Capítulo 23
5785 Palavras
A surpresa em mim é imensa. Por mais que já suspeitasse, ter essa confirmação da própria Mika me deixou atordoado, e sem palavras.
Ela é um anjo. É realmente um anjo.
Não qualquer anjo, mas sim o Anjo Boreal que sempre desejei conhecer.
Sua figura, outrora envolta de mistérios que tanto me intrigavam, agora exibe uma essência divina que atrai meu olhar, e não tenho intenção alguma de desviá-lo.
Observo o brilho dourado de suas asas, de plumagens visivelmente suaves e delicadas que manifestam pequenos flocos que cintilam em dourado e desaparecem assim que tocam o chão. Sua auréola não emana o brilho de uma graça, mas sim chamas que sei pertencerem ao submundo.
Mas isso não a torna hostil a mim. Pelo contrário, quanto mais a vejo, mais bela ela se torna.
Observar Mika neste momento me faz compreender que ela não somente portava o belo. Ela também o personifica.
As várias perguntas que saltavam em meus pensamentos, contendo respostas antes incertas, agora recebem suas respostas repletas de certezas, e novamente, tudo faz sentido.
Ao mesmo instante que novas perguntas surgem, tomando o lugar das anteriores.
Meu olhar permanece em Mika, que me olha de volta, parada no mesmo lugar, e talvez um pouco constrangida, não tenho certeza.
Desviando seu olhar ao chão com um semblante envergonhado, Mika abraça a si mesma, recolhendo suas asas para próximo de seu corpo como se tentasse ocultar sua nudez. Ou então, ocultar a verdade que acabou de me revelar.
- Você... Já sabia...? – Ela pergunta de repente, ainda sem me olhar.
Sua pergunta foi repentina, a ponto que levo um pequeno segundo para organizar meus pensamentos e poder responder algo. Somente agora compreendo o quanto estou admirando Mika, quase como se mergulhado em um transe causado por sua presença.
- Sempre te achei diferente Mika. – Começo a falar, sem deixar de observá-la. Meus olhos percorrem continuamente suas belas asas, e logo encontram-se com os olhos de Mika – Estive te observando, sempre te achei muito diferente daqueles que vieram antes, e nunca entendi o porquê. Mas passei a suspeitar desde a noite da aurora. Não faria sentido você chorar daquela maneira se não estivesse ligada ao incidente de alguma forma.
- Você sabia... – Ela diz baixinho, desviando seu olhar ao chão novamente, e não contenho um pequeno sorriso.
- Eu suspeitava. – A corrijo enquanto me levanto do sofá, aproximando-me devagar dela, tentando diminuir a distância entre nós – É diferente.
- Não é não... – A ouço responder sussurrando, ao mesmo momento que esboça um sorriso manhoso, e não reprimo um riso nasal, e então sustenta seu olhar em mim. – Mas agora sabe...
Sim, eu sei Mika. Talvez eu saiba mais do que você imagina.
- Quando você começou a falar, me senti voltando naquele dia... – Ela fala com a dor presente em sua voz, e ela passa as costas da mão pelo rosto. – Tudo voltou, aqueles momentos, o que fiz...
Pondero meus pensamentos e minhas próximas palavras, sentindo todo o peso do que Mika me diz. – O que a levou a vir ao mundo humano?
Lembro-me do que ouvi de Ion'Alia noites atrás, e todos os detalhes que me contou. Mas sei que somente Mika é quem pode me confirmar os reais motivos de suas decisões.
- Minha curiosidade... – Ela diz, aparentemente mais calma – Sempre tive curiosidade pelos humanos... Eu os via de longe, e me sentia fascinada por eles... E um dia... Eu quis caminhar entre eles...
- Foi no dia em que tudo ocorreu? – Pergunto.
- Eu não tinha intenção de interferir Klauss, não queria machucar ninguém... Eu só... – Ela tenta falar, mas ela deixa de me olhar, e consigo ouvir um soluço vindo dela – Eu só queria conhecer mais desse mundo ... Mas tantas coisas aconteceram, e aí...
Mika interrompe sua fala, que cada vez mais tornava-se rápida e desesperada, se assemelhando muito a uma súplica repleta de insegurança e medo.
- Eu... Eu não queria isso... Não queria nada disso... – Ela não contém um novo soluço, e mesmo não vendo seu rosto, sei das lágrimas caem por ele – ... Eu me arrependo disso, me arrependo do que fiz, do que escolhi... Eu não gosto do que sou, odeio quem sou... E não tem um dia que eu não lembre e sinta falta de quem fui... Não tem um dia que eu não lembre o que passei...
Não tenho reações ou palavras neste momento, e sinto-me preso ao chão, mesmo que o que eu mais tenha vontade é romper essa distância que existe entre nós que, apesar de tão pequena, também parece tão imensa.
Ver Mika dessa forma por mais uma vez tira qualquer reação minha. Jamais pensei que o anjo que sempre desejei conhecer guardasse tanto dentro de si.
- Se... Se pudesse, eu... Eu voltaria no tempo, daria tudo para voltar e mudar as coisas, não faria nada do que fiz... – Ela diz em meio aos soluços – Mas... Mas já é muito tarde para mim... Não sou mais um anjo... Eu sou um demônio...
Observo como ela se mantém encolhida a minha frente, envergonhada por si, suas escolhas e suas palavras. Apesar de tudo e do poder que abriga em si, Mika está visivelmente frágil como um cristal, e qualquer coisa agora parece ser capaz de quebrá-la.
Consigo deixar aquilo que me prende no lugar, e rompendo a distância que existe entre nós, passo meus braços ao seu redor e a abraço com firmeza, ao mesmo instante que manifesto minhas próprias asas e as aproximo de nós.
Seu corpo estremece a princípio, mas aos poucos relaxa, e percebo que ela não me afasta em momento algum.
Ela não me diz nada, apenas me observa com os olhos marejados. Nesse curto momento que nossos olhares se encontram, posso ver a inocência presente em sua essência.
- Ouça Mika. – Começo, dizendo num tom como se houvessem alguém próximo ouvindo o que digo a ela – Não se apegue tanto ao passado e ao que aconteceu. O passado é imutável, o que importa são as ações e decisões tomadas no agora.
- Mas... Ainda dói Klauss... – Ela me responde.
- E não tem problema se permitir sentir essa dor. – Digo calmamente – É preciso sentir, para então aceitar o que aconteceu, e enfim superar. Não é fácil, mas sei que você consegue.
- Por que... Está me dizendo tudo isso? – Ela permanece me olhando, e não consigo não me perder em seus traços. – E por que me recebeu, depois de tudo?
- Porque não estou mais bravo. – A respondo – E porque estou cuidando de você. Te protegendo daquilo que te assombra.
- Está cuidando um demônio, sabia...? – Ela pergunta me olhando. – Um que te atacou no último trabalho.
- Você não está trabalhando agora. E também, você não é um demônio do submundo Mika. – Toco seu rosto gentilmente, de forma que ela permanece olhando para mim – Você é um anjo caído... Mas ainda assim, um anjo.
Ela mantém seu silêncio, parecendo refletir nas minhas palavras.
- O que aconteceu com você? – Pergunto, não sabendo que terei uma resposta. Este não é um assunto fácil para Mika e sei bem disso.
- Muitas coisas Klauss... Muitas coisas... – Ela sussurra sem me olhar.
- Você desapareceu por um ano inteiro. – Digo também em um sussurro – O que houve?
- Um ano... – Ela me responde, virando-se de frente para mim, escondendo seu rosto em meu pescoço – Para mim, acho que foram uns cem anos... Mas não quero falar sobre isso... Não quero me lembrar daquilo...
Daquilo?
Pelo que você passou Mika?
Devagar sinto sua mão subindo ao meu peito e me afastando devagar. Apesar de não querer me distanciar novamente, não resisto e assim dou o espaço que ela precisa.
Mika passa as costas da mão pelo rosto, e percebe que meus olhos estão nas suas asas – Você olhou para elas o tempo todo...
- Sim. – Admito – Nunca vi asas como as suas Mika.
- São horríveis. – Ela diz com o olhar baixo.
- São belas. – Respondo de imediato, ganhando um olhar surpreso dela – Posso tocá-las?
A surpresa permanece presente em seu semblante, ao passo que as junta mais ao corpo, não por medo, mas pelo espanto. Mika me observa e assim permanece, enquanto a surpresa vai desaparecendo, e algo a qual não compreendo ao certo surge no lugar. Me parece algo como admiração, ou até mesmo encanto.
Relutante, ela me acena que sim com um pequeno gesto – Se me permitir tocar as suas...
Solto um riso nasal com sua condição tão inesperada – Tudo bem.
- É sério? – Pergunta incrédula.
Aproximo minhas asas de Mika para que ela saiba que pode tocá-las. – Sim, é sério.
- Sempre que eu quiser? – Ela pergunta sugestiva, e posso ver um sorriso começando a surgir em seu rosto, junto ao brilho de seu olhar. Sem demora, confirmo que sim, e seu sorriso aumenta – Bom... Se é assim, você pode tocar...
Com sua permissão, aproximo uma de minhas mãos, sentindo a maciez das asas de Mika. Suas plumagens são suaves e até mesmo delicadas, em uma harmonia visual envolvente, algumas pequenas, e crescendo até a ponta sem serem desproporciomais, que combina perfeitamente com ela.
É notável que Mika não as utiliza já a algum tempo, bastou um único olhar para perceber. Posso ver que elas não estão tão fortes como já foram um dia, e mesmo com o poder do submundo presente em seu interior, a beleza está aqui. São asas belas, as quais eu poderia demandar muito tempo apenas para observar e tocá-las, e não me incomodaria por isso.
Observo o brilho dourado presente nelas, um brilho contínuo e intenso, até tive a impressão de que suas asas seriam muito quentes, a ponto de me queimar pela alta temperatura e o poder do submundo que reside nelas.
Mas a verdade é que me surpreendo com o morno emanado pelas plumagens. Não sou queimado por esse calor, pelo contrário, ele é calmo e acolhedor, como se aceitasse minha proximidade e de forma alguma tentasse me afastar.
Volto minha atenção a Mika, e noto que seu olhar vai ao sofá de repente, e logo em seguida retorna a mim – Escuta... Podemos ficar ali? Estou cansada...
Concordo com um leve aceno com a cabeça e em silêncio seguimos ao sofá. No momento em que me sento, ela para ao meu lado, como se desejasse me pedir algo.
- Nós... – Ela começa a falar – Podemos ficar deitados? Não tem muito espaço, mas...
Interrompo sua fala, pousando uma mão sobre sua cabeça – Tudo bem Mika. Nós podemos sim.
Não sei bem como fazer isso, mas acabo deitando no sofá, e timidamente Mika deita sobre mim, se aninhando devagar. Um pouco sem jeito, passo as mãos pelas suas costas nuas, e observo suas asas por mais uma vez.
As mãos de Mika percorrem minha camisa, e não deixo de notar que aos poucos ela tenta alcançar minha pele por baixo do fino tecido, enquanto não tão sutilmente tenta desabotoar os primeiros botões. – Quer que eu tire?
Mika afirma balançando a cabeça, sem nem mesmo levantar a cabeça do meu peito. Acho que será um pouco complicado fazer isso com Mika deitada sobre mim, mas ela levanta e, ao invés de apenas observar, ela acaba desabotoando alguns dos botões da minha camisa, e logo a deixo minimamente dobrada sobre a mesa de centro.
Acabo estendendo os braços a ela, a convidando a se aproximar novamente, e assim Mika o faz, deitando sobre meu ombro, e assim ficando. – Bem melhor assim... – Ouço ela sussurrando, ajeitando seu rosto sobre mim.
- Por que diz isso? – Pergunto, alcançando a coberta com a ponta dos dedos, e puxando até parte das costas de Mika.
- É mais agradável... – Ela sussurra, e também penso o mesmo – É mais confortável... E já não sou a única sem uma peça de roupa agora...
- Era por isso desde o início, não é? – Questiono saltando as sobrancelhas, e ela me afirma com um som preguiçoso e sinto ela sorrir. Balanço a cabeça em negativo, e sorrindo de leve, pouso ambas as mãos nas costas nuas dela – Imaginei.
Mika apoia seu queixo no meu peito e me olha, com um sorriso travesso – Mas é melhor assim, não acha?
- É, acho que sim. – Digo, levando uma das mãos ao cabelo de Mika, afundando os dedos e os movendo devagar. Ela fecha seus olhos e volta a deitar – Como se sente?
- Melhor... E mais leve... – Ela responde, e sua voz realmente está mais suave – Obrigada por ter me protegido de mim mesma Klauss.
- Não tem de quê, Mika. – Digo sem deixar de olhá-la.
- Tudo bem se eu dormir assim? – Ela me sussurra. – Não quero ficar longe...
- Não tem problema. Pode descansar. – Sussurro de volta – Estarei aqui quando despertar.
Ela se ajeita, e em poucos minutos percebo como sua respiração suaviza, e tenho certeza de que Mika adormeceu, e mesmo que eu não precise descansar e nem mesmo sinta sono, fecho meus olhos, desfrutando da companhia que ela me faz, do toque de seu corpo ao meu, e a agradável sensação que tenho presente em meu interior.
*****
Passei a noite em claro, como imaginei que aconteceria. Mas não foi ruim de nenhuma forma.
A todo momento estive observando Mika, dando carinho e cuidando de seu sono, e da mesma forma que vi antes, ela dormia com um semblante leve em seu rosto. Nada parecia incomodá-la nesse instante.
Nesta manhã silenciosa, observo o pouco de luminosidade vinda da cozinha, e sei que esse é um sinal do amanhecer. Mika está se mexendo um pouco, suas asas ainda manifestadas reagem e abrem um pouco, e ela desperta preguiçosamente, bocejando e esfregando seus olhos.
Ela se ergue bem pouco, somente o suficiente para mover sua cabeça, e observa de um lado ao outro com olhos miúdos, claramente tentando entender onde estava, mas a sala não tão iluminada não colaborou muito. Observar isso é, de certa forma, bem divertido.
Quando por fim Mika ergueu seu olhar a mim, ela abre um sorriso. Um sorriso leve, da mesma forma que seu olhar nesta manhã, e apoiando seu queixo em meu peito, permanecemos nos olhando, e sequer sei dizer o quanto isso me transmite uma sensação boa.
É um sorriso tão sereno e ao mesmo tempo tão sincero, que não será surpresa se daqui alguns anos eu ainda me recordar desse sorriso com tanta clareza como nesse momento.
Me lembrar tanto desse sorriso, como da agradável sensação que me transmite.
- Ainda é cedo...? – Ela pergunta de repente com a voz carregada pelo seu sono, e respondo que sim. – Posso dormir mais um pouco?
- Pode sim. – Digo, fazendo menção de me levantar, mas Mika me segura, envolvendo seus braços ao meu redor, não me deixando sair do lugar.
- Fica só mais um pouco? – Ela pergunta com um tom bem manhoso, idêntico a sua expressão, e não nego que gostei disso – Está bom assim... E se eu não preciso levantar agora, você também não precisa...
- Será rápido. – Digo sem deixar de olhá-la. – Eu voltarei para continuar com você.
Ela me observa desconfiada, se levantando devagar – Promete?
- Sim, eu prometo. – Respondo me sentando, e logo ficando de pé – Voltarei logo. Trarei algumas coisas para o café da manhã.
Mika se ajeita no sofá, abraçando uma das almofadas – Volta mesmo...
Alcanço minha camisa e, recolhendo minhas asas somente para vesti-la, logo as libertando novamente, e saio pela porta da frente em passos não muito apressados.
Observo como tudo ao redor está molhado, aparentemente por ter continuado a chover até pouco antes de amanhecer, e o céu continua nublado.
Passo pelo portão da casa, e sabendo que neste horário da manhã ainda não há humanos deixando suas casas, não me preocupo com a possibilidade de ser visto por alguém. Nisso, abro minhas asas, e ascendo ao céu num ímpeto.
Vou voando devagar, passando meus olhos atentos pelas ruas, buscando primeiro onde Mika deixou seu carro. Irei busca-lo e, somente então, irei cumprir com o que disse de comprar algo para seu café da manhã.
Imagino que ela possa estar com fome, já que não comeu tanto ontem à noite. Provavelmente, a acompanharei hoje, posso não sentir fome, mas sinto vontade de acompanha-la.
Levo mais tempo do que esperava para encontrar o carro de Mika, mas finalmente o encontro, a uma distância bem considerável, e me surpreendo com o quanto ela teve que caminhar na noite passada. Seu carro não estava tão perto, e foi uma questão de muita sorte ter conseguido encontrar minha casa em meio àquela tempestade.
E eu não sabia que ela havia voltado. Já havia passado mais de um dia, e não houve sinal algum de seu retorno, então imaginava que Mika teria ficado no submundo.
Seja como for, estou bastante aliviado que ela tenha voltado, e ainda mais por ela ter acordado bem hoje... Por mais que ontem, tenha sido um choque vê-la daquela forma em meio a chuva, simplesmente não acreditei quando a vi em frente à casa.
Eu já não estava mais incomodado com ela não ter me dito sobre seu trabalho, ela teve seus motivos. Só não esperava que ela retornasse tão brevemente, ainda mais naquelas condições... Não imaginava me preocupar tanto ao ver como ela estava ontem.
De qualquer forma, ela está bem. Então, creio que não preciso pensar tanto. A única coisa que quero, é saciar minha vontade de voltar para casa o mais breve.
Meus pés tocam o chão, e sigo até o Mustang abandonado de Mika. Ao que parece, ninguém mexeu no carro durante a noite.
Antes que eu entre, sinto uma presença próxima de mim. O som de um bater de asas pode ser ouvido próximo de mim, e direcionando meu olhar sobre o ombro, vejo Ion'Alia e Lay'L tocando o chão próximo de mim.
- Olá Ka'Su. – Ion'Alia me cumprimenta com um sorriso.
Observo ambos, tendo a satisfação de ver um velho amigo, ao mesmo tempo que estou apreensivo pelas suas presenças, e por Mika estar na minha casa – Não sabia que viriam.
- Não tive tempo de avisar, fomos enviados de forma muito repentina. – Ion'Alia diz, levando suas mãos as costas.
- Não tem problema. É sempre bom ver outros anjos. – Digo os observando – Mas não anula meu desejo de saber porque foram enviados. Aconteceu algo?
- Mais ou menos. – Lay'L diz pensativa, e estranho suas palavras.
- Foi sentida a presença do Abismo na sua região. – Ion'Alia diz num tom mais sério do que ele costuma falar – Aparentemente, existe uma Cria do Abismo nesta cidade.
- Uma Cria do Abismo? – Me confirma com a cabeça, e aperto os olhos – Mas todas as crias não foram eliminadas naquela última batalha?
- Sim, mas... Surgiu uma nova. Mais problemática do que as que haviam antes. – O anjo baixa seu olhar por um instante – Tive o desprazer de encontrá-lo na minha missão de eliminar a bruxa rubra meses atrás.
- Não me contou isso. – Digo, ainda de olhos apertados.
- O arcanjo Ka'Ruel pediu sigilo sobre esse ocorrido. – Explica, e estranho a razão de nosso superior ter pedido sigilo de algo assim – Mas agora que a presença foi percebida, fomos enviados para alertá-lo.
- Muito bem, me manterei atento. – Respondo, começando a imaginar se a anomalia que senti dias atrás foi causada por essa Cria do Abismo.
- Você vai se manter longe dele Ka'Su. – Seu alerta me surpreende, e até mesmo Lay'L parece espantada com a maneira que Ion'Alia está falando – Não deve enfrentar essa criatura sozinho. Ele pode parecer um humano comum, mas é extremamente perigoso.
Assinto devagar, refletindo sobre o alerta recebido – Tudo bem. Terei cuidado.
- Ainda não é certeza, mas alguns anjos poderão ser enviados para monitorar a região. – Ambos os anjos abrem suas asas, e erguem-se devagar – Nós nos vemos em breve Ka'Su.
- Até breve. – Digo, vendo ambos indo cada vez mais alto, até tornarem-se apenas pontos cada vez mais distantes no céu.
Reflito em tudo que ouvi, e o que mais me preocupa não é a presença dessa Cria do Abismo, mas sim a presença de mais anjos na região. Isso me preocupa, pois significa que Mika poderá ser vista por outros anjos, e eles podem querer fazer algum mal a ela.
Acabo entrando no carro, identificando qual é o problema do carro, e assim que o abasteço expandindo parte da minha graça ao motor, ligo o carro e sigo para uma padaria próxima de casa, pensando em conversar tudo que ouvi com Mika.
*****
Alcançando as sacolas de papel no banco do passageiro, desligo o carro e saio, olhando ao redor me certificando de não haver nada próximo, seja a Cria do Abismo mencionada antes, ou então outros anjos.
Não sentindo a presença de nada, nem encontrando ninguém, fecho os portões e sigo para casa, ansioso por ver Mika novamente.
Assim que entro, a encontro deitada de bruços, com as cobertas até o meio de suas costas, e um livro em mãos, visivelmente entretida com sua leitura. Não deixo de notar que Mika manteve suas asas à mostra, pelo contrário, ela as abriu como se a muito tempo não o fizesse isso, e nesse momento tenho real noção do tamanho de suas asas.
- Voltei Mika. – Anuncio, chamando sua atenção a mim – Demorei?
- Sim! – Ela responde manhosa – Demorou muito Klauss.
- Não conseguiu voltar a dormir? – Pergunto pensativo.
- Queria te esperar voltar, mas você demorou. – Ela se senta, me olhando fixamente enquanto me aproximo – Aí comecei a ler para ver se o tempo passava e você chegava.
- Desculpe ter demorado. – Digo pousando a mão sobre sua cabeça – Vamos tomar café da manhã?
- Você vai comer também? – Ela me olha surpresa, e confirmo com um leve gesto, e ela se levanta – Uau, não que eu esteja reclamando, mas os anjos não sentem fome... Por que quer comer hoje?
Mantenho meu olhar em Mika, e assim permanecemos em nosso silêncio, onde apenas nossos olhares dizem algo. Logo Mika assente e fica de pé, parecendo entender todos os meus motivos e meus pensamentos, sem precisarmos ter dito uma única palavra.
- Vamos. – Digo num sussurro, e Mika segue ao meu lado até a cozinha, e ela é a primeira a se sentar – O que teremos hoje?
- Trouxe bolo para nós. Já experimentou bolo de milho? – Questiono, retirando a embalagem do bolo da sacola. Mika nega, e a forma como seu olhar brilha de interesse pelo bolo é mais que suficiente para entender sua resposta.
- Quero também aquilo que você fez na outra vez... – Mika responde pensativa, erguendo seu olhar por um momento – Como era o nome... Você misturou duas coisas...
- Café com leite? – Ergo uma sobrancelha.
- Isso! Café com leite! – Ela responde animada.
- Irei preparar. – Digo, já separando um pouco de água para preparar o café, e me aproximo da mesa.
- Ei Klauss... – Ela diz de repente – Quero te perguntar uma coisa... Se os anjos não sentem fome, por que você come algumas coisas?
- Posso não sentir fome, mas ainda sinto o sabor das coisas. – Respondo serenamente – Lembra que quando nos encontramos pela segunda vez, naquela lanchonete, eu havia encomendado dois lanches para mim?
- Isso é verdade, você tinha encomendado dois... – Mika assume um ar pensativo.
- É por esse motivo. Apesar de não precisar me alimentar, já experimentei algumas coisas, e os sabores de algumas dessas coisas me agradam muito. – Explico observando suas reações com o que falo, reações sempre muito genuínas – É por isso que eu como, mesmo não sentindo fome.
- Uau... Isso fez muito sentido agora... – Ela apoia o queixo sobre a mão – Sempre me foi tão misterioso você gostar de comer, nunca entendi...
- Creio que agora entenda minhas razões. – Digo, e com um sorriso, ela acena algumas vezes, e deixo escapar um pequeno sorriso de canto de boca, que em pouco tempo desaparece, quando algo importante me vem em mente – Escute Mika. Precisamos conversar.
Ela me observa atentamente, enquanto me sento a sua frente. Mika corta um pedaço de bolo, e come enquanto me olha, saboreando profundamente o pedaço do bolo.
Quando ela termina de aproveitar seu bolo, sua atenção volta a mim, com bastante curiosidade aparente – O que é?
- Fui informado que existe uma criatura rondando essa região. Ela parece perigosa. – Começo a dizer, observando suas reações. – Isso vai atrair anjos para a cidade.
- Quando soube disso? – Ela pergunta.
- Hoje, antes de voltar para casa. Alguns anjos foram enviados para me avisar. – Mika baixa seu olhar, refletindo sobre o que acabou de ouvir. Devagar aproximo minha mão da sua, e a seguro com firmeza, a fazendo olhar espantado para mim novamente – Não sei como outros anjos poderão reagir ao te ver. Por isso, quero pedir para você tomar cuidado daqui pra frente.
Mika mantém seu olhar em mim, e devagar sinto ela devolvendo o aperto, e logo nossos dedos se entrelaçam sem sequer desviarmos nossa atenção um do outro.
- Tudo bem, eu terei cuidado. – Ela me responde sorrindo – Mas você também terá que tomar cuidado Klauss. Tem um monstro rondando a cidade.
- Tomarei cuidado Mika. – Garanto assentindo, voltando meus olhos ao bolo e cortando um pedaço – O bolo está bom?
- Terá que experimentar para saber. – Ela responde em provocação, com um sorriso travesso nos lábios – E outra coisa que pensei agora...
- O que? – Pergunto curioso.
- Não foi você que fez o bolo. – Ela diz brincalhona, mordendo um novo pedaço.
- Dessa vez, não fui eu. – Respondo, pegando meu pedaço e mordendo, aproveitando o sabor suave e a maciez que Mika mencionou. – Na próxima, irei preparar o bolo eu mesmo.
- Só irei acreditar vendo! – Ela responde rindo, e solto um riso nasal, balançando a cabeça negativamente – Quero te pedir uma coisa Klauss.
- O que seria? – Digo ao me levantar, indo fazer o café, já que a água já começou a ferver.
- Lembra aquele músico que vimos uma vez? – Ela apoia o queixo sobre a mão, e faço que sim – Podemos ir ouvir ele tocar outra vez?
- Acredito que ele estará na praça hoje. – Digo refletindo sobre isso – Tudo bem. Podemos ir sim.
- Dessa vez, prometo que só irei embora depois de ouvir muitas músicas dele. – Ela diz risonha, pegando mais um pedaço de bolo, e sigo preparando o café.
- Quero ver se ficará mesmo ouvindo as músicas comigo. – Respondo a olhando sobre o ombro, e Mika me responde com um sorriso divertido, um sorriso que chega a ser magnético de tão atraente.
Por mais uma vez, dedico alguns momentos a observar Mika, me permitindo saciar a vontade que tenho de olhar a ela, e aproveitar de sua companhia. Ela não demonstra nenhum traço da preocupação ou os medos que vi ontem, pelo contrário, ela está muito mais leve.
Concentro-me de volta no que estou fazendo, e por mais uma vez deixo com que um discreto sorriso surja em meu rosto.
*****
- Ele estará lá? – Ouço Mika perguntar, se escondendo do frio dentro de uma blusa e calça de moletom de cores escuras.
- Acredito que sim. – Respondo, com as mãos nos bolsos do meu sobretudo branco e costume de mesmo tom – Ele sempre costuma ir para aquela praça. Mas não sei se ele está hoje, está um dia chuvoso.
- Eu espero que sim. – Ela responde com animação presente em sua voz – Gostei muito de ouvir ele da primeira vez.
- Antes de ir embora do nada. – Pontuo a observando de soslaio.
- É claro que fui embora, eu estava fugindo de você Klauss! – Mika rebate, acelerando seu passo e parando bem a minha frente, mantendo seu olhar fixo em mim. – Ainda não confiava em você!
- E agora confia? – Questiono, e não sei a razão, mas ela parece ter sido pega de surpresa com essa pergunta.
Ela cruza os braços e vira o rosto para o lado – Confio. – Ela diz num sussurro, aparentemente não querendo admitir em voz alta.
- Ótimo, porque também confio em você. – Digo calmamente, e quase que de imediato ela me olha de soslaio.
- Mesmo? – Questiona, ainda me observando do mesmo jeito desconfiado, mas mais brincalhão do que antes.
- Mesmo. – Confirmo, vendo o sorriso surgindo em seu rosto, pouso uma mão em sua cabeça – Vamos, a praça dos Ipês não está longe.
- Ei Klauss, acho que nunca te perguntei isso... – Ela diz assim que voltamos a caminhar – A quanto tempo você vive no mundo humano?
- Cuido desta cidade a pouco mais de nove anos. – Respondo fitando ao redor.
- Não, não é isso. Eu quero saber o tempo que você vive aqui. – Ela insiste, e a observo calmamente.
- Pois é esse tempo. – Reafirmo – Fui enviado para cuidar desta cidade anos atrás, e a partir daí, poucas vezes retornei ao paraíso.
Percebo que Mika se cala, e um ar pensativo assume seu rosto. Aguardo ela dizer qualquer coisa, mas não é isso que acontece.
- Algum problema? – Questiono, atento ao seu silencio duradouro.
– Você fala como se não vivesse aqui, sabia? – Ela finalmente diz.
Pondero um momento no que acabei de ouvir – Por que diz isso?
- Porque parece. – Ela diz simplesmente, torcendo a boca e olhando para o alto, ainda reflexiva – A forma como você fala da a entender isso, que não gosta dessa cidade e só está aqui por precisar protegê-la.
Tiro alguns segundos para pensar em suas palavras, e refletir como foram meus dias neste mundo desde que fui mandado para cá.
A verdade é que nunca me uni de fato a este lugar. Apesar de gostar de algumas coisas, não criei laços tão fortes assim. Nunca senti que pertenci a este lugar, ou que faço parte dele.
- Gosto deste lugar. – Digo mantendo minha atenção a praça dos Ipês a poucos metros de nós – Talvez só não o aproveite o bastante.
- Pois precisa começar a aproveitar Klauss. Estou aqui a tão pouco tempo, e já estou vendo muitas coisas incríveis que nunca imaginei existir. – Ela diz com brilho no olhar.
A observo fixamente, encantado com o quão sinceras são as palavras de Mika, e apesar de não falar isso, tenho pleno conhecimento de que passei a aproveitar muito mais recentemente.
Passar meus dias na cidade, visitando os distritos próximos, ou até os locais mais afastados, mas ainda dentro da minha região de atuação, tem de tornado mais agradável com o tempo. Passei a admirar mais algumas coisas que antes não chamavam tanto de minha atenção.
Entramos na praça dos Ipês, e da mesma forma que antes, Mika se encanta com o ambiente, como se essa fosse sua primeira vez visitando este lugar.
Ela corre na frente, mantendo seus olhos apontados ao alto em uma nítida admiração para as árvores de folhas de cores tão diferentes das demais árvores da região, trazendo uma sensação de pertencer a um local além do da cidade. Até mesmo o clima daqui aparenta ser mais leve, e Mika parece sentir isso muito bem.
Seu olhar brilha e seu sorriso chega a ser contagiante de tão sincero, e essa é uma reação que sempre gosto de ver nela.
Ergo o rosto, escutando alguns toques não muito longe de onde estamos – Consegue ouvir Mika? Ele está aqui.
- Ele está? – Pergunta me olhando com curiosidade – Onde?
Ainda com o rosto erguido, me concentro nos toques – Vamos seguir a música.
- Tá bem, vamos Klauss! – Ela diz, envolta de animação e me puxando pelo braço.
- Não precisa me puxar assim. – Digo acompanhando seu passo, e com isso Mika solta meu braço, mas sem se afastar de mim.
Caminhamos guiados pela música, com olhares percorrendo o espaço a nossa volta, quando ao nos aproximarmos do mesmo lago mais ao centro da praça, vejo o rapaz de antes, tocando uma música lenta e bastante suave em seu violão.
- Chegamos. – Digo olhando para Mika de soslaio – Vamos nos sentar ali?
- Não vamos falar com ele? – Mika pergunta me olhando de volta.
- Ainda não. Veja como ele está concentrado. – Digo assim que nos sentamos. Mika mantém seu olhar atento no rapaz por um instante, o observando em cada mínimo detalhe e em todo movimento realizado – Vamos deixá-lo terminar sua música.
Ela me olha de volta e assente, e com isso ambos mantemos nossa atenção na música tão bem tocada pelo jovem artista.
Mika se aproxima, e a sinto apoiando o rosto no meu ombro, e nesse instante meu olhar vai a ela, e permanece nela, e em um lento movimento, minha mão busca e encontra a sua, e em uma timidez presente em ambos, nossos dedos se enlaçam.
Um pequeno riso nasal me escapa, junto a um discreto sorriso que permanece vivo enquanto meu olhar está em Mika.
Algo desagradável me vem em mente. Uma pergunta que não quero fazer, mas sei que preciso. – Por quanto tempo você ficará, Mika?
- Eu não sei... – Ela responde com a voz baixa – Queria ficar, mas talvez deva voltar ainda hoje. Não sei quando receberei meu próximo trabalho.
- Voltará somente quando receber um novo trabalho? – Pergunto de forma a tentar manter um clima descontraído.
- Claro que não. – Ela responde rindo – Voltarei outras vezes também.
- Estarei aguardando seu retorno. – Respondo, tornando a olhar o músico a nossa frente.
- Me verá como uma inimiga quando eu retornar? – Ela pergunta, e tenho a impressão de sentir um receio em sua voz.
Reflito em sua pergunta, e em como foram as coisas em seu último trabalho. – Não sei. Se me contar, irei pensar.
- Irá pensar se me verá como inimiga? – Ela pergunta rindo, e assinto com a cabeça – Aí você vai tentar me impedir de cumprir meu trabalho?
- Talvez? – Respondo simplesmente, e ela continua em seu tom leve.
Mika de afasta um pouco e seus olhos encontram os meus, de sobrancelhas erguida e sorriso no canto do lábio. O ar travesso em seu semblante é notável, e me agrada saber que as coisas permanecem leves, e que Mika até aparente estar se divertindo.
- Se é assim, então, eu vou pensar se vou te contar. – Ela responde brincalhona, cutucando meu peito com o indicador de sua mão livre.
Permaneço a olhando, tendo somente o som da música e o mover das águas do lago presentes nesse momento, e com um discreto gesto com a cabeça, concordo – Tudo bem.
Ela assente mantendo seu sorriso, voltando a encostar em mim, e dessa forma, continuamos aproveitando deste momento tão agradável.
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