Capítulo 56


O Salvador limita-se a olhar para mim. Está a olhar para mim à uma eternidade.

Está sentado no chão, no canto do cubo negro oposto ao meu, com os braços cruzados a envolver os joelhos.

A minha posição é quase um reflexo da dele, ou a dele um reflexo da minha, mas o meu queixo repousa sobre a rótula do joelho esquerdo. O rosto dele, não. O rosto dele permanece erguido no ar, ligeiramente inclinado para a frente, atento à rapariga do outro lado da sala, que mal olha para ele.

Começo a pensar se a distância que nos separa é suficiente. Os olhos dele continuam demasiado próximos, fazem-me sentir desconfortável.

Fui eu que fugi do Salvador, quando este resolveu sentar-se do meu lado. O meu cérebro diz-me que somos namorados, mas eu não sinto que sejamos. Não sinto nada por ele. Um grande vazio ocupa a minha memória sempre que me tento lembrar de um único momento que tenhamos passado os dois juntos.

Estive a dormir nesta posição durante algum tempo. Horas, talvez. Quando adormeci ele olhava para mim. Quando acordei ele olhava para mim. Sempre sentado na mesma posição e à mesma distância. Longe e, ao mesmo tempo, demasiado perto.

O movimento de um vulto a passar diante da parede translúcida chama-me à atenção. É um homem alto, mas a escuridão do corredor impede-me de distinguir com clareza os seus contornos.

A porta pesada range, obstinada a deixar entrar mais algum corpo no pequeno espaço que protege. No entanto, vejo-a ceder, pouco a pouco, sem força suficiente para travar o homem sem rosto.

− Nem te atrevas − ameaça Torres, ao estender um objeto longo e retangular na direção do meu companheiro de cela. A porta fecha-se atrás do guarda, num baque sonoro. – Se tentares alguma gracinha, serás eletrocutado – à menção da última palavra, o homem de cabelos louros pressiona o botão vermelho na base do objeto estranho. Faíscas estonteantes crepitam no ar. – Não sei se sobreviverias à experiência, mas não me importo nada de o testar. Trouxe-o especialmente para ti − um sorriso desenha-se no seu rosto contorcido numa emoção que não consigo identificar.

− Que amabilidade − profere o Salvador em resposta. – Já me começo a sentir importante. Não me digas que vieste aqui de propósito só para me ver. – O sorriso do intruso desaparece do seu rosto tão rapidamente que começo a pensar se não o terei imaginado.

− É claro que não − a voz do guarda soa-me ríspida, ainda que não veja explicação para tal. Os dois homens parecem estar a dar-se lindamente. O Torres até lhe trouxe um presente e tudo! – Eu vim administrar a segunda dose do SCH08, seja lá isso o que for, − coloca a mão no bolso, − à rapariga insubordinada. – Os olhos raiados de sangue do guarda fixam-se no meu corpo encolhido, no canto oposto da sala. A exaustão do homem é palpável. A sua mão esquerda aparece de novo, trazendo uma seringa com um líquido vermelho no seu interior. A cor flagrante parece-me demasiado bela para ser real. Poderei estar a ver coisas que não existem? O meu cérebro é um emaranhado de memórias e pensamentos. Começo a colocar em causa a minha própria existência.

Uma dor lancinante preenche toda a minha mente.

Ergo a cabeça e amparo-a entre as mãos.

Torres avança com a seringa distendida na minha direção. Umas imagens confusas e desordenadas assolam-me os pensamentos. Sinto como se já tivesse vivenciado este momento. Não sei quando, como ou porquê, mas algo no meu interior grita, a todo o custo, à minha consciência que não é a primeira vez que isto acontece.

Um mau agoiro defronta-me descaradamente e eu não consigo sentir nada. Sei que o que está para vir não é agradável, mas ainda assim mantenho-me quieta, com os olhos presos no líquido embalado pelos movimentos controlados do homem que se aproxima de mim.

− Desta vez, sou capaz de nem deixar marca no branco imaculado da tua pele − diz, ao ajoelhar-se diante de mim. – Estás tão serena que até pareces um anjo. Se não visse com os meus próprios olhos, jamais acreditaria.

Um corpo salta sobre o homem desprevenido que me fita atentamente. Uma mão aperta e contorce o braço do guarda que segura a seringa que me era destinada. Outra mão arranca o longo objeto retangular da mão direita do guarda, assim que este tenta pressionar o botão vermelho da base. O objeto voa pela sala e embate na parede, junto à porta. O estrondo só amplifica ainda mais a dor que me corrói a mente.

Torres deixa cair a seringa no chão e com as mãos livres aperta o pescoço do homem que se agarra a este de forma violenta. O peso sobre si afrouxa o suficiente para ele o empurrar para trás. O Salvador cambaleia alguns passos com a força do gesto de Torres. O guarda levanta-se num salto, aproveitando o recuo do seu oponente.

Os dois homens entreolham-se de cenho carregado. Os punhos fechados estendidos à frente do tronco, em ambos os casos. O Salvador posiciona todo o peso do seu corpo na perna direita, preparado para avançar. Já Torres é na perna recuada que deposita toda a sua força.

Os olhos do guarda espreitam sub-repticiamente na direção da porta. Um som gutural é arrancado das suas entranhas ao deparar-se com o objeto estilhaçado e inerte no chão. Nenhuma faísca conseguirá ser arrancada do seu interior.

O presente que trouxe está completamente dilacerado.

O Salvador sorri.

− Parece que já não podes contar com o teu brinquedinho. − Os seus olhos azuis parecem ter roubado as faíscas do objeto do seu oponente. – E parece que tu e o teu mandante me subestimaram.

O Salvador cobre rapidamente a distância que o separa do outro homem. O seu punho cerrado é desviado eficazmente pelo braço esquerdo do guarda, que, de seguida, investe um golpe direito certeiro no abdómen do seu atacante. O Salvador dobra-se sobre o seu estômago, com as mãos a envolver uma dor que não é visível.

Uma gargalhada confiante ecoa no ar. Olho para Torres, o seu perfil mantem-se inalterado. Lábios cerrados, testa franzida. A sua garganta não parece vibrar. Volto a minha atenção para o homem debruçado sobre si próprio. As costas tremem visivelmente, com a contração e dilatação dos músculos abdominais. Ele levanta o rosto. A boca aberta deixa sair o som que me chega aos ouvidos. Os seus olhos brilham de forma indecifrável.

O Salvador volta a avançar sobre o guarda, que o espera com os braços à altura da face. Mas desta vez, ao invés do punho, investe com a perna direita sobre a lateral do homem de negro. O homem contorce-se, porém isso não demove o seu atacante, que volta a golpeá-lo. O punho direito acerta no rosto de Torres, que cambaleia para trás com a força arremetida. E antes deste recuperar o total equilíbrio do seu corpo, o Salvador dobra a sua perna direita no ar para logo depois a esticar com mestria sobre o abdómem do seu oponente.

Torres embate no chão, a uns dez centímetros do local onde permaneço sentada.

− Volto a repetir, − enuncia o Salvador ao aproximar-se da seringa esquecida no chão, − vocês, claramente, subestimaram-me.

O Salvador agarra no objeto que me é tão familiar. Ao menos disso eu lembro-me, penso. Sei exatamente onde e como espetar a agulha de forma a provocar o mínimo de dor e desconforto possível ao paciente. Ele segura-a entre a mão direita e pousa o polegar sobre o êmbolo. As suas pernas percorrem, em poucos passos, a pequena distância que o separa do guarda atordoado.

− Nunca pensei que fosse tão fácil derrotar um guarda da nave. − Uma poça de vermelho vivo alastra-se debaixo da cabeça do homem derrotado. O diâmetro do círculo escarlate mal desenhado não é muito extenso. Ainda assim, a quantidade de sangue derramada é impressionante. Continua consciente, isso é bom sinal, constato. − Mas pensando bem, treinei a minha vida toda para isto. Não te sintas mal, tive um bom professor. Era lutador de boxe no planeta Terra. Uma profissão clandestina e muito mal remunerada. Tu nunca o conheceste, nem nunca o vais conhecer − o tom de voz que usa faz lembrar-me o frio da água gelada sobre a minha pele quente. Um súbito estremecimento percorre-me o corpo. Será que isso se classifica como sentir algo? O Salvador agarra firmemente o antebraço do homem que se debate deitado no chão. O guarda fraco e derrotado, pouco pode contra a força da mão que o segura. – Ele ensinou-me que o primeiro golpe deve sempre ser o do nosso adversário. Devemos esperar que ele pense que terá uma fácil vitória, e aproveitamos para analisar atentamente a forma de defesa, ataque e força do nosso oponente. Escusado será dizer que pontuaste abaixo de dez nessas três categorias. Numa escala de zero a cem − acrescenta com um meio sorriso no rosto. A agulha perfura violentamente a pele do braço de Torres. O êmbolo é pressionado e o líquido sugado pelo seu organismo. – Ele morreu... − Faz uma pausa. A seringa vazia é retirada do corpo inerte no chão. − O meu mestre. Uns meses antes da morte do meu avô. Mas eu continuei a treinar, porque sabia que este dia chegaria. Mais cedo ou mais tarde, ele chegaria − declara num sussurro. O homem de negro mantém os olhos completamente abertos. Os músculos de todo o seu corpo parecem paralisados. − O teu erro foi pensares que a ideia da minha morte me assustaria mais do que a ideia da destruição da alma e vivacidade da pessoa que mais amo no Universo.

Uns olhos azuis eletrizantes voltam-se para mim. A dor de cabeça intensifica-se. Logo agora que quase já me habituara a ela.

− Só nos resta esperar − a sua voz vibrante ecoa dentro de mim. Quase que consigo agarrar o breve e fraco vestígio de um sentimento que me aflora à pele. Quase. – Daqui a umas horas, tu vais voltar para mim. Inteira e completamente TU.


Regresso à consciência. O meu pescoço e costas estão doloridos por causa da posição em que me encontro. Porque raio é que estava a dormir sentada?

Olho para os meus pés e vejo uma poça de sangue não muito distante. Dista uns dez centímetros. Será minha?

Ergo o rosto. A parede translúcida que me fita transporta-me para memórias distantes. Será de um sonho?

Junto à parede, vislumbro um corpo reclinado sobre o chão e percebo que o sangue é dele. Os longos cabelos loiros, outrora luminosos, estão ensopados num tom escarlate demasiado vivo e uma faixa larga de tecido negro contorna o seu crânio.

Varro com o olhar o estranho e pequeno cubo que me parece remotamente familiar. No canto oposto ao que me encontro, o Salvador tem o rosto caído sobre os joelhos dobrados.

Com o coração aos pulos, voo na direção dele.

− Salvador?! – chamo-o num fio de voz assustado. Pouso a mão sobre os seus cabelos castanhos, que brilham com a luz intensa que ilumina o espaço. Sinto-o mover-se debaixo do meu toque. – Salvador – volto a dizer o nome dele, permitindo a saída do ar que prendera dentro dos meus pulmões.

− Aurora?! – pronuncia com a voz rouca. Os seus olhos azuis perscrutam-me atentamente. – Voltaste?

Memórias, que parecem não ser minhas, começam a ganhar força e a ocupar lugares da minha mente que estavam apenas meio preenchidos. Deslocam-se a uma velocidade estonteante, deixando-me ligeiramente aturdida. São memórias estranhas, acontecimentos que parecem simples factos, desprovidos de qualquer emoção.

Foco a minha atenção para um ponto estático atrás de mim.

Um corpo.

O corpo de Torres. O sangue que o marca é a prova de que precisava. É a confirmação de que as memórias que se avivam dentro de mim são bem reais.

− Sim, sou eu – confirmo ao voltar-me de novo para o Salvador. Uma admiração contagiante cresce descomunalmente dentro do meu peito. Ele teve de travar as lutas mais difíceis da sua vida e eu não estava com ele para o apoiar. O meu corpo estava, a minha alma não. – Descul...

O meu namorado balança o corpo na minha direção e cola os seus lábios aos meus, silenciando-me eficazmente. Entreabro a minha boca para receber um conforto que me parece já tão distante e irreal. Sinto-o sorrir com a minha receção à sua proximidade. Mordisco o seu lábio inferior, incitando-o, provocando-o. Os seus joelhos abrem para mim e eu apresso-me a reivindicar o espaço entre eles, pousando as minhas mãos no seu vibrante peito. O beijo intensifica-se e às tantas já nem sei onde começo ou termino. Os nossos corpos movem-se em função um do outro. A energia que eu emano é sugada por ele e a dele é sugada por mim. E os nossos corações definem em conjunto a forma impetuosa como nos agarramos à vida.

− Eu sei pelo que tiveste de passar – admito ainda um pouco ofegante. Os seus olhos detêm-se nos meus lábios e eu sinto-me tentada a prolongar o momento de intimidade que interrompi de forma tão abruta. – Eu estava consciente. Era uma consciência diferente, como se eu fosse uma mera observadora de uma qualquer cena alheia que nada me dizia. Eu peço desculpa por não te ter podido ajudar, por ter ficado simplesmente sentada como se não fosse nada comigo.

− Tu não tens culpa. – As mãos do Salvador ladeiam-me, ternamente, o rosto. – E eu acho que até me safei bem, não? − O sorriso malandro a que já me habituei desafia-me.

− Eu diria que lidaste muito bem com a situação de chantagem do 1º comandante, mas... − arrasto lentamente as mãos pelo seu peito inchado e entrelaço-as em volta da nuca, − não acho que deixar o Torres inconsciente se enquadre nessa categoria.

− Ele merecia bem pior, o desgraçado – confessa de dentes arreganhados. O Salvador toca na pele marcada com os hematomas recentes do meu braço estendido. As minhas mãos agarram-se com mais força ao pescoço do homem que parece sentir-se impotente. Espero que o gesto consiga transmitir aquilo que não consigo colocar em palavras. Que lhe diga o quanto confio nele e que não sinto nem uma pinga de desilusão, até porque ele não poderia impedir aquilo que aconteceu, nem prever tão nefastas consequências. Nenhum de nós dois pode levar a culpa pelas ações desumanas de que fomos alvos. – Além do mais, não poderia arriscar que ele fosse chamar os amiguinhos.

− Ele ao menos está vivo? – questiono com um receio repentino.

− Da última vez que verifiquei, estava – responde despretenciosamente. – Atei um pedaço do tecido da farda dele à volta da ferida para estancar o sangramento e parece ter resultado.

− Vou ter que o analisar – suspiro exasperada. Essa é exatamente a última coisa que eu gostaria de fazer.

Preparo-me para levantar, mas o Salvador agarra-me pelo braço incólume, mantendo-me entre as suas pernas.

− Não temos tempo para isso. Precisamos de sair daqui o mais rápido possível – proclama num tom autoritário. − Podíamos ir para a sala secreta – sugere a medo, numa afirmação entoada quase em tom de interrogação.

− Fugir? Logo agora? Não – nego relutantemente. − Nós temos que terminar o que começámos.

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