Capítulo 1

~ 1983 Palavras ~

O calor envolve meu corpo, e gradualmente a pressão presente ao meu redor vai diminuindo, até ser completamente inexistente.

Estou suspensa no ar, sentindo meu corpo ser erguido aos poucos, puxado por uma força invisível. Não existem sons a minha volta, não existem presenças, mas tenho ciência do que ocorre à minha volta.

Quando meu corpo denuncia que o movimento cessou, abro meus olhos. Me encontro num espaço branco amplo, não existe chão, um teto, ou paredes. O espaço se estende infinitamente por todos os lados, em tons dourados no horizonte onde o sol está presente, e ao lado oposto, tons púrpura que simbolizam o entardecer.

E logo a minha frente, a única coisa que existe além de mim, são portas duplas, que abrirão assim que eu me aproximar.

Meus olhos passam pelo horizonte por uma vez, me permitindo ser atravessada pela luz e absorvendo a paz que isso me transmite, sentindo renovar minha essência e minha graça.

Quando estou satisfeita avanço devagar, recolhendo minhas asas para dentro do meu corpo, e assim que me aproximo o suficiente, as portas arrastam para os lados e me dão passagem, e assim entro no lugar que ouvi ser almejado por muitos humanos.

O paraíso.

Caminho devagar pelo corredor, rumando para fora da Esfera do Mundo. Este lugar é por onde nós anjos transitamos entre os diferentes espaços, sejam eles o paraíso, o mundo humano, ou o submundo.

A muito tempo, já ouvi que é possível transitar entre esses mundos sem a necessidade da Esfera do Mundo, mas a mudança pode ser muito brusca e danosa aos nossos corpos. Por isso, utilizarmos essa Esfera é o meio mais seguro de fazermos viajarmos entre os diferentes planos.

Saio da Esfera e ergo meu olhar para o céu aberto e bem iluminado. Aqui no paraíso nunca fica escuro, nem nada próximo disso.

O mais próximo do anoitecer que existe na terra, são nos espaços onde as almas estão reservadas. Lá as pessoas podem reviver aquilo que consideravam como seu ambiente de paz em vida, e algumas dessas pessoas encontram sua paz na noite.

E bem a minha frente, observo a imensa fonte. Ao centro existe uma alta árvore dourada, e rodeando esta árvore, estão algumas estruturas rochosas altas por onde a água jorra contínua e suave na imensa lagoa repleta por peixes multicoloridos.

Em torno da fonte, existe uma gigantesca praça repleta de árvores, um pouco menores que a árvore central. Essa praça se estende em várias direções de tão ampla.

- Vejo que já está de volta, Mi'Ka. – Ouço uma voz bem familiar.

Viro-me e vejo a figura de cabelos negros bem curtos, olhos cinzentos e porte firme, aproximando-se de mim, com suas mãos unidas nas costas, estando coberto por um longo manto branco com detalhes dourados que cobre seu tronco e parte das pernas, deixando apenas os braços livres, uma calça igualmente branca, e uma faixa larga com linhas douradas na cintura e faixas de mesma tonalidade em seus braços.

- Já, o trabalho de hoje não foi muito demorado... – Ofereço um sorriso ao meu amigo de longa data – O que faz aqui, Le'Shen?

- Soube que estava para voltar, e vim vê-la. – O anjo me responde, e caminhamos devagar pela ampla praça frente a Esfera – Como foi hoje?

- O mesmo de sempre, os humanos se encantam com todas as auroras boreais que crio... Mas... – Hesito nas palavras, e meus olhos vão ao chão.

- Mas? – Ele me olha com curiosidade.

Aperto a boca de leve, já ciente da impossibilidade que me aflige – Fico pensando como é estar entre eles.

Le'Shen me olha com um semblante compreensivo, e um pequeno sorriso – Você sente essa vontade desde a primeira vez que foi até lá.

- E você Le'Shen? – O olho fixamente – Também não sente essa vontade? Não tem curiosidade em descobrir como é estar entre os humanos?

Ele esboça um riso – Por um tempo, sim. Mas decidi abandonar essa vontade... Vi que saciar tal curiosidade não me levaria a nada.

Assinto baixando meu olhar, um pouco frustrada por essa resposta. Não é uma novidade, afinal já ouvi essa negativa algumas vezes, em palavras diferentes. Sei que ele não tem essa curiosidade... Na verdade, a maioria dos anjos não sente curiosidade alguma em relação aos humanos.

- Por que tem tanto interesse neles? – Ele me questiona.

Reflito por um curto instante – Eles me intrigam... De muitas formas.

- Infelizmente, interagir com os humanos é arriscado Mi'Ka. – Me responde – Por isso, somente alguns poucos de nós tem autorização para estar entre eles.

- O que será que é tão arriscado? – Pergunto mais a mim mesma do que a meu amigo, mas sei que ele ouviu minhas palavras.

- Não tenho certeza. – Ele pausa por um momento, erguendo seus olhos ao alto, e assim permanece por um momento – Já ouvi muito sobre a perversão que reside neles, e como isso afetou a essência de alguns anjos.

Assinto com a cabeça, mas por mais que exista esse risco que torne os humanos tão perigosos para nós, a curiosidade ainda permanece firme em mim, e sempre sinto que tal anseio cresce cada vez mais.

Dentre todos os anjos do paraíso, somente os membros da legião tem permissão de descer a terra e interagir com os humanos, pois eles atuam como seus protetores.

Além deles, os membros da Alta esfera também possuem autorização para descer a terra caso necessário. Este grupo é formado por anjos de quatro asas nomeados como Arcanjos, e entre eles existe o único possuidor de seis asas em todo o paraíso. Juntos são considerados os seres de maior poder e iluminação que residem no paraíso, e também nossos principais protetores contra qualquer ameaça.

Já nós, demais anjos, temos funções variadas. Alguns de nós atuam para a manutenção da vida na terra, outros agem como guias das almas que encerraram seu período na terra, e outros agem como "portadores do belo", sem contar com outras funções.

E é neste último grupo que estou presente, sendo responsável por manifestar auroras boreais em diferentes locais do mundo.

- Só peço que tenha prudência Mi'Ka. – Le'Shen diz de repente, quando já estamos longe da Esfera e interrompemos nosso caminhar. É aqui onde tomamos caminhos diferentes – Os humanos já lhe causam problemas uma vez.

- Aquilo foi mais culpa minha do que dos humanos. – Sussurro ao lembrar daquele fatídico incidente – Foi imprudência de minha parte.

As recordações daquela noite surgem em meus pensamentos. Quando havia cumprido meu trabalho, porém ao invés de retornar ao paraíso de imediato, escolhi permanecer na terra por mais algum tempo.

Não sei ao certo quanto tempo voei pelos céus, ou quantos lugares vi de longe, mas lembro-me perfeitamente onde estava quando tomei aquela ação.

Em território brasileiro, bem no interior do estado de São Paulo, vi um jovem rapaz humano em frente a uma grande casa, sozinho olhando o céu.

Lembro-me bem de ver sua figura solitária iluminada pela luz fria da lua. Seu olhar esmeralda, perdido e sombrio, tão condizente com as escuridão da noite que o envolviam, mirava o alto.

Até hoje, não sei o que aquele jovem tanto buscava no véu da noite... Mas percebi que algo afligia seu peito, via isso em sua solidão.

Por isso, descumprindo quaisquer regras e sem pensar ou ao menos me importar com o local onde estava, decidi presenteá-lo com uma aurora.

Não foi a maior, mas foi a aurora a qual mais me dediquei em criar, e até hoje foi a mais bela que manifestei, em uma tentativa de ao menos amenizar o que atormentava aquele rapaz.

Uma sensação agradável cresce em mim, quando lembro como os olhos dele se encheram de surpresa quando a aurora surgiu no céu.

Mas também, não gosto de lembrar o que houve logo depois, momentos antes de retornar às pressas ao paraíso. Não era celestial e nem demoníaco, mas estava vindo na minha direção muito rápido.

Aquilo me enche de terror, e o pior de tudo é não fazer a menor ideia do que realmente era.

Quando cheguei ao paraíso, recebi uma bronca pela minha ação imprudente. Aquilo gerou muita bagunça no mundo humano por ser um incidente completamente anormal, e também, os humanos consideraram uma anomalia antinatural, o que os levou a grandes investigações do que havia causado uma aurora em um lugar tão improvável.

Pouco tempo depois, o incidente foi controlado e essa história, até então, segue esquecida.

- Aliás Mi'Ka... – Le'Shen chama minha atenção – Soube sobre Alan'Or?

- Ele foi escolhido para a Divisão Especial, não é? – Busco confirmar o que ouvi tempos atrás.

A Divisão Especial é um grupo de anjos escolhidos para agirem como pesquisadores do paraíso, e também realizar projetos de várias finalidades. Projetos como "Profetas", "Conexões" e "Imortais", por exemplo, foram criados por esse grupo.

- Não somente isso. – Le'Shen sorri – Ele liderará um dos projetos.

- Alan'Or irá liderar? – Minha surpresa é genuína. – Isso é ótimo, preciso encontrá-lo em breve para parabenizá-lo. Sei como ele ansiava por fazer parte da Divisão.

- De fato. – Meu amigo sorri, e tenho a impressão de enxergar satisfação em sua face. – Ele quer nos reunir para contar a novidade.

- Quando? – Questiono.

- Ao fim do próximo ciclo humano, na Esfera do Repouso. – Diz apertando os olhos – Creio que todos irão. Le'Shin, Ion'Alia, e Lay'L.

Assinto com a animação crescendo fortemente – Eu irei!

A algum tempo não nos reunimos para contarmos sobre nossas experiências atuais. Temos tantas coisas para conversar, mas nunca temos a oportunidade. Sinto grande necessidade por isso e a muito tempo esperava por isso.

- Poderá mesmo ir? – Ele pergunta me olhando fixamente. – Não desejo prejudicá-la.

- Creio que não irá. – Pondero minhas próprias palavras – Cumpri com meu trabalho, e caso exista mais a fazer, existem outros Portadores do Belo disponíveis que poderão assumir em meu lugar.

- Fico contente em saber disso. Le'Shin e Lay'L querem muito te ver. – Ele comenta, e não reprimo meu sorriso ao ouvir isso. – Certamente, gostarão muito de saber que você também estará presente.

Passo um dedo pela lateral do rosto – Façamos uma surpresa, o que acha?

Ele aperta seu olhar, com um riso travesso – Uma surpresa?

- Não diga nada que irei. – Sorrio junto dele – Quero presenciar a reação de quando me verem após tanto tempo.

Le'Shen contém o riso – Certo, compartilho de sua intenção. Não direi nada a eles.

Sorrimos cúmplices e trocamos um aceno de cabeça. O anjo olha sobre o ombro por uma vez, e retorna sua atenção a mim – Você precisa ir?

- Sim, devo guiar algumas almas a seu descanso adequado. – Ele olha para o alto – Muitas vieram recentemente... E quanto a você?

- No agora estou livre de minhas tarefas. Então, por enquanto, irei retornar aos meus aposentos. – Sorrio serenamente – Preciso repousar ao menos um pouco.

Ele assente levemente – Entendo, seu trabalho requer muito de sua graça.

- Inquestionavelmente sim. – Junto as mãos atrás das costas – Apesar disso, não tenho motivos para contestar minha função. É um trabalho que me satisfaço em realizar... Assim como você se satisfaz em guiar as almas recém-chegadas, não é verdade?

- Com certeza – Ele sorri genuinamente – Me alegro com o que faço, independente do cansaço que me aflige.

Confirmo acenando a cabeça – É dessa exata forma que me sinto.

- Pois bem, não irei mais impedi-la de ir repousar Mi'Ka. – O anjo recua um passo.

- Nem eu o impedirei de ir cumprir seu trabalho. – Nos afastamos, e como despedida, curvamos levemente a cabeça um ao outro – O encontrarei lá Le'Shen.

- Até breve Mi'Ka. – Ele me lança um aceno e um sorriso, afastando-se devagar.

Permaneço onde estou, observando alguns anjos ao redor, mergulhada em reflexões silenciosas. Meu desejo torna a crescer em meu interior, tomando um espaço maior do que deveria, e um suspiro me escapa.

Torno a caminhar rumando para meu descanso, buscando uma maneira de aplacar meu interesse pelos humanos, que sempre parece maior.


Notas Finais

1 - O paraíso localiza-se em um plano diferente do mundo humano, e a maneira mais segura de ser acessada é através das esferas, que transportam os anjos em segurança para as entradas do mundo dos anjos (aquele espaço vazio onde a Mi'Ka estava). O paraíso pode ser acessado sem o uso das esferas, contudo, é um processo potencialmente danoso a quem se arriscar a fazê-lo.

2 - Os "problemas com humanos" citados por Mi'Ka referenciam a aurora misteriosa que surgiu na segunda metade de Rosas Gêmeas.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top