Capítulo 19

8922 Palavras

Resmungo preguiçosamente, esfregando meus olhos e estranhando o conforto e estabilidade de onde estou.

Ergo meu corpo, e vendo a pouca luz passar pelo vidro da janela, entendo que estou no quarto. Mas tinha certeza que adormeci balançando na rede, olhando a cidade.

Da mesma forma da última noite, dormi em um lugar, e acordei em outro. Como será que isso aconteceu?

É um questionamento que ecoa em meus pensamentos enquanto me sento na cama, junto a um duradouro bocejo.

Olho ao redor, gostando da sensação boa que esse ambiente me traz. Mesmo assim, lembro-me de algo.

Esse é o terceiro dia...

Ainda não descobri nada, mal tive avanços em encontrar as onze pessoas. Apesar de ter gostado muito de como foi o dia na companhia de Klauss, não me arrepender de nenhum momento e querer continuar tendo momentos como os de ontem mais vezes, preciso me apressar com meu trabalho.

Foi apenas um dia bom... Com a mais improvável das companhias, alguém que está em uma posição oposta a minha.

Alguém que apesar de tão oposto, é também alguém que me traz uma sensação muito boa.

Me levanto da cama e sigo para fora do quarto, me sentindo um pouco curiosa quanto a essa casa. Tenho vontade de explorar mais dela, já que olhei apenas o andar inferior desde que cheguei.

Ando com cuidado para não ser notada por Klauss, e entro em entro no quarto do final do corredor, e espio o que tem dentro.

Apesar de grande, o quarto em si é bem modesto, e um pouco menor do que o quarto onde despertei. Apenas uma cama ao centro, bem de frente a janela. Ao lado um guarda roupa pequeno, de apenas duas portas, e do outro lado um tipo de estante baixa com uma cadeira logo a frente.

Estranhamente é um quarto escuro e muito gelado, e olhando melhor, parece que Klauss nunca entrou aqui para nada. Chega até a ser um pouco triste.

Deixo o quarto devagar, e olho a porta do outro lado do corredor, mas tudo que vejo é um cômodo com azulejos claros, um tipo de assento estranho, uma pia e espelho, além de um suporte que nunca vi antes. Não tem um cômodo assim no submundo.

Deixo o quarto e vou até a primeira porta, que até então me transmite uma sensação de estranha familiaridade em seu interior.

Olho para a escada uma vez, me certificando de que Klauss não está vindo, e abro a porta, sentindo um calor repentino e muito familiar me abraçar ao entrar, e tendo uma surpresa imensa com o que vejo.

Encontro uma aura dourada semelhante a uma grande nuvem, pairando bem ao centro do quarto, em seu movimento sereno e silencioso. Uma aura de repouso do paraíso.

Eu jamais imaginei ver algo assim de novo, que agora que estou diante de uma dessas, estou completamente sem reações nem palavras. Klauss manter uma aura assim dentro de um quarto é simplesmente inacreditável.

Quase como se fosse atraída peço seu calor profundo que me causa tamanha nostalgia, caminho até a nuvem, em cada passo sentindo o calor emanado me envolvendo devagar e estendendo meu braço para tocá-la, quando por instinto paro meu movimento e olho para trás, temendo ser pega por Klauss.

O que estou fazendo?

Recuo devagar, um passo de cada vez, segurando minha mão para não tornar a tentar tocar a aura. Já não pertenço mais ao mundo que isso veio, não posso desfrutar dela.

Deixo o quarto e desço para a sala, tentando esquecer o que vi. Preciso pensar no que vim fazer... Já perdi muito tempo, e tenho que recuperá-lo de alguma maneira.

Desço ao andar inferior, curiosa com tamanho silêncio. Não encontro Klauss na sala, e então sigo para a cozinha, onde também não vejo o menor sinal do anjo.

Caminho para fora da casa, e não encontro Klauss em nenhum lugar. Começo a me perguntar onde ele deve estar neste momento.

Olho para algo diferente numa árvore próxima, que já havia me chamado a atenção antes, mas até então nunca havia chegado perto para olhar melhor.

Me aproximo da árvore, sem entender ao certo qual a utilidade disso, muito menos o porquê de estar aqui. Um pneu velho suspenso por uma corda, e essa está amarrada firmemente em um galho firme.

Empurro o objeto devagar, e ele sacode lentamente. Giro o pneu com a ponta dos dedos, e segundos depois ele inicia um movimento inverso, acho que por causa da corda. Tento analisar isso com cautela, mas não tenho sucesso em encontrar um sentido para esse pneu velho.

Decidindo continuar minhas reflexões sobre esse estranho objeto uma outra hora, torno meu olhar para a casa, com um estranho desejo crescendo em meu peito.

Observo a casa por longos segundos, e em meio ao silêncio desta manhã, ouço o som do fogo em meus pensamentos. Seu característico ruído ao reduzir tudo a cinzas cresce cada vez mais em minha mente.

Assistir sua madeira em brasas, o fogo crescendo e espalhando por todos os lados em sua avermelhada luz instável e faminta, até por fim as madeiras e pedras carbonizadas ruírem, levando consigo tudo que reside em seu interior. Essa imagem me causa um estranho deleite.

Tenho anseio de vê-la nesse estado, ardendo em meio das selvagens labaredas criadas pelo meu poder. Algo que cresce em mim num ímpeto misterioso e muito tentador, de forma que quero fazer isso... E sei que posso fazer.

Qual o problema de fazê-lo? Nenhum... Nenhum problema.

Meu corpo se move por vontade própria, ansiando por tal destruição, e com o braço esticado na direção da casa, uma aura quente passa ao meu redor como um vento selvagem, concentrando-se em torno do meu braço e gerando uma esfera flamejante em minha mão.

A esfera expande, à medida que injeto mais e mais poder nela, a ponto que mesmo que seja uma esfera aparentemente estável, toda a chama acumulada em seu interior não é. E sei que assim que lançar esse poder através da porta da cozinha, a explosão será tão forte, que irá tomar a casa em pouquíssimo tempo, e talvez até faça parte da estrutura desabar. Talvez os humanos ao redor consigam ouvir o som da explosão perfeitamente.

Um sorriso surge em meu rosto. Um sorriso que cresce, transformando-se em um riso pelo que estou prestes a fazer, e não tenho intenção de parar, conforme intensifico cada vez mais o poder concentrado.

Klauss terá uma bela surpresa.

Um estalo me atinge e paro de imediato, encarando a esfera flamejante presente frente a minha mão, e me assusto com seu tamanho e tanta energia que ela está emanando de uma só vez.

Recuo a princípio, com cuidado para não perder o controle de tamanha energia, e juntando ambas as mãos, e com bastante esforço começo a suprimir todo o poder reunido.

O que eu estava fazendo?

Aos poucos consigo suprimir todo o poder liberado, até por fim ele não existir mais entre minhas mãos unidas.

Respiro fundo algumas vezes, tanto pelo meu esforço, quanto por não entender o que estava fazendo, e o que estava me guiando a fazer aquilo. Nunca agi dessa forma, o que está acontecendo?

Ouço o som de um motor se aproximando, e reconheço ser o carro do Klauss, e conforme o som se concentra na frente da casa, sei que ele acabou de chegar. Antes que eu perceba, já estou indo para a cozinha para encontrá-lo.

O som da porta da sala indica que ele já entrou, e respiro fundo a princípio. Não quero deixar transparecer o que estava prestes a fazer, nem o que vi no andar de cima, então quero estar o mais normal possível para que ele não perceba.

Klauss entra na cozinha com uma sacola de papel branco e desenhos marrom, e imediatamente ergue seu olhar a mim – Bom dia Mika. Trouxe alguns pães para você.

- Mesmo? – Digo me permitindo alguma empolgação, indo olhar o conteúdo do saco de papel, sentindo o quentinho ao toque, e sem demora pego um pão – Você quem fez?

- Não, comprei eles em uma padaria aqui perto. – Klauss aperta seus olhos, sem mudar muito sua expressão naturalmente calma – Perguntará isso para todas as coisas que eu trouxer?

- Talvez? – Respondo brincalhona, e mordo um pedaço.

Acompanho o anjo indo até a geladeira, e procurando por algo em seu interior. Ao que parece, Klauss não percebeu nenhuma diferença em mim ou nas minhas ações, então acho que ele não desconfia de nada, para meu alívio.

O anjo fecha a porta da geladeira e volta até a mesa, trazendo algo em sua mão – Sobrou um pouco de presunto e queijo que não coloquei na lasanha. Experimente colocar no meio do pão.

- No meio? – Pergunto a mim mesma, olhando o pão já mordido, e sem demora abro o pão com a ponta dos dedos, o deixando todo arrebentado. Posiciono o presunto e o queijo, e tendo ele pronto, experimento essa combinação, e ao mesmo tempo que aproveito os sabores, algo me deixa curiosa – Está diferente de ontem...

- Diferente? – Klauss pergunta, enquanto termino de saborear o primeiro pedaço, e encaro o pão em minhas mãos fixamente.

- Sim... Tá bem... Está gelado, e a consistência é outra, o queijo tá diferente, acho que bem mais firme, e ontem ele esticava dentro da lasanha... E os sabores são parecidos, mas não são os mesmos. – Tento explicar minha imensa confusão com os sabores, e Klauss me assiste, parecendo estar entretido com minha confusão – Por que isso?

- O modo de preparo é outro. – Ele diz calmamente – O sabor está diferente pois lasanha tinha a massa e os temperos. Ela foi assada e por isso, o queijo assumiu outra consistência pela exposição prolongada ao calor. Do modo como está aproveitando agora com o pão, não tem temperos presentes, e tanto o presunto quanto o queijo estavam conservados pelo frio.

Assinto repetidas vezes, absorvendo o que ele me disse – Então... É por isso...? Temperatura e temperos fazem tanta diferença assim?

Ele confirma com a cabeça, e gostando do que acabei de descobrir, dou uma nova mordida, ainda achando curiosa tamanha diferença com algo que parece tão pequeno. – E os sabores mudam se colocar outros ingredientes junto.

- O sabor muda ainda mais? – Pergunto surpresa, antes de mais uma mordida. E o anjo me confirma com um aceno da cabeça, me deixando sem reação pela quantidade de variedade presente no mundo humano.

Klauss segue até a porta da cozinha e olhando algo do lado de fora fixamente. Ele não diz nada a princípio, e fico um pouco nervosa por talvez ele suspeitar de algo que eu estava prestes a fazer mais cedo

- Vamos sair depois que você comer. – Ele diz de repente.

- Para onde vamos? – Pergunto o olhando, mordendo meu pão.

- Ao terceiro distrito. – Responde, ainda sem me olhar – Quer conhecer mais da região, e sobre a temática espiritual, não é?

Lembro-me disso, e também do que me motivou a querer ir nesse distrito em particular. Apenas para buscar tentar cumprir com meu trabalho, e cada vez mais o pensamento de que perdi muito tempo volta a minha mente.

Por um lado, sei que tenho um trabalho a fazer, e isso está me deixando muito dividida. Mas por outro, me sinto mal de não falar a verdade ao Klauss, mas se o fizer, tenho certeza que ele irá me expulsar daqui, ou até mesmo fazer alguma coisa pior comigo. Não posso arriscar falar e colocar tudo a perder.

Estou gostando de como as coisas estão caminhando, da sensação de leveza que tenho nesses momentos que passo com Klauss... E com certeza, dessa sensação boa que tenho crescendo em meu peito cada vez que olho para ele, e temos momentos juntos.

É confuso para mim, surgiu tão de repente, mas ao mesmo tempo é uma sensação tão boa.

Não quero que ele me veja como uma inimiga... Porque agora, não o vejo como meu inimigo.

- Sim, eu quero muito conhecer tudo daqui. – Respondo, em um misto de verdade, com meu anseio de conseguir cumprir com meu trabalho no tempo.

- Pois bem, assim que terminar de comer, podemos ir. Estarei te esperando. – Klauss sai da cozinha e caminha até o quintal.

Um pouco curiosa, vou atrás dele e o observo. Ele encara a cidade fixamente, mas alguma coisa está diferente nele hoje. Consegui sentir que o anjo está tenso com alguma coisa, mas não sei dizer ao certo o que é.

Será que ele descobriu minha razão de estar aqui?

Não, não é isso. A forma como ele me tratou não mudou nem um pouco. Ele continua me tratando bem, e consigo sentir como ele está leve em relação a mim, e apesar de sua expressão sempre calma e olhar firme, não sinto nenhuma hostilidade quando ele me olha.

O que pode ter acontecido?

*****

Vou acompanhando o carro da frente, que desacelera devagar e estaciona sem dificuldades em uma vaga não muito larga. Acabo fazendo o mesmo em outra vaga mais a frente, não tendo tanta dificuldade ao parar o carro.

Desligo e saio do carro, sentindo o calor do sol do meio dia, e apertando os olhos para conseguir enxergar ao redor minimamente bem.

O lugar é bastante movimentado para essa hora, vejo muitas pessoas andando de um lado ao outro, todas vestidas de forma leve e se abanando algumas vezes numa tentativa de escapar do calor, que está insuportável, a ponto de me fazer suar.

Retiro a blusa que vesti sem necessidade, permanecendo somente com uma das várias camisetas largas de cor cinzenta que trouxe do submundo, mas nem mesmo isso alivia o calor que sinto.

- Você não trouxe roupas mais leves? – Ouço a voz de Klauss bem perto, e viro-me para olhar a ele, enquanto puxo a gola da camiseta repetidas vezes tentando me refrescar.

- Só tinha isso quando vim para esse mundo. – respondo torcendo a boca de lado – Mas não tem problema. Isso está bom para mim. Podemos ir?

- Sim, podemos. – O anjo diz, passando seus olhos ao redor por algumas vezes, como se estivesse buscando algo, ou alguém. Klauss está muito estranho.

- Bem... – Tento puxar assunto, assim que começamos a caminhar – Onde vamos primeiro?

- Pensei em mostrar o distrito primeiro. – Ele diz, sem me olhar – E depois, apresentar lugares que você pode ler sobre a temática espiritual.

- Ah, certo... – Digo com um misto de emoções em mim.

Estou animada por conhecer mais esse lugar, ansiosa por talvez ter as primeiras informações que me levem ao grupo que procuro, e nervosa pela forma como Klauss está hoje.

Muitas coisas estão me distraindo. Preciso me focar em meu próprio trabalho. Esse é o principal motivo de estarmos aqui hoje.

Entretanto, consigo perceber logo nos primeiros momentos como esse distrito é muito diferente dos demais lugares dessa região. A energia daqui é muito diferente das demais, ela é mais intensa, de forma como se eu sentisse fortalecendo meu ser e me traz uma sensação muito boa. Além disso, apesar do intenso calor, consigo notar como o ar é leve e bastante agradável, a ponto de causar uma sensação de relaxamento bem grande.

Caminhamos pelas primeiras ruas do distrito, e algo que percebo haver muito por aqui, são algumas mesas, todos contendo muitas coisas feitas principalmente com tecidos, madeira, cordões e pedras de variadas cores.

Meu olhar é atraído para cada uma dessas mesas, algumas estando repletas de coisas muito diferentes, outras sendo muito mais modestas que outras. Mas todas tem uma grande variedade. Em algumas barracas vejo tecidos largos expostos, contendo desenhos formados por linhas de cores mais destacadas. Vejo também várias flores coloridas feitas com algum tecido, e mais ao frente algumas esculturas em formato de animais e humanos, além de painéis com muitas coisas diferentes a mostra, uma mais interessante que a outra, a ponto de eu não saber para onde olhar.

Puxo a barra da camisa de Klauss, buscando chamar sua atenção – O que são essas mesas?

- São barracas de artesanato. – Ele diz, parando de caminhar e mirando seu olhar profundo em uma das barracas. – Normalmente, os donos de cada uma dessas barracas criam os artigos que está olhando agora.

- É sério? – Pergunto empolgada, voltando minha atenção a barraca que olhamos. Me aproximo, olhando as várias coisas com bastante interesse – Você quem fez tudo isso?

O homem, de poucos pelos no rosto, uma faixa colorida na cabeça e cabelos escuros amarrados acima da cabeça, ergue seu olhar a mim, como se retirado de um transe. Percebo que ele tem algumas cordas pequenas em suas mãos, e ele está enlaçando elas formando um tipo de corda colorida maior.

Ele olha para a barraca, e então para mim novamente – Sim... Bom, a maioria das coisas sim...

Olho para algumas coisas expostas com bastante curiosidade, e aponto um colar de corda escura com uma pedra amarrada nele – Fez esse aqui? – Ele confirma com a cabeça, e aponto para uma das várias miniaturas de casa feita com alguns palitos de madeira – E esse aqui? – Ele confirma novamente, e aponto para um tipo de medalhão de madeira com um formato engraçado de lua, suspenso em um colar com pedras redondas brancas – E esse aqui?

- Todos esses, fui eu quem fiz. – Ele diz, passando seus olhos pelos vários itens expostos.

- Uau... – Sussurro para mim mesma, e olho para Klauss – Tudo isso é artesanato?

- Sim Mika, cada um desses itens. – Klauss diz, parando ao meu lado, e olhando um tipo de colar de contas com bastante cuidado. – A única coisa que ele não fez, foram as tapeçarias, e aqueles jarros de barro bem ali.

- Como sabe disso? – Pergunto curiosa, e ao olhar ao homem, ele confirma com a cabeça.

- Ele sabe todas as coisas que vendo. O senhor Klauss me ajudou a montar minha lojinha. – O homem diz, e olho perplexa ao anjo ao meu lado.

- Você? – Pergunto sem acreditar.

- Sim, o acompanhei para conseguir está barraca, e também para conseguir seus primeiros materiais. – Klauss explica me olhando.

- Só não produzo os tapetes e os panos... Nem esses jarros de barro. Não tenho conhecimento algum nisso. – Ele explica, e torno a olhar os vários objetos. – Mas todo o restante, eu mesmo quem faço. Essas casinhas e carrinhos de palitos de picolé, os colares, e minha novidade... Comecei a fazer essas casinhas de pedra bem aqui.

Enquanto olho encantada cada um dos objetos, um deles me chama a atenção. Um tipo de círculo de cordas, com uma rede trançada em seu interior. Existem algumas contas presas entre as cordas da rede, e do lado de fora desse círculo, suspensas por cinco cordas, vejo longas plumagens brancas e alaranjada criando uma decoração muito bela, que me agrada muito.

- E isso... O que é? – Pergunto sem desviar meus olhos do objeto.

- Isso? Se chama apanhador de sonhos. – O homem explica.

- Apanhador de sonhos? – Pergunto genuinamente curiosa pelo objeto – E para que serve?

- Muitas pessoas o usam só para decoração em suas casas, mas ele também tem um significado místico. Esse amuleto serve para guardar seu sono, capturando os sonhos ruins e garantindo que possa descansar. – Ele explica novamente, e meus olhos continuam no objeto – Basta deixar sobre a sua cama.

- Então... Não é só uma decoração... – Sussurro para mim mesma – Tem uma utilidade...

- É um artefato essas propriedades. Ele pode purificar energias presentes, separando sonhos bons de pesadelos, fornecer proteção a quem possui. – O homem se levanta, pegando um dos apanhadores de sonhos expostos – E cada parte dele significa algo.

- É sério? – Olho intrigada ao objeto, e então ao homem, que confirma com a cabeça. Viro meu olhar a Klauss, que está me olhando da mesma forma de sempre. Com um olhar âmbar firme e ao mesmo tempo muito indecifrável, e feição sempre calma – Quais significados ele tem?

- Este círculo de fora representa eternidade, o centro significa o interior, a rede representa o caminho e a alma... – Enquanto fala, ele vai me apresentando cada respectiva parte do apanhador de sonhos – A plumagem representam o ar, coragem e sabedoria. Essas pequenas pedrinhas são um símbolo de cura, afastam tristezas e o medo, e as cores transmitem sensações.

Me pego pensativa sobre o que acabei de ouvir dele, e meus pensamentos sobre a riqueza de coisas que existem pelo mundo humano. Jamais, em toda minha vida, havia imaginado que algo assim pudesse existir, e os humanos tem um objeto como esse.

E agora que passo meus olhos pelos demais objetos da barraca deste homem, e começo a considerar a possibilidade de cada um deles também possuir algum significado.

Começo a refletir sobre o que ouvi, e lembrar das imagens que tive enquanto dormia essa noite, e a sensação horrível de medo e impotência que tive.

Viro o rosto devagar para Klauss, e ele corresponde ao meu olhar – Eu... Posso levar um desses?

O anjo continua me olhando, sem se pronunciar. Imagino que Klauss vai recusar meu pedido, ou até mesmo perguntar minha motivação para querer um apanhador de sonhos, mas o que tenho dele é apenas, e unicamente, seu silêncio.

Estou prestes a desistir, quando Klauss pega justamente o apanhador de sonhos que eu estava olhando até então, e me encarando uma última vez, ele retorna sua atenção ao homem – Levaremos esse. E também, iremos levar aquele brinco e o colar da pedra azulada bem ali.

- Ah certo, vou embalar para vocês. – Ele diz, retirando uma sacola plástica de algum local do outro lado da barraca, e guardando apenas o apanhador de sonhos, já o brinco é guardado em uma sacola menor, e Klauss segura o colar em uma das mãos.

O anjo paga os dois itens, e me entregando a sacola, nos afastamos da barraca aos poucos. Apesar de estar animada com o apanhador de sonhos, estou mais curiosa com os outros dois itens que o anjo comprou.

- Por que comprou essas duas coisas? – Questiono, vendo Klauss girando a pedra azulada em seus dedos.

- Não são para mim. – Ele responde, e então me olha – Sabe qual pedra é essa, Mika?

- Não, nunca vi uma pedra assim... – Digo ao analisar bem a pedra azul clara, bem redonda em torno das cordas pretas – Mas gostei muito das cores dela.

- É chamada de água-marinha. Uma pedra que simboliza pureza, inocência, e arrisco dizer também que simboliza a curiosidade. – Klauss explica, e ao pararmos de caminhar, ele mexe no cordão e estende sua mão até mim, e devagar o sinto colocando o colar em mim – Creio que essa pedra fique muito bem em você.

- Acha mesmo? – Questiono olhando a pedra em torno do meu pescoço, e tornando minha atenção ao anjo, algo me vem em mente. – Você acredita mesmo que essa pedra simbolize tudo isso?

- Não exatamente. – Ele responde sem demora – Mas gosto do simbolismo dela, e ela combina com você.

Uma pedra que significa inocência, pureza e curiosidade. Gostei disso, ainda mais por simbolizar a curiosidade, algo que sempre existiu em mim, e parando para pensar nisso... Klauss tem razão. Uma pedra que simboliza a curiosidade realmente combina muito comigo.

Em nosso passeio, continuo atenta as várias lojas de artesanato presentes no distrito. A variedade parece aumentar a cada novo passo.

Vejo algumas barracas tendo uma grande quantidade de adornos diferentes. Em outros, vejo muitas decorações variadas, alguns sendo animais de tecido ou madeira, algumas bonecas estranhos com cabelos trançados, pintas no rosto e vestido colorido, algumas são bem parecidas, mas tem vestidos pretos, um chapéu e um tipo de madeira em mãos. Em outros, vejo carros e outros veículos de madeira, cestos de diferentes tamanhos, vasos de plantas feitos com muitos materiais, formatos e desenhos diferentes, estantes de corda, tudo com uma aparência única, e quanto mais andamos, mais disso vejo em várias barracas ao redor.

Um pouco afastado das barracas, vejo algumas estátuas dispostas em alguns pontos da rua, que olhando melhor, parece ser dedicada unicamente ao artesanato. As estátuas daqui são diferentes de outras que vi no submundo e a muito tempo atrás no paraíso. Elas são criadas com retalhos em madeira, pneus, latas e até alguns fios de metal. Cada uma com um tamanho diferentes, mas deixando claro todo o cuidado presente em sua criação.

O que mais me encanta em cada um dos objetos que vejo, é saber que eles foram feitos a mão pelos humanos.

Em árvores próximas e na entrada de algumas lojas, vejo algumas estátuas menores compondo suas decorações únicas, me dando a sensação de que cada lugar daqui é muito diferente do outro, mesmo que abriguem coisas semelhantes.

Não sei por quanto tempo andamos, e na verdade, não faz diferença. Minha empolgação é tamanha que poderia andar de um lado ao outro o dia inteiro, e ainda não me sentir nem um pouco cansada, e apesar de Klauss pouco se expressar durante boa parte do nosso caminhar pelo distrito, e também continuar olhando ao redor a todo momento procurando por algo desconhecido para mim, por vezes senti seu olhar em mim. Seu olhar e, estranhamente, seu cuidado, quade como se quisesse garantir meu bem estar.

Essa última parte me parece impossível por simplesmente não fazer sentido algum... Mas ainda assim, tenho a nítida impressão de que Klauss estava cuidando de mim a todo momento que me olhava.

- Está vendo aquele prédio? – Klauss pergunta de repente, focando sua atenção a um prédio com uma arquitetura diferente das demais presentes no distrito. Ele tem um ar mais antigo e também bem robusto.

- Estou, o que tem? – Questiono, mantendo meu foco na construção, reparando que é justamente a ele que Klauss está indo

- É a livraria desse distrito. – Responde, enquanto subimos os pequenos degraus e as portas se abrem sozinhas, correndo aos lados – Ela é dividida em duas sessões. A primeira é a livraria, dividida nos dois primeiros andares, onde deixam muitos livros de diferentes temas a venda, além de mais alguns artigos de papelaria e decorações. A segunda sessão fica no terceiro andar, dedicada para quem quer aproveitar livros, ao encontro de grupos de autores e leitores, e é chamada de espaço dos leitores.

Minha atenção se divide em muitos pontos diferentes. O lugar inteiro é um misto, é bastante iluminado, tendo um piso parecido com madeira, colunas brancas e escadarias também de madeira do outro lado do salão. Bem ao centro o teto é aberto, dando visão aos andares superiores dessa construção, me deixando curiosa sobre o que existe mais acima.

Nas laterais, vejo muitas estantes de madeira, não são tão altas, mas são compridas e estão lotadas com livros, e muitos placas suspensas no ar por pequenas cordas com uma única palavra escrita. Ao ver tantas, imagino que essas placas digam o tema dos livros próximos. E pela grande quantidade de pessoas aqui, parece ser um lugar muito procurado.

- Uau... Esse lugar é tão grande assim? – Pergunto surpresa, olhando ao redor primeiro, e por fim para o alto, onde consigo ver os demais andares desse prédio e algumas pessoas encostadas na cerca de madeira das beiradas.

- Sim. Às vezes, até eu imagino ser maior dentro do que por fora. – Klauss passa seu olhar ao redor, observando todo o movimento, e por mais uma vez, tenho a sensação de que ele está procurando por alguma coisa. – A sessão espiritual fica no terceiro andar.

- Então vamos Klauss. O que estamos esperando? – Pego suas mãos e o puxo, ignorando que algumas pessoas tenham olhado para nós depois da minha ação repentina.

Seguimos ao andar superior, e sem demora vou procurando algo que indique onde está a sessão espiritual, na expectativa de finalmente ter algum avanço no meu trabalho. Para minha sorte, Klauss não parece desconfiar de qual minha razão de estar aqui.

Encontro uma placa com os dizeres "espiritual" e com isso, sei que encontrei a sessão, e vou correndo até ela, decidida a conseguir desvendar algo.

Começo a analisar os vários livros, procurando com o olhar algo que possa ser de alguma serventia, e com a ponta do dedo vou passando as várias capas.

Percebo uma aproximação, e até imagino ser Klauss, mas alguma coisa está diferente. A energia acabou de mudar muito, consigo sentir que o ar ficou mais pesado e muito hostil, e tenho certeza de que não se trata de alguém normal.

A fonte dessa presença para ao meu lado, e prestando atenção com o canto do olho, vejo a figura alta sacando um livro da prateleira, e observando a capa por alguns segundos.

Um homem alto e de porte corpulento, de pele um pouco enrugada pela aparente idade, cabelos grisalhos bem baixos e uma larga barba toda emaranhada. Seus olhos são de um castanho cinzento e se mostram concentrados, e suas roupas são fechadas e, apesar de discretas, são bem alinhadas.

Presto atenção no livro que ele tem em mãos, e ele não aparenta nada de mais a princípio. Não vejo um nome na capa cinza escura, mas um símbolo estranho com algumas esferas e linhas ligando todas elas, e alguns símbolos em tons mais discretos.

De repente ele tira seus olhos do livro e os volta diretamente a mim, quase como se já tivesse conhecimento de que estou o observando. Não nego que isso me assustou um pouco, mas tento não transparecer isso.

- Já leu esse livro? – Ele pergunta, com uma voz levemente arrastada.

- Não, mas tenho curiosidade pelo tema. – Respondo tentando parecer ser um pouco simpática.

- Ah, é mesmo? – Responde, tornando a olhar o livro – Não tem cara de quem se atraí pelo simbolismo ocultismo.

- Minha aparência engana, muitas coisas me atraem. – Respondo de forma quase automática, o que para mim é uma surpresa.

- Interessante, então, o ocultismo extrafísico te atrai? – Ele questiona, revelando um sorriso claramente estranho, contendo alguma satisfação deturpada junto a interesse, e passando a mão pouco enrugada pela barba, ele continua – Algo em particular te fez ter tal interesse por esse campo do espiritual?

Isso! É exatamente isso que quero saber! Acho que finalmente estou indo no caminho certo! Ele deve saber de alguma coisa.

- Talvez. – Respondo evasiva enquanto vou analisando como o homem se comporta, e a maneira como ele sorri e me olha faz com que eu tenha alguma repulsa – Quem sabe... Acontecimentos recentes tenham atraído meu interesse?

O homem empalidece com minhas palavras, e o espanto toma seu rosto – Acontecimentos recentes? Você sabe o que aconteceu recentemente?

- Ouvi alguns boatos, algo envolvendo um ritual... E fiquei curiosa para descobrir mais. – Respondo com um meio sorriso percebendo como o homem recua devagar. Corro meu olhar ao redor rapidamente para me certificar que Klauss não está por perto, e como não o encontro, decido continuar – Talvez você saiba de algo. Quer me contar?

- Sinto muito garota, não sei de nada disso. – Ele responde claramente tentando me enganar, mas não consegue. Consigo ver a mentira em suas palavras.

- Mesmo? Você não sabe nada? Nem mesmo... – Pauso um momento, cerrando os olhos e mantendo um sorriso – Sobre uma tentativa de invocação falha?

Ele ergue seus olhos, agora consternados, e virando seu rosto de um lado ao outro por uma vez, ele torna a me olhar – Escute bem garota, isso não aconteceu! – Ele diz num sussurro, enfatizando a palavra "não".

- Não precisa mentir, sei o que aconteceu. E estou interessada. – Insisto, ansiando pelo momento que ele pare de resistir e me conte o que sabe, pois com toda certeza, ele sabe de alguma coisa.

- É mesmo? – Ele questiona, e olhando ao redor por mais uma vez, ele faz um gesto para eu segui-lo, e assim faço sem demora – O quanto você sabe?

- Sei que vocês são onze pessoas, com grande domínio espiritual, e que nos últimos tempos vocês tentaram realizar uma invocação que não foi bem sucedida. – Respondo a medida que nos afastamos da parte com maior movimento, alcançando uma sessão bem mais deserta.

No local onde estamos, é escondido o bastante para que as pessoas mais próximas não consigam nos ver, muito menos ouvir o que falamos. Por um lado isso me alivia, já que não vejo Klauss em nenhum lugar, e isso é um alívio já que agora de fato estou trabalhando.

As únicas pessoas próximas são dois rapazes e uma garota, olhando alguns livros e distraídos em sua própria conversa.

- Isso deveria ser segredo... – Ouço o homem falando com um tom preocupado, e desvio meu olhar de volta a ele, me concentrando novamente em meu trabalho – Mas você sabe até mesmo quantos somos... Quem espalhou?

- Não veja isso como um problema. – Digo solicita, estendendo uma mão a eles – Não quero prejudicar vocês. Pelo contrário...

- O que quer dizer? – Ele olha para minha mão, e então aos meus olhos de forma desconfiada.

- Que quero ajuda-los. – Mantenho meu tom e meu sorriso. – Quero, e posso fazer isso.

Ele continua me olhando com um ar desconfiado – Como? Não pense que irei acreditar somente em sua palavra.

- Segure minha mão, e irá entender. – Digo o instigando – Verá que falo a verdade.

Ele cerra seu olhar, e devagar segura minha mão, onde manifesto um pouco do poder que possuo, aumentando a temperatura e manifestando algumas pequenas fagulhas de chamas, apenas o suficiente para convencê-lo, e parece que estou conseguindo.

- Quem é você? – Ele pergunta incrédulo.

Mantenho meu sorriso, e cesso meu poder imediatamente para não chamar muita atenção, nem mesmo a ponto de Klauss conseguir sentir – Alguém com o poder do submundo nas mãos, e que sabe como trazer as feras de lá para esse lugar.

Ele solta minha mão, e me encostando na estante, cruzo os braços, assistindo a confusão presente em seu rosto, e a forma como ele parece juntar as coisas em sua cabeça. Estou me segurando muito para não expor toda a minha empolgação nesse instante.

- Ouvi sobre a tentativa do seu grupos, e estou interessada em vocês. Mas não ficarei muito tempo na região. – Volto a falar, de forma que atraio a atenção dele – Só tenho mais quatro dias.

O homem continua refletindo sobre isso, quando então retira algo do bolso de sua calça, e começa a anotar algo – Muito bem, conversarei com o grupo e te daremos uma chance. – Ao terminar de me falar, ele me entrega o papel. – O grupo irá se reunir novamente dentro de algumas horas, por isso, esteja nesse endereço nessa madrugada para acertarmos os detalhes do próximo ritual.

Pego o papel e o analiso por alguns segundos, vendo o local marcado por ele – Então, eu o encontro de novo em algumas horas.

- Para todos os casos, nós não conversamos hoje. – Ele me diz, olhando para os lados, e então começa a se afastar – Não espalhe isso para ninguém, está certo?

- Pode deixar, manterei segredo. – Digo, e o homem se afasta apressado, quase que com receio de ser visto por mais alguém. Acho que esse encontro foi completamente inesperado por ele.

Agora que lembrei, sequer perguntei o nome dele. Bom, ele também não perguntou o meu...

Assim que ele está longe o suficiente, me permito vibrar de animação. Estou extremamente contente por ter conseguido não só encontrar uma primeira fonte de informações, mas também ter encontrado alguém que está diretamente envolvido com as pessoas que vim buscar, e me levará até elas.

Quero contar isso para Nick e Diana assim que encontrá-los, está muito divertido!

Retorno meu olhar ao grupo de antes, que apesar de longe, consigo ver que eles continuam no mesmo lugar, conversando sobre algo que não consigo ouvir o que é, seja pela distância, como também pelo som das várias vozes ao fundo. Mas presumo ser pelo livro que a garota tem em mãos, já que eles conversam e fazem gestos indicando o livro por algumas vezes.

Enquanto os observo, acho curioso como um deles se destaca bem dos outros dois, tendo cabelos enrolados bem grandes, uma expressão e olhar envolto em cansaço, e um sobretudo escuro aberto, mas não parece nada incomodado com o calor.

Os outros dois são menos chamativos. O outro rapaz tem cabelos negros longos e lisos, presos acima da cabeça, um olhar de cor verde esmeralda um pouco entediado, vestes simples e um capuz na camisa, e um tipo de placa branca uma caixa com várias cores na mão. E a garota de cabelos igualmente bem enrolados numa cor marrom claro não muito longo, olhar afiado, e roupas também discretas, com algumas fitas e adornos variados presentes em ambos os pulsos.

Na verdade, esses três até que se destacam bastante entre si... Mas acho curioso o rapaz de olhar esmeralda, ele me parece... Familiar.

Me desencosto da estante de livros, pronta para ir encontrar com Klauss e voltar para casa, entretanto algo atrai minha atenção. Dos três daquele grupo, o cara do sobretudo estava olhando diretamente para mim, e uma sensação muito estranha se apossou de mim.

Decido deixar logo esse lugar e procurar por Klauss. Estou bastante curiosa de onde ele pode estar, já que desapareceu de repente, e até imaginei que ele estaria me observando e iria vir atrás de mim quando me afastei para acompanhar aquele homem.

Não foi difícil encontrar Klauss. O anjo está sentado em um banco colorido frente a um grupo, os observando em sua habitual calma, e vou até ele. Todos parecem possuir um mesmo livro em mãos, e uma pessoa fala animada com alguns gestos de mãos um pouco exagerados.

- O que está fazendo Klauss? – Pergunto sussurrando quando chego perto, e olhando para a pessoa que está falando no momento. Todos aqui parecem dar atenção a ela.

- Ah, você voltou. – O anjo sussurra de volta, me observando de canto, e então retornando a atenção ao grupo a sua frente – Estou assistindo a esse grupo de leitura. Eles acabaram de se reunir, e vão comentar justamente sobre o livro que estou lendo atualmente.

- Posso acompanhar também? – Pergunto interessada.

Klauss nada diz, mas sim acaba indo um pouco para o lado, e com um gesto ele indica para que eu me sente ao seu lado, e assim o faço. O banco que o anjo está é um pouco apertado, e por isso acabo ficando bem grudada nele, não que isso me incomode de alguma forma.

- Confortável? – Ele pergunta.

- Um pouco, o banco não é muito grande. – Respondo me ajeitando mais perto dele.

- Onde esteve? – Ele questiona, e tenho seu olhar âmbar voltado a mim.

Penso um instante antes de responder – Me distraí vendo as sessões... Tem tantas opções, que me perdi vendo as capas.

Ele faz um gesto afirmativo com a cabeça, sem desviar sua atenção de mim – Fiz o mesmo na primeira vez que visitei uma livraria.

- Você fez? – Pergunto surpresa com descobrir isso.

- Sim, mas te contarei em uma outra hora. – Ele sussurra, voltando seu olhar para o grupo, apoiando os cotovelos nos joelhos e juntando as mãos – Não vamos atrapalhar a reunião.

Percebo como o anjo está atento ao que a pessoa está falando, e faço o mesmo, dedicando minha atenção para a pessoa que está falando sobre o livro que Klauss acompanha.

Já cumpri o que precisava fazer hoje, e agora, tudo que preciso fazer é aguardar até o dia marcado para ir encontrar o grupo. Acho que agora, posso me permitir aproveitar um pouco mais desse distrito.

*****

- Eu adorei o dia! – Exclamo tomada pela animação, saltando para fora do carro segurando algumas sacolas.

- Tenho conhecimento desse fato. – Klauss diz, fechando a porta de seu próprio carro, vindo até mim, tendo uma sacola em mãos – É somente a sexta vez que você o repete.

- Pode ser, mas é a primeira vez que digo desde o momento que chegamos. – Rebato seu comentário, com um riso nada contido.

- Preciso lembrar que chegamos não faz nem um minuto? – Klauss para bem a minha frente.

- Se quer ver por esse ponto, então significa que poderei repetir mais quatro vezes, já que zerei a contagem. – Digo para atiça-lo, enquanto bato a ponta do indicador em seu peito.

- Algo me leva a crer que não dirá somente mais quatro vezes. – Ele diz, virando-se na direção da casa, e vou logo atrás dele.

- Ei, o que você quer dizer com isso? – Questiono rindo, e ele somente me olha sobre o ombro como se dissesse que sabe que direi mais vezes – Você é chato! E só por causa disso, eu vou repetir... Eu adorei o dia!

- Duas vezes, faltam três. – Klauss pontua, destrancando a porta e assim que entra, acabo entrando logo atrás.

- Você é muito chato Klauss! – Resmungo pela sua provocação, enquanto o anjo deixa a sacola que trouxe consigo do sofá, e retira uma pequena escultura de casa de palitos que achei bonita e ele decidiu trazer também – Você vai ver!

- Verei que dirá mais três vezes? – Ele questiona de forma neutra, claramente me provocando, e eu estou caindo na provocação dele... E estou me divertindo com isso.

- Não! Não é isso, é que.... – Tento pensar em alguma coisa, mas a única coisa que consigo é resmungar alto mais ainda por ter ficado sem saber o que falar – Você vai ver Ka'Su...

Ele acaba de deixar a casa de palitos num espaço livre da estante, e por fim me observa com um ar leve e bastante descontraído, muito diferente de como estava mais cedo quando fomos para o terceiro distrito. O observando agora, poderia dizer que ele começaria a rir a qualquer instante, ou ao menos esboçar um sorriso, já que seus olhos estão me contando exatamente isso.

Olho para ele por alguns instantes, e não contenho um sorriso sincero, que surgiu sem motivos conhecidos, apenas surgiu por estar olhando para esse anjo.

- Incomum você me chamar dessa forma Mika. – Ele diz de repente, e lembro-me que acabei de chama-lo pelo seu verdadeiro nome.

- Porque você me irritou... – Respondo e sigo direto para a cozinha, e deixo as sacolas que trouxe comigo sobre a mesa.

- Isso me faz lembrar... – Ouço a voz dele na porta, enquanto retiro uma caixa branca não muito grande da sacola – Nunca te falei meu nome de anjo. Como soube meu nome real?

- Quando vim para cá da primeira vez, falaram da presença de um anjo... – Começo, escolhendo bem minhas palavras – E me disseram que seu nome era Ka'Su... Mas, era mais conhecido por todos como Klauss.

Ele assente, parando ao meu lado. – Faz sentido.

Abro a caixa a minha frente, olhando seu conteúdo – Essas tais rosquinhas são boas mesmo?

- Acredito que você irá gostar. – Ele diz, me olhando de canto. – O que acha de comer lá fora?

- Gostei da ideia... – Digo com um semblante pensativo, olhando as rosquinhas fixamente por longos segundos.

- O que houve? – Ele me pergunta, enquanto seguimos para a varanda.

- Você que fez? – Pergunto com as sobrancelhas erguidas.

- Você me viu comprando as rosquinhas na confeitaria. – Klauss responde incrédulo.

- Eu sei, foi só pra te encher. – Devolvo gargalhando, e então me sento nas escadas, e ele se senta ao meu lado, apoiando a caixa sobre sua perna. – Bem, vamos comer.

Pego uma rosquinha e a giro em meus dedos, olhando por alguns segundos. Ela tem uma cobertura que a cor lembra muito brigadeiro, mas é algo mais cremoso, além que ela tem alguns granulados em cima. Escolhemos somente dessa, já que aparentemente Klauss também nunca experimentou rosquinhas.

Apesar da minha vontade de saborear minha própria rosquinha, fico esperando Klauss fazer isso primeiro. Nesses poucos dias, vi que ele não costuma fazer bagunça alguma e sempre é bastante centrado, e nem mesmo se suja, e estou ansiosa para ver como ele vai ficar depois de experimentar algo como uma rosquinha.

Klauss dá uma primeira mordida, observando a rosquinha algumas vezes enquanto claramente está saboreando – O sabor é bom. – Ele diz para si mesmo, quando então, percebe que estou com minha atenção voltada a ele, com um largo sorriso no rosto – O que?

- Você se sujou! – Digo comemorando e dando risadas, vendo os cantos da boca do anjo sujas pela rosquinha, e ele passando a ponta dos dedos e averiguando o que acabei de dizer.

De repente paro de rir, quando sinto o toque dos dedos de Klauss passando no canto da minha boca, e surpresa tenho ele me olhando fixamente – Olha só Mika, você se sujou também.

- Ei, assim não vale Klauss! – Reclamo com meu peito batendo enlouquecidamente, e sem muitas reações vejo ele desviando o olhar, e apesar de sua calma aparente e ar leve, percebo que ele tem um discreto sorriso em seu rosto, e logo ele saboreia um novo pedaço de sua rosquinha.

Respiro fundo por uma vez, sem saber o que dizer ou o que fazer, e por fim dou uma mordida, sentindo o sabor agradável junto a uma consistência suave. Deixo escapar um suspiro com o sabor, e a cada mordida, é uma sensação agradável.

- Acabei me sujando bastante... – Digo ao terminar, olhando meus dedos com algumas manchas da cobertura da rosquinha

- Você não foi a única, também me sujei um pouco. – Klauss diz, passando os dedos nos cantos da boca, e então os leva a boca, como um ritual final das rosquinhas, e intrigada com o gesto, acabo fazendo o mesmo – Acho que aqueles panos que vieram junto são para isso.

- Talvez... – Respondo pensativa, e olho para ele – Mas assim é mais legal.

Klauss ergue seu olhar ao céu recém tomado pelo profundo véu da noite, e ao acompanhar seu olhar, encontro as diversas estrelas. Elas cintilam no alto, em meio a lua que majestosamente projeta seu brilho intenso.

O calor de hoje não desapareceu por completo, mas agora está muito mais agradável do que mais cedo, de forma que até consigo aproveitar o vento noturno.

Em meio a esse silêncio, percebo o repentino brilho surgindo junto, e ao olhar para trás, percebi que Klauss acabou de soltar suas asas e sua aureola, mas seu olhar no céu está tão concentrado, que ele sequer parece ter notado.

Meus olhos ficam em suas asas, e diferente do calor do ambiente, sinto o calor presente em sua graça, e toda a calma que ela transmite. É tão agradável e acolhedora, que tenho uma sensação de segurança tão imensa que não recordo ter tido alguma vez.

- Ei, Klauss...? – O chamo em um sussurro, e ele baixa seu olhar a mim – Eu... Tenho uma pergunta...

- Qual seria? – Ele diz no mesmo sussurro.

- Bem... É algo que pensei hoje à tarde, enquanto estávamos passeando pelo distrito dos artesanatos... – Digo sem saber como colocar essa pergunta em palavras – Lembro que aquele vendedor disse que você ajudou ele a montar a barraca dele... Teve algumas outras pessoas que pareciam não ter casa, e você ajudou também... E teve aquele músico, que você também fez coisas por ele...

Klauss me olha fixamente, aguardando que eu continue. Essa é uma dúvida que me assolou em vários momentos em que ainda estava presa naquele profundo ponto do submundo, e só de lembrar daquele lugar, meu corpo inteiro treme... E hoje, que vi claramente tendo ajudado tantas pessoas, essa dúvida antiga e de origens desconhecidas retornou a minha mente.

- Eu... Você ajuda tantas pessoas... Isso... Interferir na vida dos humanos... Não te causa problemas? – Pergunto com o máximo de sinceridade que existe em mim.

O anjo reflete sobre minha pergunta. Reflete profundamente. Seu silêncio e seu semblante me dizem isso, e por algum tempo, ele não me responde em palavras, mas sim com seu silêncio e com seu semblante.

- Já me questionei sobre isso. – Ele diz finalmente – Não é permitido aos anjos inferir na vida humana, afinal, nossas ações possuem consequências. Isso abala o equilíbrio, e a ordem natural das coisas.

- Mas, você afetou a vida de tantas pessoas. – Respondo o olhando – Então... Você não estaria afetando o equilíbrio?

- É um pouco mais complexo que isso Mika. – Ele me diz, tornando a me olhar – Não estou interferindo na vida dos humanos. Não diretamente.

- Não diretamente? Mas... Não ser diretamente faz diferença? – Pergunto curiosa.

- Um pouco, não causo mudanças bruscas. – Klauss pausa um momento – Vejo suas aspirações, ouço o que eles tem a falar e o que almejam, e apenas faço refletirem. Se decidem por eles mesmos que aquilo é o que realmente desejam, então os apoio a ir atrás, buscar alternativas e realizarem... E estou do lado para apoiá-los.

- Isso não vale como uma interferência? – Pergunto, tentando entender.

- Apesar de contraditório, uma conversa não é considerado como interferência. – Ele me responde – E às vezes, tudo que os humanos precisam, é conversar. Serem ouvidos e apoiados por alguém. Estar presente, conversar, ouvi-los, também é uma forma de protege-los. Protege-los do perigo do mundo, e também deles mesmos. Alguns humanos não fazem certas coisas, apenas por terem alguém com quem conversar em seus momentos sombrios.

- Entendo... – Sussurro pensando no que ele acabou de contar.

- Sabe Mika, isso me lembra um incidente. – Klauss diz, baixando seu olhar. Acho que essa foi a primeira vez que vi uma hesitação no anjo.

- Um incidente? – Questiono apertando o olhar.

- Sim, de pouco mais de um ano atrás. – Ele volta a me olhar – Havia um anjo no paraíso, era um Portador do Belo. Vi seu trabalho neste mundo algumas vezes, mas nunca cheguei a conhece-lo. Um dia, ele veio a este mundo, e após cumprir seu trabalho, ele não retornou ao paraíso, mas sim desceu ao mundo humano. Soube poucos detalhes, mas ouvi que esse anjo interferiu diretamente na vida de alguns deles, se revelando como um anjo a esses humanos e causou mudanças muito bruscas na vida de cada um deles.

Estou boquiaberta com o que estou ouvindo. Essa história, todos esses ocorridos, que me deixam sem ar e sem palavras, e me atinge com um impacto que me deixam atordoada.

- Não tenho certeza quanto a isso, mas ouvi que a interferência foi salvar uma vida. – Klauss diz, e estou completamente sem palavras com tudo que estou ouvindo. – Enxergou que aquele humano não era ruim, e indo contra as leis do paraíso, decidiu por salvar aquela vida. Após isso, esse anjo desapareceu. Respeito esse anjo por isso, gostaria de tê-lo conhecido antes de seu desaparecimento.

Ele sabe. Klauss realmente sabe sobre mim... Sobre o que aconteceu comigo.

Ele não somente sabe. Esse anjo já me conhecia desde antes, sabia o que eu fazia antes, mas nunca chegou a me conhecer, e ao que parece, nem mesmo chegou a ouvir meu nome...

Por isso, ele não sabe que quem viveu cada momento do que ele acabou de contar, era eu.

- Uau... – É a única coisa que consigo dizer, levando um tempo para escolher as palavras e conseguir responde-lo, mas estou tão impactada que é até difícil me controlar – Que história... Esse anjo passou por bastante coisa...

- Realmente. – Klauss ergue seu olhar novamente – Inclusive, aquilo que aquele anjo realizava como portador do belo, está surgindo no céu.

Ergo meu olhar ao alto, e apenas de vê-las, reconheço o que são. As primeiras luzes, tão familiares para mim, já estão presentes no céu em seu brilho esverdeado característico, capazes de se destacar plenamente em meio aos tons da noite.

Em pouco tempo, a aurora boreal se expande pelo céu, em um véu colorido sublime e encantador, que me tira quaisquer palavras diante ao seu resplendor único. É belo, extremamente belo, a aurora unida ao brilho intenso da lua, em uma imagem que nunca imaginei ver dessa maneira e criam um cenário memorável.

É lindo... Lindo demais... E ao mesmo tempo, isso me dói. Dói demais...

- Este mundo tem algumas coincidências interessantes. – Ouço Klauss falar, mas suas palavras para mim estão distantes, e sequer desvio meu olhar da aurora que cresce em meio ao véu noturno com todo o seu resplendor. – M... Mika?

Meu corpo inteiro treme, enquanto ainda me esforço para resistir. Meus olhos pesam e mesmo que eu tente impedir, as lágrimas escorrem sem parar pelo meu rosto.

Não consigo conter toda a dor presente em mim, dor, frustração, saudade, medo, arrependimento, junto de tantas coisas que se acumulam mais e mais. Tantas outras que parecem estar escondidas em mim a tanto tempo, e agora finalmente encontraram o momento de se manifestarem... E com um soluço, me rendo a um choro que a tanto tempo contive.

Tantas coisas, é tão sufocante que já não consigo mais, não aguento mais conter tudo, que nem mesmo recordo o motivo, e mesmo assim me fazem chorar sem parar.

Eu me arrependo daquelas ações... Realmente me arrependo... Se pudesse...

Se pudesse, eu voltaria o tempo... E não faria nada...

Devagar um braço me envolve, e sou puxada com cuidado e gentileza, uma mão recai sobre minha cabeça em um carinho suave, e um par de asas se aproximam como se me protegessem de tudo aquilo que me aflige. E nesse abraço repentino, tenho o conforto que jamais esperei receber.

Me encolho devagar, segurando as vestes do anjo com firmeza – Klauss... Me desculpa por isso... – Sussurro a ele.

- Não precisa se desculpar Mika. – Me responde calmamente, me abraçando com mais firmeza.

Assinto devagar, me permitindo desfrutar dessa abraço que tanto me conforta, e em silêncio, deixar tudo que ainda reside em mim depois de tanto tempo, finalmente ir embora.

Notas Finais

1 - O terceiro distrito, conhecido como o distrito do artesanato e do espiritual, é inspirado no município de São Tomé das Letras, ao sul de Minas Gerais, que é conhecida pela energia mística, simbolismo e lendas presentes na cidade.

2 - As casas de pedra presentes são pequenas esculturas feitas em pedra formando casas de vários tamanhos, baseada no artesanato presente no município que inspirou o distrito.

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