Capítulo 14
2011 Palavras
Meus olhos permanecem fechados, enquanto a brisa da tarde percorre minha pele em sua maciez invisível. A música acalenta meus ouvidos, e permito-me desfrutar desta quietude.
Quando a música finalmente cessa, volto a abrir os olhos e os miro ao rapaz logo a frente, dando um discreto aceno com a cabeça a ele – Senti sua música ficar mais lenta em certo momento.
- Ah sim... Até sei em qual parte foi. – O rapaz me confirma, apoiando seu violão gentilmente sobre os pés – Acho que por ser minha parte favorita, sem perceber acabo diminuindo o ritmo.
- Compreendo. – Respondo. – Sem perceber, faz com que dure por mais tempo.
Ele assente com um sorriso genuíno, quando passa seus olhos ao redor por uma vez, com um ar confuso – Onde está sua amiga? Ela... Não gostou da música?
- Ela não podia ficar muito, e precisou ir embora antes que terminasse. – Respondo olhando na direção que a estranha garota do submundo partiu. Volto minha atenção ao rapaz, e noto como certa decepção surge em seu rosto – Mas antes de ir, ouvi ela dizer que você é um ótimo músico.
Ele esboça um sorriso, e não sei se acredita que minhas palavras foram verdadeiras, ou apenas uma tentativa de consolá-lo. De qualquer forma, foi o que ela havia dito, e após ouvi-lo tocar diversas vezes, é impossível para mim discordar. Ele é um excelente músico.
Levanto do banco e, ajeitando meu sobretudo no braço, aproximo do rapaz. Levando uma mão ao bolso do rapaz, pego algumas notas do bolso interno do meu casaco e deixo no estojo aberto do violão – Não precisa disso senhor Klauss.
Ergo meu olhar a ele – Se não precisa, por que deixa o estojo aberto? E por que não recusou outras notas?
- É que... – O rapaz fica sem jeito, hesita e tenta encontrar palavras para se explicar, mas acaba se enrolando nas mesmas logo a seguir. – É que você sempre me dá tanto dinheiro... Já me deu este violão, e... As aulas... Eu nem sei o que dizer... Nem com agradecer.
- Não é preciso me agradecer, mas caso realmente deseje, faça com sua música. Continue melhorando. – Respondo com serenidade, e vejo que minhas palavras o fazem sorrir – Você virá amanhã?
- Virei sim senhor Klauss. – Ele responde com um sorriso – Acho que... Nesse mesmo horário já estarei aqui na praça.
- Virei te ouvir tocar. – Respondo, e com um discreto aceno com a cabeça, me afasto – Cuide-se bem. E até amanhã.
O ouço se despedindo, e sigo pelo mesmo caminho que usei para vir até aqui. Caminho vagarosamente, observando a calmaria desta pequena cidade que, ao mesmo tempo que se tornou um dos locais do meu trabalho, também se tornou um retiro para mim. Mas não digo que seja meu lar.
Um lugar bem diferente do que eu costumava viver anos atrás.
Nesse instante que me encontro neste silencioso e solitário passeio, me permito refletir a respeito daquela garota... Mikaela, ou apenas Mika, como preferi chamar.
Ela me intriga de alguma forma, que até então não compreendo o motivo.
Tem algo muito diferente nela.
Desde a primeira vez que a vi, soube que havia algo diferente nela, mas não sabia o que.
Isso é o que me está me impedindo de cumprir meu dever, e a permita continuar viva.
Uma garota do submundo. Sua aparência despreocupada, e até desleixada, se assemelha muito com a aparência rude que os demônios costumam ter. Seu olhar carrega um pouco da agressividade deles, e pude sentir o poder infernal emanando dela.
Mas também, tive a impressão de que havia algo a mais em seu olhar.
Agora que penso nisso, quando me aproximei na lanchonete, ela não reagiu com violência imediata, como outros demônios certamente fariam. Eu esperava que ela fizesse isso, e já estava pronto para tomar medidas para impedir mais destruição e lidar com ela.
Mas para minha surpresa, ela não foi hostil. Na verdade, foi bem o oposto, ela se mostrou muito cautelosa em cada ação, e se mostrou receptiva a um diálogo. Não esperava conversar tanto com ela como fiz, e isso me fez ter certeza de que ela é diferente dos outros que resolveram pisar nesta região.
Outra coisa que chamou minha atenção, foi sua curiosidade com os humanos... E a sinceridade com que demonstrou isso, seja comendo um lanche, olhando a praça onde estávamos, e aproveitando a música tocada por um artista de rua.
Uma atitude muito incomum de quem vem do submundo. Demônios não agem assim.
Eles não são assim.
Mika, você é diferente, muito diferente. Mas não tenho certeza do motivo disso.
Talvez a melhor ação seja realmente manter meus olhos em você daqui pra frente.
Por mais que hoje, em vários momentos, permaneci te olhando, não com o objetivo de desvendar o que você oculta. Mas sim, foi apenas por olhar.
Por gostar de observá-la, e sentir como isso me causava uma estranha, mas agradável sensação que só consigo comparar a uma calma muito distinta.
Sem falar que senti o tempo mover-se em demorados instantes, que tudo tornou-se lento aos meus olhos, e parecia perdurar mais e mais conforme observava seu rosto, cada um de seus traços e também cada um de seus movimentos, quase como se meu olhar fosse atraído por um desconhecido magnetismo.
Foi uma experiência que nunca tive em momento algum da minha existência. A qual me agradou muito, mais do que imaginava ser possível.
O motivo de gostar tanto me é desconhecido, mas isso me faz querer continuar te olhando mais vezes, e por muito mais tempo.
Sinto-me estranho por desejar desfrutar mais de sua companhia.
*****
Paro meu carro e desligo o motor ao toque do botão no painel. Pego minhas coisas no banco do passageiro e saio, aproveitando o ambiente que sempre me recebe.
Observo a vista da cidade que fui encarregado de proteger anos atrás, tão distantes e ao mesmo tempo tão próximas para mim. Mais ao longe, enxergo o primeiro dos quatro distritos próximos a cidade.
E bem mais ao longe, perto de sumir no horizonte, enxergo a rodovia principal que as leva aos grandes centros urbanos em longas horas de viagem.
E no céu, o sol começa a se pôr timidamente, e vendo os traços desse crepúsculo, arrisco dizer que será uma noite estrelada, e a lua mostrará todo o seu brilho.
Consigo ouvir o canto dos pássaros escondidos no alto das árvores próximas. O clima aqui é frio devido às grandes altitudes, e durante a estação mais fria do ano, a neve caí sem demora.
E ao meu lado, observo a casa que me concederam e onde venho para repousar ao final de todos os dias, mas sempre me mantendo atento nas cidades.
É uma casa simples, de dois andares e feita principalmente de pedras e tábuas de madeira reforçada, contando com uma varanda simples na entrada, e uma grande varanda nos fundos, essa tendo uma cadeira de balanço, e uma rede pendurada que nunca usei.
Além disso o quintal inteiro é amplo, o chão inteiro estando coberto pela grama baixa, sendo cascalho apenas onde entro e saio com o carro, e uma grande árvore com algumas flores, e um pneu amarrado por uma corda, a qual apesar de entender bem qual sua utilidade, nunca encontrei a tal diversão que dizem ter.
Já dentro da casa, ela conta com alguns cômodos que, para os humanos são essenciais, já para mim, não tem uso algum. A cozinha é um espaço que não vou com grande frequência já não costumo me alimentar muito, apesar que admito ser bem equipada com tudo que é preciso para montar pratos variados. E a sala de estar, apesar dos quadros, uma estante grande que preenchi com vários livros, dos sofás e da poltrona bem confortáveis, e da lareira com moldes bem rústicos, não é um espaço que me atrai muito.
Acredito que nunca acendi aquela lareira nesses anos que vivo aqui.
Costumo sempre ficar do lado de fora, sentado na cadeira de balanço enquanto leio, ou observando a cidade. Isso é o bastante para mim.
Dos três quartos do andar superior, uso somente um para repousar, dentro da aura dourada que trouxe do paraíso quando vim a terra, e manifesto quando quero me sentir de volta ao meu lar, mesmo que só um pouco. O segundo quarto tem uma mobília completa, contando com uma cama muito espaçosa, armários, espelho e algumas decorações. Já o terceiro não tem utilidade alguma, está repleto de caixas e coisas antigas ou quebradas do antigo morador, além de tudo estar coberto pela poeira. Mal entro ali.
Essa é a casa que uso desde que passei a cuidar desta região anos atrás. Apesar que não sinto como se fosse realmente minha casa, é apenas o ponto que regresso quando preciso repousar.
Entro na casa, tendo a quietude como meu anfitrião. Deixo meu sobretudo cuidadosamente dobrado na poltrona, e retiro meu blazer, o deixando pendurado sobre o encosto da poltrona. Livro-me dos meus sapatos, e respirando fundo dou liberdade as minhas asas, que se expandem devagar pela sala.
Estico os braços sobre a cabeça, e caminho até a estante onde alguns dos meus livros estão. Vou diretamente no livro que estive lendo recentemente, o pego e sigo para a varanda dos fundos, buscando a cadeira de balanço.
Ligo a luz e sento-me. Puxo o marca páginas, e assim reinicio minha leitura, sempre atento a qualquer coisa que aconteça na cidade.
Vez ou outra meus olhos vão ao horizonte, acompanhando o ambiente cada vez mais escuro, e então retornam ao meu livro.
Mesmo que eu queira me concentrar apenas na leitura, a imagem de Mika retorna aos meus pensamentos.
Fecho o livro e olho o horizonte, já coberto pelo véu da noite, tentando por mais uma vez afastar esses estranhos devaneios dos meus pensamentos.
Não entendo o que tanto me chamou atenção, mas é complicado conseguir afastá-la completamente dos meus pensamentos.
A cada pequena brecha, recordo-me de sua feição, e de seu olhar que tanto me intriga.
É estranho, apesar de seu olhar ser completamente endurecido, ainda assim tive a impressão de enxergar pureza nele. Em alguns momentos, até pareceu que Mika tem a inocência e a curiosidade de uma criança guardada em si.
Acho que estou pensando demais em um ser que recém apareceu na cidade, e que está aqui apenas para causar problemas.
Devo me manter focado no meu trabalho de proteger este lugar e as vidas daqui, não importa de quem ou do que seja.
E isso inclui a própria Mika. Não posso me esquecer de onde ela veio, e o que fez em sua primeira noite. Precisei me revelar a muitos humanos e depois apagar traços do que viram da memória de cada um deles.
E também, investigando aquele lugar, percebi que havia somente um morto, e estranhamente, ele estava sem sua alma. Ela havia sido retirada.
Será que essa alma era o que Mika estava levando consigo naquela mochila velha?
A propósito, outra coisa me vem em mente. O que o submundo está planejando?
A muito tempo não enviam ninguém para essa região, justamente por causa da minha presença e proteção. Por muito tempo enviaram demônios para essa região, muitas vezes em grupos, uns mais problemáticos que os outros, e sempre contive e erradiquei a todos sozinho. Até que por fim, pararam de enviar, e por muito tempo as coisas finalmente se acalmaram.
E sem mais nem menos enviam um único novo demônio para cá... Ainda mais um tão diferente.
Eu deveria ter desconfiado, a região esteve em paz e livre de ações do submundo por quase dois anos. Era de se esperar que alguma hora enviassem alguém.
Mas a Mika? Ela não é nem um pouco parecida com aqueles que vieram antes.
Sei que ela é diferente dos outros. Completamente diferente... O que será que existe nela, para ter sido enviada sozinha, ainda mais depois de tanto tempo?
De qualquer forma, preciso manter meus olhos nela em todos os momentos em que ela retornar para a região, descobrir quais seus motivos de vir e estar atento em suas ações.
Estou certo de que Mika não veio para cá por nada.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top