Capítulo 13

4170 Palavras

Observo o anjo, sem conseguir ter reações ou palavras nesse instante.

Da mesma maneira que antes, ele está muito bem vestido e com uma aparência que o torna bem destacado entre todos aqui. Dessa vez com um costume branco bem alinhado ao corpo, com uma pequena pluma costurada discretamente na gola de sua camisa, e um pano branco com bordados dourados no bolso de seu casaco, além do sobretudo branco cuidadosamente dobrado em seu braço esquerdo.

Com certeza ele se destaca, seja pelas roupas, ou pelos tons brancos que mais ninguém usa com tamanha predominância.

Além disso seu olhar âmbar está discreto, não emanam o mesmo brilho da última vez que o vi, entretanto as cores vivas estão bem presentes. E claro, seu cabelo cacheado grande está da mesma forma que antes, uma bagunça que aparenta muito estar arrumado.

Uma figura que carrega os tons brancos dos anjos do paraíso que simbolizam sua graça, unida a uma elegância e beleza que vi pouquíssimas vezes nos anjos... E talvez, um certo charme que também poucas vezes vi.

Seu olhar sobre mim, apesar de bastante calmo, percebo também estar um tanto desconfiado.

Ele analisa meu rosto por alguns instantes, que para mim mais pareceram longas horas, quando por fim suas sobrancelhas juntam, lhe trazendo um ar mais sério e bem firme, o que me deixa desarmada – Você de novo. – Ele diz.

O anjo avança até mim em passos cuidadosos. À medida que ele chega perto, no mesmo ritmo tento me manter afastada, erguendo minhas mãos – Calma, não vim causar problemas.

Ele ignora o que falei, continuando a vir até mim sem esboçar reações. Sua figura parece uma muralha de tão grande, e uma a qual não sei se conseguirei escapar novamente.

Minhas costas encontram o balcão frio de pedra, e ele para bem à minha frente, sem deixar de me olhar, o que causa ainda mais nervosismo em mim. A distância é tão pouca, que percebo um agradável perfume cítrico que só pode vir dele.

Percebo ele erguendo sua mão a mim, e imediatamente fecho meus olhos – Espere Klauss! – Digo de repente, sem saber o que irá acontecer comigo.

Entretanto, sinto seu braço passando próximo ao meu rosto e logo voltando devagar. Ao tornar a abrir meus olhos, vejo o anjo passando seus olhos por um papel estranhamente duro cheio de coisas escritas, com certa neutralidade,

- Sabe meu nome? – Ele pergunta de repente.

- Sei... – Respondo um pouco aliviada – Ouvi a seu respeito antes de vir.

- Então, creio que também sabe quem sou. – Responde erguendo seus olhos a mim, ao mesmo momento que se afasta e senta-se em um banco bem perto de onde estou – Não deveria ter voltado aqui.

- Voltei aqui por curiosidade, e não a trabalho. – Rebato apertando os olhos – O que, aliás, não te diz respeito.

Ele mantém seu olhar no papel, o deixando sobre o balcão – Você está em uma região que é da minha jurisdição. Então, sim, me diz respeito.

- Perderá seu tempo Klauss. – Reclamo cruzando os braços – Já disse que não estou aqui a trabalho.

Ele me observa de canto, e percebo como ele se mantém plenamente calmo. Calmo, mas está claramente atento em mim – Manterei meus olhos em você da mesma forma.

Aperto meus olhos, sem acreditar em suas palavras. Ainda mais pelo seu tom neutro, que faz parecer a coisa mais fácil do mundo.

- E o que te faz pensar que conseguirá? – Pergunto com um riso.

- Algumas coisas. – Responde simplesmente.

- Tipo? – Insisto com certa firmeza, sem descruzar os braços.

Klauss respira fundo, endireitando sua postura, e por fim vira seu rosto para mim. Não entendo o porquê, mas esse simples olhar me deixou sem palavras novamente.

Um olhar que antes me parecia tão hostil, tão mortal de tantas formas a qual certamente imaginei que me amedrontaria quando o encontrasse novamente. Mas dessa vez, é algo completamente diferente.

A calma presente em seus olhos dourados lembram-me os campos do paraíso. Apesar de seu semblante plenamente neutro, seu olhar é acolhedor e suave, dotados de uma calma profunda unidas a uma firmeza intensa, que também o tornam muito difícil de ler com clareza.

Diante deste olhar tão profundo, a qual parece ter me levado a um lugar muito distante de onde meu corpo está agora, não tenho uma resposta... E na verdade, sequer acho que quero uma resposta.

Na verdade, me sinto estranhamente pensativa do porque esse olhar mexeu tanto comigo... Sendo que foi meramente um olhar, sem nada demais.

O anjo aponta algo no papel enquanto olha para o atendente, que confirma com um aceno, segue na direção da cozinha, sumindo da minha vista.

- Como me encontrou? – Questiono sem deixar de olhar para ele, não esquecendo que ele não respondeu minha última pergunta.

Klauss torna a me olhar, e num discreto gesto, ele aponta para o banco ao seu lado, e entendo que está me convidando para sentar ao seu lado.

Um pouco desconfiada, sento-me devagar, atenta a qualquer movimento que ele possa fazer. Se necessário for, irei fazer ele ser coberto pelas minhas chamas em segundos... Mas vendo o quão calmo ele está, não acho que ele vá fazer qualquer coisa... Pelo menos, não agora.

- Não foi difícil. – Ele diz de repente, juntando as mãos à sua frente – As pessoas daqui não costumam virar o rosto de forma tão repentina como você fez.

Torço a boca com a resposta que recebo. Deveria ter sido mais discreta.

- Então sabia que eu estava aqui? – Pergunto olhando o papel que o anjo deixou no balcão.

- Não, foi uma coincidência. – Ele diz, quando o homem de antes volta com uma xícara lavada em mãos, e serve um líquido escuro fumegante ao anjo, que aceita com um ar sereno – Muito grato senhor...

- Mas... – Digo a mim mesma, vendo o anjo se saboreando a bebida – Ainda assim, como me encontrou tão facilmente?

- Noites atrás, foi um incêndio... Hoje, você vira o rosto e sai andando sem mais nem menos achando que eu não fosse desconfiar. – Klauss beberica seu café por mais uma vez, deixando a xícara de volta no pires – Você não é discreta.

- Espera, eu... – Essas palavras me acertam mais do que eu esperava – Eu não sou discreta?

- Ao meu ver? – Ele faz uma pequena pausa – Não. Nem perto disso.

Acabo fazendo uma careta ouvindo o que ele diz, sendo que entra em completa contradição com o que Raika me disse quando citou seu motivo para me escolher para esse trabalho.

- E também, é exatamente esse o motivo que me faz pensar que conseguirei manter meus olhos em você. – Klauss diz, enquanto aponta mais algo no papel, e ergue dois dedos ao homem, que imediatamente confirma – Não somente pensar, mas também, ter certeza.

- Você está tendo certezas muito rápido. – Respondo evitando olhar a ele.

- Por duas vezes, a encontrei rápido. – O anjo parece fazer questão que eu me lembre desse detalhe – Você quem me dá essas certezas.

Fecho os olhos, e com um suspiro profundo aperto o lábio. Apoiando os dedos na testa, começo a repassar mentalmente como cheguei nessa situação. Isso sem falar que não faço a menor ideia de como irei sair dela.

Escuto um som bem a minha frente, e ao olhar, vejo que o homem deixou um pequeno prato a minha frente com algo grande sobre ele, e outro prato na frente de Klauss, e sai andando antes que eu tenha tempo de questionar.

- O que é isso? – Digo, observando com certa curiosidade. É grande, com fatias de coisas diferentes, e de várias coisas empilhadas uma sobre a outra, com um tipo de espeto atravessando bem no centro.

A única coisa que sei, é que pela aparência, essa coisa enorme é de comer.

- Um lanche dos humanos. – Klauss explica – Se chama X-Tudo. Nunca viu um desses?

- Não... – Digo, olhando o lanche por diversas vezes. Giro o prato com a ponta dos dedos, tomando noção das proporções dele e ficando cada vez mais surpresa – É a primeira vez... Humanos comem essa coisa?

- Alguns. – Ele diz, pegando o próprio lanche com uma das mãos – Experimente.

Observo Klauss dando uma primeira mordida, saboreando seu lanche. Olho para o meu próprio, e um pouco hesitante e com certa cautela pego o meu, o olhando fixamente. Minha boca começa a encher, mas ele é tão grande que não sei por onde nem como começar.

Decido me inspirar em Klauss, que não pareceu ter critério algum para começar seu lanche, e faço o mesmo, simplesmente mordendo aleatoriamente, e agradeço mentalmente por isso.

São tantas coisas, tantos sabores ao mesmo tempo, que não sei o que aproveito primeiro. Apenas quero sentir mais deste sabor, que nunca tive no paraíso e nem mesmo no submundo, a qual continuo aproveitando deste lanche. Nunca imaginei que algo assim pudesse existir no mundo humano.

- E então? O que achou? – Klauss pergunta me olhando de canto.

- É bom... Muito bom... – Respondo deixando um suspiro escapar – Isso é do paraíso.

- Não, é dos humanos. – Ele diz, e o olho com uma sobrancelha erguida, mas estou tão envolta nos sabores, que apenas ignoro e me permito dar mais uma mordida.

Por um momento paro para retomar o fôlego, e tenho a impressão de ouvir um riso nasal vindo do anjo, e retorno meu olhar para ele. Klauss está me observando fixamente.

- Sabe... Só estou curiosa em com como conseguiram fazer algo desse tamanho tão rápido... – Digo olhando o lanche, a qual não estou nem perto da metade.

- Não conseguiram. – Klauss responde – Encomendei antes de vir para cá.

- Encomendou dois? – O olho com curiosidade – E por que mesmo?

- Eu gosto. – Ele responde sem demora. – É um dos melhores que servem na região. E sempre que venho, encomendo mais de um para mim.

Klauss olha para meu rosto por alguns segundos, e não entendo ao certo o que ele está olhando com tanto interesse. Seu olhar vem ao meu por um instante, o que me deixa sem saber como reagir, e ele se aproxima um pouco, erguendo uma de suas mãos.

Recuo um pouco por uma aproximação tão repentina, e instintivamente seguro seu pulso com força enquanto fecho meus olhos, ao passo que me sinto assustada com algo que nem mesmo sei o que é.

- Você se sujou. – Ouço ele dizer calmamente, e devagar abro meus olhos. – Permita-me limpar.

- O que, mas...? – Sem entender o que me levou a fazer isso, solto sua mão e ele torna a se aproximar, passando seus dedos no canto da minha boca algumas vezes.

Me sentindo completamente atordoada com seu gesto, piscando algumas vezes enquanto o anjo se afasta, passando um papel em seus dedos e se ajeitando novamente em sua cadeira.

Lentamente passo os dedos onde senti seu toque, sem entender o que isso me causou, nem o porquê causou. É muito estranho para mim.

- O que foi isso? – Sussurro a mim mesma, e então o olho – Por que o fez?

- Como disse, você se sujou. – Responde neutro, prestes a morder seu lanche novamente.

- Não é isso Klauss... Por que você... – Gaguejo nas palavras, sem conseguir encontrar um jeito de explicar tamanha confusão que tenho em mim.

Klauss suspira enquanto baixa sua mão. – Você não está aqui a trabalho. Não é minha inimiga.

- O que? – Minha voz sai num sussurro.

O anjo volta sua atenção a mim, me analisando minuciosamente – Qual seu nome?

- É... Mikaela. – Respondo, cada vez mais atordoada com ele.

- Mikaela... – Ele sussurra para si mesmo, baixando seu olhar por um momento. Ele concorda com a cabeça, voltando ao seu lanche – Como você sabe Mika... Sou Klauss.

Sua atenção retorna ao seu lanche, a qual ele torna a comer sem se conter, enquanto que eu fico apenas o observando fixamente, sem saber ao certo o que pensar, ou o que sentir.

Mil sensações estão presentes em meu peito, mil pensamentos, e mil questionamentos.

E entre esses questionamentos, o que grita com mais força, é o porquê de ter gostado tanto de ser chamada de Mika por ele.

*****

Já fazem alguns minutos que deixamos aquela lanchonete. Achei que Klauss iria fazer qualquer coisa que fosse, mas ele simplesmente está andando ao meu lado sem dizer nada.

Olho para ele sobre o ombro, e o mesmo está me olhando de volta sem nem mesmo disfarçar. Apesar de manter seu semblante calmo, é perceptível como ele está atento em mim.

- Escuta Klauss... – Começo a falar após longos segundos e muitos passos – Você vai mesmo ficar me seguindo por onde eu for?

- Sim. – Ele responde sem demora – Você disse que não está trabalhando hoje, e supõe-se que não causará problema algum.

Ergo uma sobrancelha – Então...?

- Na última vez que veio, você causou um incêndio imenso e a explosão de um posto de gasolina, resultando em muitas pessoas machucadas. – Ele descreve tudo, e meu olhar desvia e vai ao lado oposto – Você não é minha inimiga no momento, mas prefiro ter certeza disso.

- Você é muito desconfiado, Klauss. – Digo sem olhar para ele.

- E você me deu motivos, Mika. – Ele responde. – Me questiono se devo ou não eliminá-la agora.

Suas palavras me fazem estremecer. Seu tom não foi de ameaça, mas suas palavras sim. Não posso discordar que dei motivos para isso, afinal a primeira vez que nos encontramos foi uma situação completamente diferente, então ele não tem motivo algum para confiar em mim.

Da mesma forma que eu não tenho motivos para confiar nele.

Preciso me lembrar que ocupamos lados opostos. Ele é um anjo que serve ao paraíso, enquanto que eu sou um demônio que serve ao submundo.

- Quero entender. – Klauss começa a falar – Qual sua curiosidade?

Fico um pouco surpresa por ele ter começado uma conversa comigo, entretanto, tento não demonstrar isso – O que quer dizer?

- Disse que não veio a trabalho. – Responde – Mas sim por curiosidade. Qual seria?

Entendo o que ele quer saber, e assinto com a cabeça vagarosamente – Bem, eu... Tenho curiosidade com o mundo humano.

- Curiosidade com o mundo humano? – Ele sussurra – Algo em especial?

Enquanto caminho, juntando minhas mãos atrás das costas, ergo meu olhar por alguns segundos enquanto escolho minhas palavras – Talvez tudo.

Não tenho uma resposta, e interrompo meu passo enquanto volto a olhar para ele. Percebo como Klauss me analisa de cima a baixo repetidas vezes, parecendo atento em cada detalhe meu, quando seu olhar cerrado se encontra com o meu.

- Já veio ao mundo humano antes? – Ele pergunta.

- Algumas vezes, mas apenas podia observar de longe. – Respondo buscando não dar detalhes demais – Daquela vez que me viu, foi a primeira vez que trabalhei entre os humanos.

O olhar do anjo vai ao chão, e ele parece refletir sobre algo – Então, não conhece nada?

- Apenas algumas poucas coisas básicas. – Ergo meus ombros – Mas lugares, sabores, interações, músicas, não conheço nada disso.

Observo o anjo levando uma mão ao queixo, refletindo por longos momentos. Após alguns segundos, ele volta sua atenção a mim – Venha comigo.

- Até onde? – Questiono desconfiada, vendo o anjo indo na frente.

- Quero mostrar um lugar. – Responde, e curiosa com isso, vou atrás dele.

Seguimos por algumas ruas, e não deixo de perceber que algumas pessoas cumprimentam Klauss amigavelmente. É interessante ver como ele reage acenando de volta para cada uma das pessoas, e apesar de ele não esboçar sorrisos, é possível ver a suavidade que ele exala.

Mesmo a luz do dia, ele se destaca das demais pessoas em muitos aspectos, não por ser um anjo, mas tem algo a mais nele que o torna diferente de todos a nossa volta.

Percebo ao longe uma árvore com folhas de cores diferentes das demais, são rosadas, e logo atrás delas outras estão presentes, em um lugar bem arborizado, e seguindo o passo dele, é para esse lugar que estamos indo.

Atravessamos as ruas calmas enquanto uma brisa pode ser sentida, chegando a uma praça onde existem várias das árvores de folhas rosadas e escuto um som diferente. Uma melodia contínua, que parece ser feita por acordes, e a cada passo, a origem do som parece cada vez mais próxima.

- Onde estamos? – Pergunto olhando para as coroas das árvores logo acima de mim, girando sobre os pés, sem saber para onde dedicar minha atenção.

As folhas reagem com a brisa que percorre esse espaço, seus sons unem-se a melodia próxima, tornando esse espaço completamente diferente de outros que já vi. Pequenas linhas de luz passam pelas folhas das árvores, trazendo ao lugar um aspecto um pouco mais frio, mas ao mesmo tempo muito agradável.

É um espaço diferente, que nunca vi nada igual nem no paraíso e nem no submundo. Não fazia ideia que um espaço assim pudesse existir no mundo humano, é tão distinto que parece até mesmo ser irreal.

Percebo o anjo parado, mantendo seu olhar em mim. Ele não diz nada, apenas me acompanha em cada movimento, e da mesma forma que antes, sinto a intensidade presente na coloração âmbar de seus olhos.

Apesar de não saber o que o anjo está olhando, algo em mim faz com que eu também tenha vontade de olhar para ele. Não para algo em específico, mas para ele por inteiro, para sua presença, para cada um de seus detalhes, para seus olhos, e não pareço me cansar de tanto olhar. É algo que, na verdade, me agrada.

- Já estamos chegando. – Klauss diz calmamente e volta a andar, enquanto o acompanho em passos animados.

Enquanto andamos, chegamos a um local com um lago rodeado por uma cerca, alguns bancos, e próximo a um dos bancos, vejo um homem com aspectos bem jovem. Ele usa roupas discretas e bem alinhadas, algo redondo cobrindo sua cabeça, uma barba cheia não muito grande, além de segurar um objeto com uma mão, e a outra fazer movimentos precisos com os dedos, onde identifico sair o som.

A frente dele existe algo aberto com o mesmo formato do objeto que ele segura, e ali alguns papeis que, ao me aproximar, vejo ser o tal dinheiro humano.

Do outro lado do lago, é perceptível algumas outras pessoas que, mesmo estando a alguma distância, estão concentradas nas música que é tocada por esse homem.

- Sente-se. – Klauss diz, indicando um banco bem à frente do homem, e assim o faço a princípio, e logo o anjo se senta ao meu lado, dedicando seu olhar ao rapaz.

Assisto o homem continuar com os acordes, parecendo estar tão envolto na música que cria, que sequer notou nossa presença. Ele toca com tanto empenho que, por alguns momentos, tenho a impressão de sentir algo mais do que apenas a música, até parece ser algo mais profundo, que o próprio tenta demonstrar a cada instante.

Não nego que isso parece me tocar, e ouvir essa música é algo muito diferente.

- O que é aquilo que ele está tocando? – Pergunto num sussurro.

- Chama-se violão. Um instrumento que cria som pelas cordas. – Klauss explica calmamente, enquanto continuo atenta na música – E aquele rapaz está tocando uma música que ele mesmo criou a pouco tempo.

- Ele criou essa música? – Pergunto novamente, agora mais surpresa.

- Sim, e é a primeira que ele cria. – Klauss diz, e apesar de não ver sorrisos em seu rosto, percebo como sua expressão está leve.

- Uau... – Digo surpresa, inclinando o corpo para frente. – E esse lugar...?

- Chama-se Praça dos Ipês. E essas árvores são nativas de uma região longe daqui, mas com cuidado das pessoas da região, puderam crescer e criar esse lugar. – Klauss responde.

Meus olhos vão de um lado ao outro, e sinto como estou encantada com tudo que vejo a minha volta. O ambiente tão diferente dos demais, escondido em meio a tantas construções humanas. Apesar de tudo ser tão incrível, alguma coisa acende em mim.

Alguma coisa muito estranha, que não sei decifrar o que é, mas que faz olhar tudo a minha volta... Apesar de ser tão incrível, é só isso? Parece um pouco... Pequeno.

Ao mesmo tempo que sinto que o que vejo é incrível, também parece ser tão comum, tão normal, que faz as coisas se tornarem desinteressantes.

Abaixo a cabeça e toco a testa, não entendendo essa contradição que cresce em mim. Uma sensação estranha que eu não esperava ter, sabendo o quanto eu queria estar aqui.

O que será que causou isso?

Percebo como a música chega ao seu clímax, e por fim o silêncio se instala no lugar, o que me fazer tornar a erguer meu olhar e ignorar a estranha sensação. O rapaz retoma seu folego, e então abre seus olhos, focando em nós.

- Uma excelente apresentação rapaz. – Klauss diz, batendo suas mãos.

- Senhor Klauss. – O rapaz diz com um largo sorriso sem jeito. – Ainda estou pegando o jeito.

- Você pegou o jeito a muito tempo. – O anjo diz – Melhorou muito desde a primeira vez.

- As aulas de música estão sendo muito boas. Estou gostando muito de cada uma. – Ele diz com um largo sorriso, segurando seu violão com ambas as mãos tendo certo cuidado com o objeto, até parecendo que irá quebrar com qualquer movimento brusco. Ele por fim, volta seus olhos jovens a mim – Ela é sua amiga?

Klauss volta seu olhar a mim por alguns instantes – Mika chegou a pouco na cidade, e queria conhecer algumas coisas daqui. Decidi trazê-la para ouvir o melhor músico da região. Pode tocar outra para ela ouvir?

- Claro, sei uma muito boa. – O rapaz se prepara para tocar e me olha – Prometo que irá gostar muito moça.

- Estou ansiosa para ouvir. – Respondo com um sorriso amigável.

Ele se posiciona, e respirando fundo, da os primeiros toques de uma nova música. E eu o observo atentamente, aproveitando da melodia da música que ele toca com tanto empenho.

- Você o conhece... – Sussurro olhando para o anjo.

- Conheço esse garoto desde jovem. – Klauss responde também sussurrando – Ele sempre gostou de música, mas não tinha como aprender. Dei aquele violão a ele para que pudesse praticar, e recentemente ele começou a fazer aulas.

- Ele é muito bom. – Admito, enquanto ouço atentamente a música.

- Ele toca entregando a sinceridade de sua essência, é algo que o motiva a cada dia. Por isso ele é tão bom. – Klauss diz, e reflito em suas palavras.

- Ações podem ter esse resultado tão profundo? – Questiono. – A ponto de... Outros conseguirem sentir?

- Se feitas de maneira entregue, como ele está fazendo... Sim. – Klauss responde.

Minha mente divaga em suas palavras, as repetindo por diversas vezes. Um conhecimento que antes não tive, nem refleti sobre, mas que nesse momento, me faz muito sentido.

- Somente humanos são capazes de realizar tal feito? – Pergunto curiosa.

- Nunca vi outros seres realizando. – Ele me responde – Por isso, posso supor que sim.

Apesar de estar aproveitando deste momento tão diferente, da experiência que esse dia está me proporcionando, e também da companhia que tenho, algo surge em meus pensamentos, que me deixa em alerta.

Klauss é um anjo, e apesar da tranquilidade profunda deste momento, a qual eu poderia me permitir sentir para sempre, não posso esquecer do fato que ele está unicamente me observando.

Ele não confia em mim... E eu não confio nele.

Ele disse que, por eu não estar aqui a trabalho, não sou sua inimiga, e também, nada neste momento torna ele meu inimigo. Mas devido a nossas naturezas completamente distintas, ele desconfia de mim, e apesar de não parecer, ele me observa e está atento em cada ato meu.

Talvez seja preciso um único ato errado, para que este anjo me encare novamente como uma inimiga e decida me atacar.

Preciso deixar este lugar.

Olho ao redor discretamente, buscando uma desculpa para levantar e sair de perto de Klauss e voltar ao submundo imediatamente.

Acho que já tive o bastante do mundo humano por agora. Gostaria de ver mais, só que talvez continuar dessa forma não seja seguro.

- Escuta, eu... – Começo a falar, recebendo o olhar do anjo – Vou ali ver alguns daqueles caminhos da praça, acho que vi flores por lá... Eu... Eu já volto.

Klauss nada diz, ele apenas retornou seu olhar ao músico de rua, e aproveitando dessa deixa, me levanto e vou me afastando em passos não muito apressados.

Isso não pode parecer uma fuga, senão Klauss virá atrás de mim, e se isso acontecer, terei grandes problemas. Ele certamente não se afastará mais de mim.

Enquanto me afasto em passos cada vez mais largos e a música ficando mais distante, paro de caminhar e olho para trás por um momento.

Observo Klauss já a uma certa distância, observando seus traços. Não quero me afastar, parte de mim quer voltar e continuar aproveitando esta música em sua companhia, desfrutar de tamanha calma que claramente só é possível graças a sua presença.

Mas minha sensatez diz que devo me afastar o quanto antes, ficar o mais longe possível desse anjo, e mesmo completamente dividida sobre o que fazer, corro para longe dele, retornando ao submundo.

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