Capítulo 58

Não estava à espera de não o encontrar no gabinete.

Não conheço o piso superior da nave. Não sei onde é o quarto dele e nem sequer sei se é lá que costuma estar a estas horas. E o pior é que pareço ter chegado a um beco sem saída. À minha esquerda tenho a porta que dá acesso ao gabinete do 2º comandante e de frente para esta tenho a que dá acesso à sala de reuniões da equipa de navegação. Pelo menos, é isso que indicam as placas que estão adjacentes às portas. No fim do corredor só se encontra o "gabinete de controlo da nave", consigo ler as letras após algum esforço.

Ele pode estar em qualquer um destes três lugares, ou mesmo em nenhum. Não tenho como saber.

Das duas, uma. Ou volto para trás e desisto desta ideia mirabolante, ou continuo em frente e quem sabe não dê de caras com o monstro que procuro. Toda a gente sabe que os monstros não se procuram, evitam-se. Ulisses, à primeira oportunidade, tentou escapar-se deles, mas acabou por perceber que se não os enfrentarmos, eles não desaparecem simplesmente, vão continuar a causar estragos.

Esta é a minha batalha, não posso voltar costas ao inimigo, o problema é que não tenho nenhum cavalo de Troia.

Avanço decidida na antecipação da confrontação por que tanto aguardo. Mesmo que desarmada, tenho algo a meu favor. Ele não está à espera de me ver aqui.

Entreolho pela frecha da porta e consigo ver um vulto sentado numa grande mesa central. Não sei se é ele. Mas pode ser, não pode?

Tento fazer o mínimo de barulho ao empurrar a porta de metal.

Estaco com o cenário que encontro à minha frente. As estrelas fitam-me de forma desafiadora do outro lado da parede invisível que contorna um grande painel de navegação. A luz que elas emanam trava uma batalha desequilibrada com as luzes artificiais que saem disparadas de inúmeros botões estagnados no painel. Sinto vontade de me aproximar e perceber qual o intuito de cada um deles. Mas é uma vontade repentina. Uma vontade que esmorece quando o meu olhar descai novamente sobre o único ser que habita este espaço que transpira de poder.

O homem de cabelos negros com ocasionais reflexos brancos debruça-se atentamente sobre o tampo da mesa, onde repousam os seus antebraços morenos. Duas grossas e imponentes linhas perpendiculares à borda fina do metal reluzente. Não preciso de lhe ver o rosto, para saber que é ele.

Pé ante pé, encurto a distância que nos separa. Quase não respiro para que nenhum som o alerte da minha presença. Porém, temo que o bater acelerado do meu coração me denuncie. O meu sangue grita por oxigénio que me recuso a entregar-lhe.

Paro. Bastaria esticar os braços e pressionar com força as minhas mãos contra a sua traqueia para impedir a passagem do ar. Asfixiaria numa questão de minutos, não sem antes dar luta, claro. Iria bracejar, contorcer-se, lutar pela sua vida como se ela valesse grande coisa. Terá um monstro direito a isso depois de todo o mal que já causou a tantas pessoas?

Morreria entre as minhas mãos, se eu tivesse força suficiente para isso. A força física, aliada ao fator surpresa, talvez fosse a suficiente. Mas e a força psicológica? Será que matá-lo mitigaria o vazio que sinto dentro de mim, ou apenas serviria para o alastrar de uma forma irremediável?

Acho que sei a resposta a essas perguntas, não que isso torne as coisas mais fáceis. Suspiro exasperada e deixo cair os braços, que poderiam ser a minha única arma.

O 1º Comandante ergue-se num sobressalto, fazendo a cadeira fixa ao chão vibrar apenas ligeiramente com o movimento repentino.

− O que...? – Os seus olhos perscrutam-me confusos. A sua boca permanece aberta, mas parece incapaz de produzir qualquer som.

− Parece que o seu plano sucumbiu ao fracasso – declaro, sentindo-me vitoriosa. – Não só estou livre, como estou em total controlo dos meus pensamentos e ações. Lamento informá-lo, mas subestimou os seus adversários.

− Talvez tenha subestimado o rapazito, – comenta de forma desdenhosa, − mas apenas a ele. A tua presença aqui só prova que ainda és mais idiota do que pensava. O que achas que vais conseguir com isto?

Vacilo. O que quero eu com isto? Justiça? Vingança? Aliviar um pouco a consciência? Não sei o que quero no fim, mas decido entregar-me por completo ao meu desejo imediato de lhe dizer umas verdades.

− O senhor acha que é melhor do que todos nós. A supremacia do ser humano. O mais inteligente, o mais forte, o mais destemido, o mais persuasivo... Um ser perfeito, sem qualquer tipo de falha. Mas quando olho para si, vejo o ser esburacado que é – cuspo as palavras com acidez. – Se fosse assim tão perfeito, não teria deixado vestígios, não é? Se eu e o Salvador descobrimos do que você é capaz, mais pessoas descobrirão. E talvez mais cedo do que aquilo que julga.

− Que raio de obsessão é essa com a minha pessoa? Eu não te fiz mal nenhum.

− Só pode estar a brincar comigo – digo incrédula. – Eu já sei de tudo. Não vale a pena fingir. O senhor fez-me muito mal. E mesmo que não me tivesse feito mal diretamente a mim, aquilo que você fez é desumano. Tem de pagar por isso!

− Estás a falar da tua bisavó, suponho.

− Você estragou-lhe a vida – grito enfurecida. O meu corpo balança ligeiramente para a frente num reflexo de raiva. – Fez com que toda a comunidade achasse que ela não valia nada, pior, que era insana! E não contente com isso, ainda... − a minha voz esmorece com a dor que me aperta o peito.

− Sabes, uma história tem sempre dois lados e talvez tenha chegado a altura de saberes o meu. – O 1º comandante recosta-se no tampo da mesa atrás de si, cruzando as mãos sobre o colo. – Eu era ainda um adolescente quando o projeto desta nave começou a ser desenhado. Mal eu sabia na altura que a minha vida estava prestes a mudar de uma forma tão...irreversível. O meu pai, o grande Miguel Serrano, − acrescenta com escárnio ao gesticular um pequeno arco no ar, − teve a infelicidade de ser convidado a fazer parte dele – o seu tom de voz e mãos descem drasticamente. – Com o passar do tempo, eu já mal o via em casa. Acabaram-se os jantares de família, os serões de tarde ao fim-de-semana, as conversas profundas que só um pai e um filho têm... Acabou-se tudo. Ele já não tinha tempo para mim – confessa numa mágoa que me parece tão profunda, que me pergunto se terá sequer fim. – Nós eramos felizes, antes disto, – o seu olhar varre toda a área à nossa volta, − antes da tua bisavó aparecer e estragar uma família. Ela estragou o casamento dos meus pais!

− Calma aí! O que é que ela tem a ver com o casamento dos seus pais? Lamento que se tenham separado, mas se isso aconteceu foi porque já não eram felizes, já não se amavam.

Aqui, na nave, os casamentos são para a vida. Sei que na Terra era permitido o divórcio, mas aqui não. Mais uma regra que deveria ser revista, afinal de contas isso não impede que existam traições, penso ao lembrar-me do caso secreto entre o Rómulo Aguiar e a Olívia. Se a pessoa não está feliz com quem tem do seu lado, mais vale cada um seguir a sua vida.

− Os meus pais eram muito felizes e amavam-se imensamente – afirma de forma teimosa, quase parecendo uma criança contrariada. – Só que vocês, Bacelares, usam do vosso magnetismo e poder para manipularem todos aqueles que cruzam o vosso caminho. O meu pai caiu que nem um patinho na armadilha que a tua bisavó montou. Estava tonto de amores e fazia tudo aquilo que ela mandava.

− Eles eram apenas amigos, parceiros de trabalho...

− Acredita, se fosse pela vontade do meu pai, eles seriam muito mais do que isso. – As suas mãos contorcem-se sobre o seu colo. – Dois anos antes da nave descolar, o meu pai oficializou o divórcio com a minha mãe, disse que já não havia volta a dar. Mas fez pior, contou à minha mãe toda a ideia do projeto em que vinha a trabalhar durante os últimos anos e convidou-a a embarcar junto com ele. – A sua boca contrai-se repugnada. − É claro que a minha mãe não aceitou, estava demasiado magoada e não queria ter de viver uma vida inteira confinada numa nave com o homem que a renegou. Se eu estivesse no lugar dela teria feito o mesmo. Mas a mim não foi dada opção! – brama. A mesa estremece com o impacto dos seus punhos. − A minha mãe fez-me prometer que não recusava a oportunidade. E eu não lhe podia dizer que não. Ela estava destroçada, não lhe poderia dar mais esse desgosto. Fiz a promessa e, mais tarde, quando o meu pai me convidou para ocupar o lugar de seu segundo comandante, eu não hesitei.

− Se sentia tanta raiva dele, porque é que quis ficar numa posição que o obrigava a conviver com ele diariamente?

− Vá lá! Achava-te um pouco mais esperta que isso. Não é óbvio? Perdi tudo, a família, a felicidade, o ânimo. E do nada a chama da vingança acendeu-se dentro de mim – estala os dedos demasiado próximos do meu rosto, fazendo-me cambalear um pouco para trás. − Ganhei um propósito para a vida.

− Destruir a vida dos outros – completo com amargura.

− Destruir a vida da tua bisavó – corrige-me. − Só o conseguiria se tivesse um papel importante dentro da comunidade, e como 2º comandante tinha um destaque razoável. Quando o meu pai morreu, poucos dias depois do início da viagem, pensei que Deus estava do meu lado. Como 1º comandante poderia moldar a comunidade à minha imagem e semelhança, e passar por cima de todas as normas que eles haviam estipulado juntos. Sabia que isso iria enfurecer a pobre da Celeste. Mas o que é que ela poderia fazer? Ela era uma simples mortal e eu, o Deus da humanidade.

− Isso foi bastante conveniente para si. A não ser... − Calo-me. Uma ideia absurda cisma em ocupar toda a área da minha consciência. Torna-se bastante difícil ignorá-la. Ela envolve-se nas pontas soltas das minhas memórias recentes e forma pontes instáveis com memórias antigas, dando-lhes um significado aterrador. Um significado que torna a realidade ainda mais negra do que já era. – Você matou-os. Matou-os aos dois. Primeiro, o seu pai e depois a minha bisavó.

− Não digas disparates – Os seus olhos negros brilham de indignação. − Eu seria incapaz de matar o meu próprio pai. Eu posso ser um monstro, mas até os monstros têm limites.

− Eu não acredito – declaro num fio de voz gasto, a rasgar a não existência de todo. Nem eu própria sei se proferi as palavras em voz alta, de facto. Já não sei onde reside a verdade e a mentira. A linha que as separa nunca me pareceu tão ténue.

O eco de passos apressados chega-me aos ouvidos através da porta que deixei aberta atrás de mim.

Dou uma volta de 180º e começo a pensar que estou encurralada. Se forem os guardas, não tenho como escapar. E o que é que eu consegui com a minha vinda aqui? Nada. Bom, não é totalmente verdade. Consegui algumas respostas, mas de que me servem respostas vazias, que não me levam a certeza alguma e ainda me implantam na mente dúvidas que não pedi.

O meu coração relaxa de imediato ao ver o Salvador entrar. Depois percebo a sua respiração ofegante, a tremura das mãos a ladear um corpo que transpira de desânimo, e dou-me conta de que a sua presença não pode ser bom sinal.

− Eu sabia que estarias aqui – pronuncia num tom gelado. – Afasta-te dele, Aurora. Não foram apenas dois.

Encaro-o confusa.

Não foram apenas dois. O que é que ele quer dizer com isso? Dois? Dois... Dois assassinatos, constato, obtendo a resposta de que tanto precisava.

− O senhor não passa de um grande mentiroso, não é? – Volto-me de novo na direção do homem a que toda a minha raiva é dirigida. Ele continua sentado sobre o tampo da mesa, como se nada fosse. Para ele não passamos de dois imprevistos facilmente abafáveis. – Agora sei que não existe qualquer resquício de humanidade no seu coração. É um homem vazio, sem alma. Como é que foi capaz de assassinar tanta gente? De assassinar o seu próprio pai... A minha bisavó – grito desesperada ao lançar o meu corpo sobre o dele.

O tronco de Henrique Serrano embate com força sobre a mesa, num forte ruído sonoro. Finco as unhas na carne do seu rosto e um delicioso uivo de dor é libertado no ar. O meu corpo calca o dele para baixo, como se ele pudesse desvanecer sobre o metal, o seu ADN incorporado no material sem vida. Os seus braços tentam empurrar, em vão, o meu corpo para cima. Eu cravo as minhas mãos em volta da sua traqueia, feliz pela gravidade estar do meu lado.

− Larga-o! – ouço alguém exigir atrás de mim. – Isso se quiseres que o teu namoradinho continue vivo.

Toda a adrenalina que comandava o meu corpo até há uns segundos atrás, desvanece. O meu corpo flácido e sem forças é empurrado para trás pelos braços, subitamente, eficazes do 1º comandante.

Cambaleio dois passos, mas facilmente restabeleço o equilíbrio do meu próprio corpo. E, sem perder tempo, volto-me na direção da porta.

− Se tentares alguma coisa, eu juro que o injeto com este soro – ameaça o 2º comandante, ao pressionar uma agulha contra a pele do pescoço do Salvador. Com o braço esquerdo, o homem mantem o Salvador imóvel junto ao seu corpo. A sua cabeça, um palmo apenas mais alta que a do meu namorado, encontra-se pousada sobre o ombro direito do seu prisioneiro. – Acredita quando te digo, se o fizer, não vais gostar do resultado.

Consciente do homem que se endireita atrás de mim, afasto-me dos dois, mas também da porta que seria a minha única hipótese de fuga.

− Calma, eu não vou tentar nada – advirto ao colocar-me entre a mesa e o painel de navegação. – Só acho que estou um pouco em desvantagem, não?

− Coitadinha – ironiza o 1º comandante. – Ela ainda acha que tem direito a reclamar, depois do que me fez ao rosto. – As suas mãos adquirem a cor do sangue ao passarem pela cara arranhada. Não consigo evitar sorrir com o resultado admirável da minha investida. Três grossas linhas escarlates se estendem pelo comprimento das duas faces. – Essa menina enlouqueceu. Ainda me acusa de coisas que eu nem fiz!

− Porquê sustentar a mentira? Admita logo que os assassinou – profiro encolerizada. A minha paciência está a ponto de se esgotar, por causa deste jogo sem sentido.

Será que ele tem medo que eu esteja a gravar a conversa? Que ideia absurda, como se isso fosse possível! Mas seria, não seria? Já foram feitos comunicados a partir desta sala para toda a comunidade. Quando houve a ameaça da passagem de cometas demasiado perto da rota da nave, foi nos transmitido um comunicado para permanecermos todos no piso inferior da nave, até ordem em contrário. Eu só preciso de encontrar o botão, penso ao olhar por cima do ombro.

− Também está a pensar matar-me? – disparo para tentar abstrai-los do meu gesto impulsivo de espreitar para o painel.

− Tu és mesmo insistente, hein! Eu mediquei-te com um soro que tornaria a tua vida miserável, mas nunca levaria à morte.

− Já chega desta patetice – a voz do 2º comandante apanha-nos a todos desprevenidos, pela segunda vez hoje. Engulo em seco quando vejo a agulha arrancar uma gota de sangue do pescoço do Salvador, que franze o rosto, não sei se de desagrado com a sensação de invasão ou se de dor. – Fui eu – um silêncio instala-se entre nós numa espera agoniante pela continuação de uma frase que talvez já tenha chegado ao seu fim. Não pode ser, penso, ao sentir um pânico crescente na constatação óbvia da sua afirmação. – Fui eu que matei a Celeste Bacelar.

Olho para Henrique Serrano que parece tão surpreso quanto eu. Essa era a confirmação de que precisava para saber que, de facto, ele não é o culpado de todos os males que corroem a paz da nossa comunidade. Não que isso facilite as coisas.

− Eu sei que ninguém estava à espera de uma revelação destas, vinda de um ser insignificante como eu, − continua, com algum azedume na voz, − mas esta é a verdade. Eu queria tê-la morto logo no início da viagem, mas ela pareceu acalmar com o tratamento que o Henrique lhe decidiu dar, afastando-a da comunidade, tirando-lhe aquilo que mais de valioso ela tinha na Terra: a credibilidade. Bastava ela ter continuado quietinha e calada no seu canto, que nada de mal lhe aconteceria. Mas não. Ela tinha que se armar em revolucionária, depois de tantos anos em silêncio. Não suportei quando soube das ameaças que ela fez ao Henrique, tive que agir antes que fosse tarde demais.

− E foram esses mesmos motivos que o fizeram matar o Sr. Nicolau – constato atordoada.

− Claro. Se os medicamentos já não eram eficazes o suficiente, só havia uma outra forma de o calar. Não poderia arriscar que as pessoas começassem a duvidar do carácter do Henrique. Eu esforcei-me muito para conquistar este lugar para mim e para ele.

Agora tudo faz sentido. Lembro-me da minha bisavó ter descrito nos seus diários a insatisfação do António Caetano por não ter ficado como comandante da nave portuguesa. Ela deveria ter calculado que a sua ambição desmedida seria uma bomba relógio prestes a explodir.

− Você matou o Miguel – afirmo com tanta propriedade, que quase parece que fui testemunha de tal atrocidade. Agora as peças começam todas a encaixar-se na perfeição. − Não suportou o facto de ele ter ficado com o lugar que deveria ser seu.

Ele vacila. A boca abre-se para se fechar logo de seguida. Os olhos são lançados numa lamúria abafada na direção do Henrique, que se encontra de costas para mim.

− Eu tive que o fazer – confessa ao companheiro, que baixa a cabeça em pura desilusão. – O Miguel não merecia aquele lugar. Ele levaria a comunidade à mesma mesmice de sempre, seria uma réplica da sociedade da Terra. – Ele faz uma pausa demorada com os olhos fixos na cabeça ainda cabisbaixa do 1º comandante. − Passei meses a planear a sua morte, − decide continuar, − a desenvolver o soro perfeito, e quando embarquei tive apenas que me certificar que ele não seria o único a morrer, porque isso seria demasiado suspeito.

− Para que a comunidade pensasse que o organismo deles não se adaptara ao novo ambiente – explico ao perceber o seu pensamento torto.

− Exato. E como foi fácil convencer o médico a confirmar a história toda – acrescenta com um brilho de orgulho no olhar que me faz estremecer. Ele não "convenceu" o médico, ele ameaçou-o de morte!

− Não percebo – desabafo ao compreender que o encaixe das peças não é tão perfeito quanto eu julgara à primeira vista. – Porquê fazer isso tudo, arriscar tanto, e depois acabar no lugar de 2º comandante? Isso parece-me pouco para alguém tão ambicioso como você.

− Eu... Eu... − hesita. Percebo que a seringa descai uns centímetros, não estando tão justa ao pescoço do Salvador. Porém, o meu olhar pede-lhe para permanecer imóvel. Eu preciso de tentar obter mais algumas respostas. Além do mais, ainda é demasiado arriscado. – Eu percebi que ele seria um melhor líder do que eu.

− Só isso? Vá lá, tem de haver mais qualquer coisa. Não deixemos as verdades pela metade. A sua ambição não seria facilmente calada pela simples constatação desse facto. Nem que percebesse que você seria o pior líder possível para a comunidade, continuaria a tentar ascender a essa posição.

− Eu e o Henrique tornamo-nos grandes confidentes, umas semanas antes da nave descolar. Eu percebi rapidamente que partilhávamos a mesma visão do mundo, os mesmos ideais, o mesmo sentido de justiça. Quando dei por mim já era tarde demais. A minha prioridade já não era ascender à posição de 1º comandante, mas antes fazer de tudo para assegurar-me que seria o Henrique a assumir esse lugar, comigo do seu lado – confessa com os olhos novamente presos no homem cabisbaixo à sua frente.

Discretamente, volto o rosto na direção do painel e começo a procurar pelo botão de que tanto preciso. Que ele esteja perto. Que ele esteja perto. Que ele esteja perto.

− Eu apaixonei-me – a revelação faz com que sinta vontade de me voltar para eles, mas sou forte o suficiente para resistir à armadilha da minha própria curiosidade. O botão tem de estar aqui algures, penso, ao olhar à vez para os estranhos desenhos em relevo que adornam cada um dos interruptores luminosos. – Eu era casado e tu eras dez anos mais novo que eu, já para não falar... eras homem e eu também o era. Isso não estava certo, ia contra os ensinamentos da igreja. Tentei lutar contra o que sentia, mas acho que já era tarde demais – reviro os olhos pelas palavras retrógradas que me chegam aos ouvidos. Como é que esta gente ainda acha que é possível comandar com a mente o coração? A mente pode seguir o protocolo, regras, ideais, mas ao coração ninguém consegue ensinar a ler um livro de instruções, muito menos a querer segui-lo. – Eu amava-te com todas as minhas forças. Quando estava contigo sentia-me inteiro.

− Tu nunca me disseste – a voz do 1º comandante irrompe pela primeira vez no ar depois de tantas revelações num tão curto espaço de tempo. As palavras abraçadas numa fragilidade que não lhe reconheço.

Os meus olhos detêm-se num símbolo que parece representar uma saída de áudio, como aquela que é visível num dos cantos do teto da enfermaria. Uma espécie de cone largo com pouca profundidade.

− Nunca me deste sinal algum de que o sentimento pudesse ser recíproco – diz o 2º comandante num tom de voz que parece embargado pelas lágrimas. Olho para a frente e confirmo a minha suspeição. O homem está aterrado. Com o coração nas mãos, ninguém pode estar totalmente atento ao que se passa ao seu redor. A fragilidade emocional em que se encontra é o escudo de que preciso para avançar até ao tão procurado botão, sem ser notada. – Eu tinha medo que me rejeitasses, que fugisses de mim. Preferia estar do teu lado como amigo, do que não estar de todo. – Avanço dois passos lentos e respiro fundo quando uma luz se acende no botão com o cone desenhado. Só espero que não seja o botão errado, penso, com a ideia de causar uma catástrofe a irromper fortemente na minha consciência pesada. – Eu sempre te amei. Eu ainda te amo.

Um silêncio atroz preenche todas as lacunas que ainda haviam por preencher. Ele não esperava realmente um "Eu também te amo", depois de ter confessado ter morto o pai dele, pois não? Algo de muito retorcido vive dentro dele, uma alma corrompida, que já não consegue discernir a linha que separa o bem do mal. Porém, este vazio no ar não me é nada conveniente. Tenho que o fazer falar, antes que os guardas apareçam.

− Então o António está a querer dizer-me que tudo o que fez foi por amor? Que o amor justifica todas as mortes que provocou? – O Salvador fulmina-me com o olhar. Ele estava atento. Ele sabe o que estou a tentar fazer, mas não parece aprovar.

− Se queres ouvir uma história triste de como eu me arrependo do que fiz, é porque não me conheces, mesmo – os meus pelos dos braços eriçam-se com o veneno que cada palavra transporta consigo. – Eu voltaria a fazer tudo de novo. Matava a Celeste, o Nicolau, o Miguel e todos aqueles que se colocassem no meu caminho e no caminho do Henrique. Nós nascemos para comandar a humanidade, os dois, juntos. Se queres que te diga, eu até matava a comunidade inteira pelo Henrique.

Um sorriso amargo desenha-se no meu rosto. Não gosto do som das palavras que ele profere. Mas a ideia de a comunidade estar também a ouvir tais palavras, a ouvir a sua confissão não planeada, dá-me algum gozo. Uma sensação deliciosa de justiça.

− De facto, vocês merecem-se – digo com a luz de um sorriso ainda a iluminar o meu rosto. – Dois assassinos. Um que nega a entrada de sem-abrigos na nave, condenando-os a uma morte lenta de que não pediram, outro que envenena o sangue do Miguel Serrano para ocupar o lugar dele e mata uns outros tantos pelo caminho só para encobrir os rastos dos seus pecados. Vocês não são líderes, são monstros.

− Não te preocupes, docinho – a forma carinhosa como António Caetano se dirige a mim provoca-me náuseas. – Tu não vais ter de viver para veres estes dois monstros a reinar majestosamente – a ameaça velada intensifica o desconforto que sinto dentro do estômago.

Num movimento veloz, o Salvador ergue o seu antebraço direito e lança o braço do 2º comandante, armado com a seringa, para longe de si. O gesto inesperado faz com que o objeto pontiagudo caia no chão. A face do monstro contorce-se numa expressão de puro horror pela reviravolta por que não esperava. O meu namorado aproveita a distração e a vantagem corporal que tem agora sobre ele, e consegue desvencilhar-se da prisão do seu braço apertado. Ao ver-se livre, o seu corpo é jogado na direção de António Caetano, que é empurrado contra a parede que se estende por detrás dele.

Um golpe certeiro é desferido no queixo proeminente do comandante, que urre de dor. O som de um novo golpe, seguido de um grito abafado de sofrimento faz com que seja libertada na minha corrente sanguínea uma quantidade absurda de adrenalina e endorfina. Uma junção perigosamente aprazível.

Depois do quarto murro, as expressões de António Caetano tornam-se indecifráveis debaixo da camada de vermelho fresco que cobre grande parte da sua face. O lábio grosso parece-me conter uma fenda que ficará infecionada se não for selada nos próximos minutos. O olho direito está apenas semiaberto por causa do peso do inchaço da pálpebra. Do nariz, visivelmente torto, jorra uma quantidade descomunal de sangue que, com a transpiração, se cola em algumas zonas da pele em volta da boca.

Vejo o 1º comandante agachar-se, não muito longe dos dois, para logo depois se levantar. O meu cérebro demora um segundo a perceber a intenção de tal movimento. Horrorizada contorno a mesa que me separa dos três com uma rapidez que me parece quase humanamente impossível. É impressionante o que o ser humano é capaz de fazer nos momentos de maior aflição.

− Salvador – grito a plenos pulmões com um desespero crescente a invadir todo o meu corpo. Eu não vou chegar a tempo, penso ao ver Henrique Serrano a avançar com a seringa em riste.

O Salvador larga António Caetano, que escorrega sem forças pela parede, e volta-se para enfrentar a ameaça seguinte. Sem pensar duas vezes, salto para a frente dele, transformando-me na única barreira existente para prevenir o ataque sobre o homem da minha vida. Eu não posso deixar que ele morra, nem que para isso tenha que morrer no lugar dele.

Antes mesmo do Salvador perceber o intuito do meu gesto, sinto uma dor aguda no ombro, onde é espetada a agulha que era destinada ao Salvador. Os meus olhos abrem-se em pânico, quando um sorriso grotesco se desenha no rosto do monstro que saboreia o meu sofrimento.

Sinto o líquido entrar na minha corrente sanguínea de forma definitiva, reclamando as minhas células para ele. Como se mais nada me pertencesse. Nem o sangue, nem as células, nem a vida.

Caio de joelhos ao perder instantaneamente as forças de todos os meus músculos. E a última coisa que sinto é a mão do Salvador embrenhada nos meus cabelos ruivos, impedindo o choque duro e frio do meu cérebro contra o chão. Ao menos o seu toque ainda me pertence.

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