Capítulo 24

6285 Palavras

Em um suspiro profundo, encaro o teto em quanto escuto o som da televisão rompendo o que seria o entediante silêncio neste espaço. Se bem que, mesmo com algum som, este lugar ainda é entediante.

Faz dias desde a última vez que voltei ao meu quarto no submundo, e já nem mesmo me lembrava de como ele era. Mas não sentia falta alguma deste lugar, na verdade, me sinto estranha agora que estou de volta.

Estranha, e também sozinha.

Não sinto como se pertencesse a este ambiente, por mais que parte de mim se sinta acolhida, outra parte está cada vez mais agoniada com este espaço estranho a minha volta, e me traz um sentimento de perigo e solidão muito grande. Mas no fundo, sei que este é o lugar que pertenço.

Fecho meus olhos em um novo suspiro. Sinto falta de Klauss.

Faz poucas horas que voltei, mas já sinto falta de sua presença, e também sua companhia que me faz sentir tão bem, das conversas e seus olhares. Como uma forma de me sentir melhor e um pouco mais perto de Klauss, começo a pensar nele, no som de sua voz, em sua presença, no brilho de suas asas e o calor de sua graça.

Somente pensar nele faz com que um agradável sentimento cresça em meu peito, junto de um sorriso em meu rosto. Um sorriso de saudade dele, e dos momentos que temos juntos.

Não sei o que é essa sensação que tenho em mim quando estou com ele, nem mesmo entendo ao certo o porquê tenho tanta vontade de vê-lo novamente. A única coisa que sei, é que é uma sensação tão boa, e me faz sorrir sinceramente.

Enquanto levo uma mão ao peito, começo a refletir se o anjo que ocupa meus pensamentos tem essas mesmas sensações que tenho, ou se ele entende elas. Se ele também tiver, talvez possa me explicar por que as sinto com tamanha intensidade. Talvez ele me ajude a entender essas sensações tão diferentes que crescem em mim sempre que penso ou estou com ele.

Ouço algumas leves batidas na porta, o que faz com que eu me levanta devagar, buscando ter certeza de que não ouvi coisas.

- Mika? – Ouço a voz de Nick do outro lado da porta após alguns segundos.

- Só um instante Nick! – Respondo me colocando de pé e indo até a porta – Já irei abrir.

Abro a porta, encontrando meu amigo e colega iniciando sozinho, em roupas discretas, muito diferentes das dos demais seres do submundo, e com uma sacola em mãos.

- Adivinha quem está chegando do primeiro dia do trabalho? – Nick diz com um largo sorriso, abrindo bem os braços.

- Você teve sua função escolhida? – Digo com um largo sorriso, e de imediato dou espaço Nick entrar – Pois quero que me conte tudo.

Estranho que, novamente, Diana não esteja com ele.

Encosto a porta, vendo Nick deixando a sacola sobre a mesa – A Diana não veio com você?

- Não, ela ainda está com o Stefan. – Ergo as sobrancelhas, e Nick salta os ombros por uma vez – Pelo menos acho que sim. Não tive notícias dela.

- Uau, ela gostou mesmo do grupo dele... – Respondo pensativa, me sentando em uma das cadeiras, e Nick se senta à minha frente – Mas me conte sobre sua função, o que irá fazer?

- Ficarei com uma divisão de organização do submundo, e algumas vezes irei ao mundo humano para entregar recados. – Ele diz, mas não senti tanta animação em sua voz.

- E você gostou do que irá fazer? – Pergunto, juntando as mãos a minha frente.

- Mais ou menos. – Nick batuca um dedo na mesa – Não tive resultados tão bons nos testes, meus números não impressionaram. Ai a senhorita Ceres achou melhor me dar uma função menos turbulenta...

- Você não gostou. – Constato enquanto observo sua expressão.

- Está tudo bem, não tinha como esperar um resultado diferente desse. – Nick me responde, sem desmanchar o sorriso – Eu gostei, é tudo bem calmo e fácil de cumprir. Não tenho do que reclamar.

- Se você não gosta... – Digo, refletindo o que Klauss poderia dizer num momento desses – Você ficará insatisfeito, e irá reclamar de qualquer jeito.

- Tá tudo bem Mika. Sério. – Ele diz, acho que mais para si mesmo do que para mim.

- Mesmo? – Pergunto, buscando ter alguma certeza.

- Mesmo, eu gostei do que irei fazer. – Nick vira seus olhos para a sacola que trouxe, procurando algo em seu interior – Fui ao mundo humano ontem.

- Uau, e ai? O que achou de lá? – Pergunto animada, me ajeitando na cadeira e me inclinando para frente.

- Para minha primeira vez... – Nick diz pensativo, e então solta um riso – Eu entendi bem por que você fica tanto por lá. Gostei bastante do mundo humano, ele é muito grande e tem tanta coisa diferente, inclusive, olha o que eu trouxe.

Nick tira uma embalagem redonda e transparente, com alguns grãos arredondados de cores diferentes divididos em diferentes partes. Além disso, ele puxa algumas embalagens amareladas com um desenho de uma menina sorridente, e um bolinho bem ao lado, e deixa a embalagem sobre a mesa.

- Não sei o que é, mas me falaram que é muito bom. – Nick diz, enquanto observo a embalagem, a girando entre meus dedos e percebendo algo macio em seu interior – Trouxe para experimentarmos todos juntos... Mas a Diana não está, então...

- Você não consegue esquecer dela, né Nick? – Pergunto em brincadeira, abrindo minha própria embalagem e pegando um bolinho aparentemente simples, além de bem menor do que o bolo feito por Klauss. – Vamos experimentar os nossos agora, e deixar o da Diana guardado pra quando ela voltar.

- Boa ideia. – Nick guarda uma das embalagens de volta na sacola, e se concentra na sua própria, já preparado para experimentar.

Um pouco curiosa, e ao mesmo tempo levemente decepcionada com o tamanho do bolinho, me arrisco a morder um primeiro pedaço, mas me surpreendo com o sabor levemente doce e um recheio no interior do bolinho, de algo que nunca experimentei.

- É bom... – Sussurro ainda saboreando o bolinho – Nossa, é muito bom...

- Nossa, não me arrependo. – Nick diz com as sobrancelhas saltadas, e balançando a cabeça em afirmativo – É bom mesmo. Acho que vou comer o da Diana também.

Vejo o riso tomando forma em seu rosto e entendo de sua brincadeira – Nem pense nisso Nick.

- Se ela não voltar logo, não prometo nada. – Ele diz rindo, pegando um segundo bolinho dentro da embalagem. – Mas me conte Mika, você passa tanto tempo no mundo humano. O que mais gosta de lá?

- É complicado escolher apenas uma coisa Nick. – Começo a refletir sobre por alguns segundos – Acho que... As comidas? Ou... Os lugares? Talvez... Ter tantas coisas que ainda não conheço...

- Você ainda não decidiu o que mais gosta. – Nick concluí rindo.

- Podemos dizer que sim. – Acabo rindo de volta, quando um rosto me surge nos pensamentos – Mas tem alguém que vive no mundo humano que gosto bastante, e isso tenho muita certeza.

- Fez amizade com os humanos? – Ele pergunta genuinamente curioso, apoiando o cotovelo sobre a mesa, e o queixo na mão, ignorando seu bolinho.

Estou para falar de Klauss, mas me seguro, pensando exatamente o que falar para Nick – Amizade não, mas... Eu ainda estou conhecendo os humanos, quanto mais tempo passo lá, aprendo mais sobre eles. Estou tendo a oportunidade de ver o lado bom e também o lado ruim deles.

O rapaz assente, e enquanto morde seu bolinho, vejo como ele reflete em minhas palavras. Nesse momento, aproveito para saborear meu próprio bolinho.

- Legal que pode conhecer mais deles, você tinha dito que tem muita curiosidade com os humanos, mas... Agora que pensei... – Nick pausa um segundo, erguendo uma sobrancelha – Tem alguém que você gosta bastante, mas não é amizade?

Fico surpresa com Nick tendo questionado justamente esse ponto, que me deixa sem saber o que responder a princípio – Ah, isso? Bom... É claro que é uma amizade Nick... Foi alguém que conheci no meu primeiro dia de trabalho.

- No seu primeiro dia? – Ele salta a sobrancelha.

- Sim, ai sempre que vou lá, passamos um bom tempo juntos... Todos esses dias que estive fora, fiquei na casa dele, é muito divertido e vi muita coisa legal... Eu voltei pra cá, mas já fico pensando quando vou ir para o mundo humano de novo. – Somente quando termino de falar, me dou conta de como estou sorridente ao falar dos dias com Klauss. E percebo também que Nick me observa com as sobrancelha erguidas.

- É, estou vendo que você gosta mesmo desse alguém. – Nick diz com um sorriso divertido – Até pensa quando poderá voltar lá.

- Só que não sei como vai ser quando eu voltar ao mundo humano... Talvez seja só quando eu for trabalhar, e isso me preocupa. – Digo baixando minha voz.

- Por que? – Questiona.

- Porque quando ele descobriu que eu estava lá na cidade por trabalho, nós nos desentendemos. – Encaro minhas mãos e dou um suspiro – Não esqueço como ele ficou quando descobriu.

- Então foi por isso que você quis ir embora logo quando voltou do seu trabalho. – Nick diz ao juntar os pontos – Mas vocês conversaram?

- Sim, ainda bem que conversamos. Achei que ele estava bravo e não queria me ver... Mas conversamos, nos entendemos, e... – Paro de falar, ao lembrar daquele momento e mais uma vez, percebo que voltei a sorrir. – Contei pra ele que sou um anjo.

- Você contou Mika? – A cara de espanto de Nick é impagável – E depois? Como foi isso?

- Foi muito bem, mas acho que ele já sabia... – Digo aos risos, e Nick acompanha meu bom humor – Eu estava bem nervosa de contar isso e tanta coisa do meu passado, e achei que iria ficar bravo, mas ele aceitou bem.

Nick não diz nada, mas assente com a cabeça, mantendo seu sorriso com tudo que acabei de contar.

De repente, os olhos do rapaz saem de mim e se voltam a porta do meu quarto. Curiosa, acabo fazendo o mesmo, notando uma luz avermelhada passando pelos espaços da porta.

- O que será isso? – Pergunto sem entender, nunca vi algo assim.

- Acho que é um orbe de convocação. – Nick diz, e torno a olhar a ele – Um dos três juízes deve estar querendo te ver.

Fico um pouco apreensiva ao ouvir isso. Tudo bem se for o senhor Minos, já que ele nunca me tratou mal, mas não sei nada sobre os outros dois. Aecos passou muito despercebido, mas Radam é assombrosamente assustador. Espero que não seja ele.

A luz começa a invadir o quarto, reunindo-se num mesmo lugar e tomando uma forma esférica, emanando bastante brilho de seu interior, e por fim, permanece pairando no mesmo local que tomou sua forma.

"Mi'Ka, sua presença é necessária. Apresente-se no salão de Raika imediatamente!"

Com isso, a esfera se dissipa numa nuvem avermelhada, que levemente desaparece no ar.

Sinto-me aliviada ao saber que é Raika quem está me chamando. Aparentemente, meu próximo trabalho já foi escolhido, e por isso estou sendo chamada. Entretanto ao olhar para Nick, percebo a surpresa novamente estampando seu rosto jovem.

- No salão da senhorita Raika? – Ele pergunta gaguejando.

- Ser chamada por ela é até bem comum para mim. Por que essa reação Nick? – Salto uma sobrancelha.

- Bem comum? – Ele arqueia as sobrancelhas – Nenhum dos iniciandos sequer viu a senhorita Raika de perto, nem mesmo vários veteranos viram ela. A primeira vez de muitos foi no evento de boas-vindas aos três juízes.

Dessa vez é minha vez de ficar surpresa – Isso é sério?

- Muito sério, no máximo falamos com o juiz Minos ou com um dos seus subordinados. – Nick diz, ainda em meio ao seu choque – Da senhorita Raika, ouvimos somente o nome. São poucos que falam diretamente com ela.

- Estranho que eu seja um desses poucos... Talvez, deva ser por ela ter me tirado daquela prisão... – Digo pensativa.

- De qualquer jeito, você está sendo chamada. – Nick se levanta, e acabo por fazer o mesmo.

- Sim, acho melhor eu ir. – Respondo pensativa – Quer ir comigo?

- Eu posso? – Ele pergunta.

- É claro, eu darei uma desculpa pra você ter ido comigo. – Digo rindo, já seguindo até a porta.

- Vou confiar em você Mika. – Nick ri junto, enquanto deixamos meu quarto e seguimos aos salões de Raika.

*****

- Eu estou nervoso. – Nick resmunga, caminhando pouco atrás de mim.

- Não precisa ficar assim, vai ocorrer tudo bem. – Tento tranquilizá-lo, enquanto observo o salão de Raika bem a minha frente. – Talvez eu vá receber meu próximo trabalho, e mais nada.

- É a primeira vez que verei a senhorita Raika não de perto. – Ele diz, e ao olhá-lo, percebo como o rapaz está encolhido.

- Você sabe o que a Diana diria se te visse assim, não é? – Seguro meu riso ao ver Nick dessa forma.

- Sim, mas é porque a Diana adora me encher. – Ele se defende.

- Pois pode ficar tranquilo, que tudo vai ficar bem. – Digo, colocando as mãos na pesada porta e a empurrando, dando na sala de espera antes da sala principal onde a soberana do submundo está – Respira fundo e se acalma.

- Eu vou tentar... – Ele diz com um fio de voz.

Admito que também estou um pouco nervosa nesse momento, mas não por ter sido chamada. Mas sim, por estar para receber mais um trabalho, e também por toda a pressão que sinto vir do outro lado daquelas pesadas portas.

Sei que o poder emanado ali pertence a Raika, mas ele parece mais intenso e selvagem do que antes.

Ao me aproximar das grandes portas do salão principal, elas se abrem sozinhas num pesado movimento, dando uma visão direta para o trono de Raika, onde ela aguarda pacientemente em meio a um esmagador silêncio.

Respiro fundo e avanço, sentindo Nick vindo pouco atrás de mim. Enquanto nossos passos são os únicos sons presentes, nosso movimento é acompanhado pelo olhar intenso unido a um pequeno sorriso.

Me abaixo devagar, não mantendo contato visual com ela – Me chamou, senhorita Raika?

- Quem é esse com você Mi'Ka? – Ela pergunta sem demora.

Penso rápido o que dizer para justificar a presença do meu amigo aqui – Esse é Nick, um iniciando assim como eu. Ele faz alguns favores enquanto estou fora.

- Vejo que fez amigos desde que chegou. – Diz de forma bem neutra – Tenho algo importante a tratar com você Mi'Ka.

- Receberei meu próximo trabalho? – Questiono sem demora, erguendo meu olhar a ela.

- Não exatamente. É sobre algo que ocorreu na região que você atua. – Ouvir isso me deixa em alerta.

- O que houve? – Pergunto com cuidado.

- Esses últimos dias, uma presença foi percebida na cidade. – Ela diz de forma séria – É uma presença muito poderosa, que acreditamos ser o responsável pelo desaparecimento do juiz Radam. Você ouviu algo sobre isso?

Lembro-me que Klauss comentou sobre uma criatura rondando a região, e isso também chamou a atenção do paraíso, que enviará alguns anjos para a cidade. Lembrar de sua preocupação quando me pediu para tomar cuidado me faz ter vontade de sorrir, a qual contenho de imediato.

- Não fiquei sabendo sobre isso. – Respondo, pensando bem em minhas palavras – Senti uma presença mais forte quando estava buscando aquele grupo, mas não sei dizer se pertencia a um ser diferente.

O arquidemônio assente – Entendo.

- O que é essa criatura? É um outro anjo? – Questiono, tentando descobrir algo mais.

- Não é um anjo. Ao que tudo indica, é um humano pertencente ao Abismo. – Ela explica, apoiando o queixo nas costas da mão.

- Um... Humano? – Sussurro pensativa.

Observo Raika por alguns instantes, notando algumas coisas. Mesmo falando de alguém aparentemente tão problemático que criou problemas a um dos juízes, e também é a razão de outros anjos serem enviados para aquela cidade humana, percebo que Raika está muito tranquila. Isso me faz pensar, se ele é mesmo alguém tão perigoso quanto fazem parecer, por que ela está tão tranquila?

- Ele é uma das Crias do Abismo, está longe de ser um humano comum. – Raika continua – Seu nome é desconhecido, mas é conhecido como "Cara do Casaco".

- Que nome estranho... – Sussurro para mim mesma – Terei cuidado quanto a ele.

- Não é isso que quero tratar. – Raika diz, e a observo sem entender – Mas sim, que para ser capaz de enfrentá-lo e escapar, você receberá um novo acréscimo de poder. E também, membros do submundo serão enviados para monitorar a região atrás de sinais dele.

Suas palavras me acertam em um baque – Como...? Terão... Outros além de mim?

- Sim, provavelmente enviarei o grupo de Stefan assim que retornarem do trabalho deles. – Ela diz, e sinto meu corpo se revirar em desgosto e medo.

As lembranças do treinamento de Stefan me vem em mente, e toda a brutalidade que ele demonstrou em cada momento faz meu corpo inteiro tremer em pavor de suas ações e a sádica satisfação em seu semblante e gargalhadas envoltas nas chamas ardentes.

Não basta enviarem outros demônios, será justamente Stefan e seu grupo?

Eu preciso sair daqui. Correr para avisar Klauss da iminente ameaça que irá recair naquela cidade em breve. Não sou somente eu quem precisa ter cuidado de agora em diante.

- Tudo bem... – Digo a contragosto, tornando a baixar minha cabeça, e desejando que isso acabe o quanto antes para deixar esse lugar de uma vez.

Uma luz avermelhada surge pouco à frente de mim, e erguendo meu olhar, percebo uma orbe semelhante as outras que me entregaram para absorver mais poder. Se bem que essa é maior, e irradia uma energia mais forte em seu interior.

- Você já sabe o que fazer com isso. – Ela diz simplesmente, enquanto estendo a mão e a orbe se aproxima devagar. – Você já pode ir.

- Absorverei esse novo poder. Obrigada. – Digo me levantando e girando sobre os pés e caminhando para fora do salão sem demora – Vamos, Nick!

Caminho apressada para fora do salão sem olhar para trás nenhuma vez sequer, em passos cada vez mais largos, sem me importar com os vários olhares voltados a mim por carregar toda essa massa de poder nem ao menos esconder. Isso não faz diferença alguma agora.

- Mika! Espera! – Nick me chama, mas não interrompo meu caminhar. Com o canto do olho, vejo ele acompanhando meu passo apressado – Onde você vai?!

- Tenho que voltar ao mundo humano. – Digo sem parar de caminhar – Você vem?

- Ah, tá... Eu vou sim, eu acho...? – Nick responde, e olhar a ele me dá a certeza de que ele está completamente perdido com minha reação. Explicarei tudo no caminho, ou ao menos, tentarei.

O que realmente me importa nesse momento, é voltar ao mundo humano e avisar Klauss do que está por vir. Pensarei nos detalhes no caminho.

*****

Caminho na direção do meu carro, tendo o orbe avermelhado iluminando boa parte do espaço a minha volta com sua luz selvagem. Romper as sombras da profunda noite com uma luz avermelhada como essa é muito estranho, o ambiente parece muito mais agressivo e mórbido com essa luz.

Abro a tampa do porta-malas, enquanto escuto alguns passos no gramado, e sem nem me virar já sei quem está vindo até mim.

- Você está vindo para cá com bastante frequência menina. – Ouço Verônica dizer, parando ao meu lado, me observando com uma aparente curiosidade em seu olhar.

- É, as coisas ficaram bem movimentadas ultimamente. – Digo, depositando a orbe no porta-malas do meu carro, fechando a tampa sem demora.

Verônica vira a cabeça a Nick, que está abraçando a si mesmo – E quem é aquele?

- É um iniciando como eu. – Verônica volta a me olhar, e imagino qual seja sua próxima pergunta, e me adianto – Ele está de folga da função dele, e como tenho uma coisa para fazer aqui, chamei ele para vir junto.

- Certo, só arranja um casaco ou qualquer coisa que seja para ele, senão o rapaz vai congelar com o frio de hoje. – Ela diz, tornando a olhar para Nick.

- Irei ligar o ar condicionado e o aquecimento do banco para ele. – Respondo, enquanto Nick se aproxima, parando do outro lado do carro.

- Caramba, o que que é isso Mika? – Ele pergunta, com a voz tremula e respirando fundo, esfregando as mãos nos braços repetidas vezes.

- Se chama frio Nick. Não temos isso no submundo. – Explico, apoiando ambos os braços no teto do carro – Fiquei assim nas primeiras vezes que vim. Se soubesse, teria falado para vir com uma blusa.

- Tarde demais. – Ele diz com um meio sorriso, que acabo retribuindo de forma compreensiva, por saber bem o que ele está passando – Nossa, frio é horrível...

- Por que trouxe uma orbe de poder como essa para esse mundo? – Verônica questiona de repente, olhando para mim e Nick com uma sobrancelha erguida.

- Não tive tempo de absorver ainda, nem de deixar no meu quarto. – Ela assente, descruzando seus braços e estende as chaves a mim, e as pego sem espera – Achei melhor trazer comigo.

- Fez bem, mas se você ou seu amigo forem absorver todo esse poder, façam isso logo. – Ela adverte, se afastando devagar – Não é bom deixar um poder como esse solto.

- Farei isso assim que tiver um tempo. – Abro a porta do carro – Vamos Nick, temos que ir.

Assim que Nick entrou no carro, o ligo e deixo a casa de Verônica às pressas, dando alguns toques na tela com os mapas da cidade e marcando o endereço da casa de Klauss. Logo depois de acionar o mapa, aperto alguns outros botões na tela, um para acionar o aquecedor do banco de Nick, e então o ar condicionado em uma temperatura agradável.

Nesse momento, agradeço muito pelo anjo ter me ensinado bem como usar essa coisa, e também me acompanhado enquanto dirigia. Melhorei muito desde então.

O rapaz observa a tudo que fiz e então me olha, bastante perplexo e, claro, sem entender absolutamente nada – Você se sentirá melhor agora. O frio vai passar.

Ele concorda com o que eu disse, mesmo bastante confuso. Acredito que Nick só não diz nada a princípio por não saber o que falar.

- Você sabe controlar essa coisa? – Nick pergunta, grudando no banco conforme acelero. Pelo menos, ele já parece ter se esquecido do frio de momentos atrás.

- Sim, peguei o jeito enquanto estava aqui no mundo humano. – Digo voltando minha atenção a estrada, desejando chegar logo ao meu destino. – Nunca andou em um desses?

- Só vim ao mundo humano uma vez. – Ele me lembra – Vi essas coisas de longe, mas não imaginava que fossem tão rápidas assim.

Dou uma risada com o nervosismo aparente do meu amigo – Esse carro sim, mas nem todos são tão rápidos assim. Alguns são mais modestos.

- Acho que prefiro esses modestos. – Ele diz, todo duro no banco.

Balanço a cabeça negativamente algumas vezes, mas não reprimo meu sorriso – Pode ficar tranquilo, tenho esse monstro sob controle. Era pior quando eu não sabia dirigir ele.

- Era pior?! – Ele indaga incrédulo.

- Ah sim, bem pior. – Digo mantendo meu olhar concentrado na estrada. Espio rapidamente na tela para confirmar o caminho indicado, e continuo a dirigir.

- Tá bem, mas por que estamos aqui Mika? – Nick questiona finalmente.

- Preciso avisar o Klauss do que está por vir. – Digo sem demora, me sentindo confortável por já reconhecer boa parte dos lugares por onde passo.

- Klauss? – Ele pergunta novamente. – É o amigo que você falou gostar bastante?

- É, é ele... – Confirmo sem jeito – Se quem for enviado para cá for mesmo o Stefan, então tenho que avisar ele.

Percebo que Nick se calou, e em um rápido olhar a ele, percebo que o rapaz me observa fixamente. Ele me olha, como se absorvesse o que eu disse ao mesmo tempo que refletisse em minhas palavras.

Imagino que ele vá dizer qualquer coisa, mas não é o que acontece. Ele assumiu um semblante pensativo, correndo seus olhos de um lado ao outro por algumas vezes, enquanto sua postura relaxa no banco, e ele passa a apenas acompanhar o caminho que fazemos.

Mesmo de noite, consigo identificar alguns lugares que passei com Klauss durante o dia, e graças a isso, faço boa parte do caminho sem precisar olhar o mapa tantas vezes. O máximo que faço é espiar vez ou outra para ter certeza se estou para entrar na rua certa.

Por estar tão tarde, quase não tem outros carros nas ruas, e praticamente não vejo humanos nas ruas. Aproveito para espiar Nick, que está olhando curiosamente de um lado ao outro.

Identifico a casa de Klauss após bons minutos dirigindo, até por fim parar o carro bem em frente do portão. Respiro fundo por uma vez, desligando o carro e saindo, observando a casa por alguns segundos.

- Vamos. – Digo, seguindo para o portão e o empurrando devagar, encontrando o Corvette de Klauss parado, e me alivia saber que ele está em casa hoje.

- Uau, as moradas humanas são bem menores que a que vivemos do submundo. – Nick diz, vindo logo atrás de mim. Ele voltou a esfregar os braços por causa do frio.

- As casas humanas são bem diferentes do que temos no submundo. – Explico olhando de relance para ele. – Tem coisas que nós não temos.

- Tipo? – Nick pergunta erguendo uma sobrancelha

- Cômodos diferentes. – Digo pensativa – E são maiores do que nossos quartos.

O rapaz assente e sigo para a porta da frente, e devagar abro a porta, sendo recebida pelo silêncio da casa. Olho de um lado ao outro, me concentrando se escuto algo.

- Klauss? – O chamo, entrando na casa devagar.

- Ele está aí? – Ouço Nick perguntar, parando na porta e olhando tudo ao redor.

- Não tenho certeza. – Respondo, indo para as escadas e subindo.

Tenho em mente um lugar onde Klauss pode estar. Sei que os anjos, enquanto possuem suas graças, não precisam dormir ou comer, mas eventualmente precisam repousar para repor o poder de suas graças. Então, acredito que ele possa estar no único quarto que ele realmente tem somente para si.

Olho para trás, vendo Nick parado na base da escada, sem menção de subir. Faço um sinal para ele me esperar onde está, e ele concorda com a cabeça. Fico aliviada por ele não vir atrás de mim, não quero revelar esse local de Klauss, acredito que seja algo que o anjo queira manter em segredo, já que nem mesmo para mim ele comentou sobre esse quarto.

Abro a porta, observando o quarto contendo somente a aura, que paira suavemente ao centro deste cômodo. Mas para minha decepção, não encontro Klauss aqui. Imaginei que poderia encontrá-lo se recuperando, mas não é isso que acontece.

Fecho a porta e torno a descer para a sala, recebendo um olhar interrogativo de Nick – Ele não está lá?

- Não, e nem faço ideia de onde esteja. – Digo torcendo a boca de lado. – Mas o carro dele está na garagem... Onde ele pode ter ido assim tão tarde?

- Reparei que tudo estava bem calmo no caminho pra cá. – Nick diz pensativo.

- É, os humanos não costumam sair de casa assim tão tarde. Quando anoitece, eles costumam ficar em casa para descansar. – Respondo, caminhando de volta para fora da casa, e vendo o carro de Klauss novamente – Mas isso não é uma coisa que faz diferença para o Klauss.

- Onde acha que seu amigo pode ter ido? – Nick pergunta, me seguindo conforme vou até os fundos da casa, na esperança de encontrar Klauss deitado na rede, ou então sentado em uma das cadeiras dos fundos, mas não é o que acontece.

- O pior é que não faço ideia. – Digo reflexiva, observando o céu nublado, e logo em seguida aproveito a vista da cidade ao longe. – Não sei se tem algum lugar aberto agora, e mesmo se tivesse, não sei se chamaria a atenção dele.

- Então... – Ouço Nick falar com cuidado – O que podemos fazer?

- Ainda não sei... – Respondo, refletindo que só vim para cá, só não imaginei a possibilidade de não encontrar Klauss em casa. – Mas vou pensar em algo.

Nick para ao meu lado, observando a cidade por alguns segundos. Ele tem seu olhar correndo de um lado ao outro, e por mais uma vez ele parece se esquecer do frio.

- É bonito, não acha? – Pergunto, lembrando de mim mesma quando tive essa visão da primeira vez, e de todas as vezes que o fiz tendo Klauss ao meu lado.

- Muito... É incrível... – Ele responde num sussurro – Queria que a Diana estivesse aqui para ver também, e não andando com o Stefan... O que será que ela diria?

- Não sei. – Respondo pensativa – Mas também gostaria que ela estivesse vendo com a gente.

Sinto uma brisa passando pelo meu corpo, fazendo meus cabelos voarem como um singelo e cuidadoso carinho em meu ser. A natureza a nossa volta canta com o som do vento, sacolejando por todos os lados.

Entretanto, os sons parecem ficar cada vez mais altos, e o que antes era uma brisa, tornou-se um intenso vento que percorre rapidamente pelo chão e sobe ao nosso redor, de jeito que percebo meu corpo contido no lugar.

Um repentino brilho surge acima de nós, e ergo meu olhar para a figura que paira acima de nós. De braços cruzados e asas abertas, emanando o intenso brilho de sua graça, Klauss se aproxima devagar, mantendo seu olhar cerrado em nós.

- Klauss! – Digo com um sorriso largo.

- Mas... Ele é o Klauss? – Nick diz espantado. – Seu... Seu amigo é um anjo?

- É, eu esqueci de contar essa parte. – Respondo aos risos, retornando meu olhar a ele.

O vento cessa ao meu redor, assim que Klauss toca o chão, aproximando as asas de seu corpo, e sem demora me aproximo em uma pequena corrida. O anjo me observa, e então retorna seu olhar para Nick, o analisando por demorados segundos.

- A essência que ele exala... Você trouxe alguém do submundo para minha casa Mika? – Klauss questiona retornando seu olhar a mim, antes mesmo que eu consiga dizer qualquer coisa.

- Não é bem isso... – Tento explicar, e olho para Nick, que nervosamente permanece onde está, sem mover um dedo – O Nick não é alguém ruim, ele é um amigo meu.

- Você é um anjo, assim como Mika? – Klauss questiona diretamente a Nick.

- Não... Eu não sou... – Nick responde com cautela.

- Então, você permanecerá aí mais um pouco. – Klauss diz a ele, voltando sua atenção a mim. Mesmo que não diga nada, consigo ver em seu semblante como Klauss não está nada contente com o fato de eu ter trago Nick junto.

- Você... – Começo a falar – Está bravo comigo?

- Não. Mas estou desconfiado de quais sejam suas intenções aqui. – O anjo me responde mantendo a calma em sua voz, mas seu olhar vai a Nick. – Não me agrada que um demônio esteja pisando na minha casa.

- Eu vim te avisar de uma coisa que está para acontecer. – Digo firmando minhas mãos em seus braços, lembrando finalmente da urgência que me fez vir para cá – Não são só anjos que virão para a cidade. Em breve, alguns demônios também virão.

- Como é? – Ele pergunta apertando os olhos.

- Fiquei sabendo disso a pouco tempo. – Continuo a falar, tendo toda a atenção de Klauss voltada a mim – Lembra aquela coisa do Abismo que você me contou? Que chamou a atenção dos anjos? Parece que isso também chamou a atenção do submundo, e em alguns dias um primeiro grupo será enviado para a cidade.

O anjo vira o rosto de lado por um momento, e com uma mão no queixo e olhar baixo, ele parece refletir no que acabei de contar – Quantos serão enviados?

- De começo, acho que serão somente três. – Digo lembrando das palavras de Raika – Mas nada garante que outros não sejam enviados no futuro.

- São somente três. O que os tornam um problema? – Klauss responde pensativo.

- Eles são um grupo de elite do submundo. – Nick diz, logo atrás de mim – E Stefan, o líder desse grupo, treina diariamente com um dos três juízes.

O anjo aperta seus olhos – Por que está entregando outro demônio?

- Eu não gosto do Stefan... – Nick diz sem rodeios – E também... Você é alguém que a Mika gosta muito, não te conheço mas sei que você é importante pelo tanto que ela se preocupa, e você parece se preocupar com minha amiga... Então eu faço questão de te contar.

Por um momento, recebo um olhar do anjo que me causa tantas sensações distintas, e nesse instante não faço a menor ideia do que passa em seus pensamentos. Apenas estou diante de seu profundo olhar âmbar, que me analisa em cada pequeno detalhe.

Klauss confirma com a cabeça, voltando sua atenção a Nick. E erguendo sua mão, o som do vento cessa, e é possível ver Nick se desequilibrando por um instante – Ainda não confio em você, mas permitirei seus movimentos. Se o que dizem for verdade, e o líder do grupo está em igualdade com um dos três juízes, então de fato é preocupante.

- Eu sei, conheço o Stefan, e por isso vim te avisar. – O anjo retorna sua atenção a mim – As coisas não ficarão mais perigosas só para mim. Também vão ficar perigosas para você.

- Você quer que eu faça algo em relação a esses três? – Klauss questiona.

- Eu quero que você me prometa que vai tomar cuidado, e que vai ficar bem. – Digo, deslizando minhas mãos pelos seus braços, e assim que os solto, Klauss segura minhas mãos, e nossos olhares se conectam – Me promete isso?

Com um pequeno e quase imperceptível mover da cabeça, ele me confirma – Eu prometo, apesar de ter uma ideia melhor.

- Uma ideia? – Pergunto curiosa – Qual é?

Ele não se pronuncia, e busco a resposta em seu rosto, em seu olhar, e o que encontro é um misto de coisas nele que sequer sei decifrar, e seu silêncio não me dá resposta alguma a princípio, até que tenho um leve e agradável aperto na mão.

- Venha morar comigo. – Ele diz, me pegando de surpresa – Desse jeito, um poderá cuidar do outro, e teremos certeza de que estamos bem.

- Você... – Sussurro – Isso é sério?

- Você só precisa trazer suas coisas. – Klauss diz finalmente. – Você vem?

Pisco algumas vezes, absorvendo o que acabei de ouvir, tendo meu peito batendo com toda a força. E da mesma forma que ele, balanço a cabeça – Mas... Mas e o meu trabalho... Quando eu for chamada, o que eu irei...?

- Se a soberana do submundo, for como o Grão Mestre Arcanjo, Rel'El, então você receberá seus trabalhos mesmo estando aqui. – Klauss diz com certeza em sua voz, e tenho um desgosto ao ouvir esse nome – Como soberanos, é fácil para eles encontrar alguém.

- Se for assim... – Começo a falar, olhando fixamente a ele, e sorrindo sem parar – Sim, eu venho... Só vou pegar minhas coisas, e venho pra cá.

- Estarei te esperando Mika. – Ele me responde.

Viramos para Nick, que permaneceu todo o tempo nos olhando. Neste curto momento, sinto nossos dedos entrelaçarem com firmeza – E quando a mim?

- Você vai voltar para o submundo. – Klauss diz sem demora, olhando para Nick com as sobrancelhas saltadas, e então me olha – Você acompanha ele Mika?

- Sim, e logo eu estarei de volta. – Digo sorrindo, e vejo um pequeno sorriso surgindo no canto de seu lábio, unido a leveza que encontro em seu rosto. – Vamos Nick, temos que voltar.

Me afasto de Klauss em passos curtos, já que não quero ficar longe dele, mas me tranquilizo ao saber que logo estarei de volta. Nick vem caminhando ao meu lado, num ritmo mais apressado, parecendo querer se afastar de Klauss o quanto antes.

- Ele dá medo. – Nick diz assim que entramos no carro – Mas achei ele legal.

- Sério? Achou mesmo? – Pergunto entusiasmada, ligando o carro e iniciando o caminho de volta.

- Achei sim... – Nick me olha de canto – E também acho que ele gosta de você.

Suas palavras me surpreendem, de tão repentinas – E por que acha isso?

- Vocês se olham da mesma maneira. – Nick diz pensativo – Eu não entendo como e nem o que isso significa, mas quando ele te viu, notei o mesmo brilho no olhar que você tem ao falar dele... Achei diferente num bom sentido.

Suas palavras ecoam em meus pensamentos, mas de certo modo, isso não me parece uma novidade, quando algo me vem em mente – E você falou tão naturalmente que gosto dele!

- E você não gosta? – Ele pergunta – Pra mim, ele parecia já saber disso.

- Gosto, mas... – Balanço a cabeça uma vez – Bom, se ele não sabia antes, agora sabe... Na verdade eu contei quando revelei ser um anjo, então ele sabe...

- Acho que ele já sabia disso Mika, sem que você precisasse contar. – Nick da risadas e acabo fazendo o mesmo – Você vai mesmo vir morar com ele?

- Vou. Só irei pegar algumas coisas antes de voltar. – Digo, já pensando como decidi isso tão rápido, sem nem pensar direito.

Opto por não pensar demais nisso. Já tomei minha decisão e não me arrependo dela.

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