está na quantidade certa – Digo, já buscando um pouco mais de brigadeiro – Aprendeu a fazer no submundo?
- Sim, foi a primeira coisa que aprendi, foi o que a Diana e o Nick usaram para conseguir comprar minha amizade. – Ela responde rindo, enchendo sua colher com brigadeiro, e acho graça desse modo que esses dois usaram para conseguir a amizade dela – Eu queria que tivesse algumas frutas, morangos principalmente... Fica muito bom, muito mesmo, mas não achei nenhum morango na geladeira, então, fiz desse jeito mesmo.
- Então, creio que devemos conseguir algumas frutas, e então fazer uma nova porção. – Digo de modo a deixar Mika sabendo que poderá fazer mais vezes – Ao que parece, iremos acabar com essa quantidade bem rápido.
- Iremos, e vou fazer bem mais vezes Klauss. – Ela diz rindo, se ajeitando na cadeira – Eu trouxe uma lata de chocolate em pó, então depois que terminarmos aqui, posso fazer mais.
- Você sabia que tem outros tipos de chocolate? – Pergunto para ela, a deixando boquiaberta.
- O que? É sério? – Ela pergunta, se inclinando na minha direção – Tem mesmo outros tipos?
- Tem, vende nas confeitarias do primeiro distrito. – Digo, sem deixar de reparar como algo acabou de despertar em Mika – Podemos ir lá comprar alguns, além de frutas.
- Eu quero, vou poder fazer outros sabores de brigadeiro então? Espera, confeitaria, eu nunca fui em uma, né? – Ela me pergunta animada – Eu quero conhecer, estou curiosa como deve ser lá.
O pequeno anjo cede a sua curiosidade e seu jeito tão agradável, imaginando ansiosa como deve ser a confeitaria, e por um momento até esquece de experimentar o brigadeiro que pegou em sua colher. Já eu, simplesmente não consigo deixar de olhar a ela, admirando sua leveza e sua presença, tendo o mesmo sentimento de antes, agora ardendo em meu peito.
Nesse momento, não quero tentar entender o que sinto por ela ou de onde tantos sentimentos vieram, nem me importo com todas as dúvidas que antes permearam meus pensamentos, afinal, neste momento tenho uma certeza crescendo em mim.
Tenho certeza do que sinto por Mika, e isso me é o bastante.
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