Capítulo 55

Acordo num sobressalto, a respiração pesada como se tivesse acabado de correr.

Uma dor de cabeça descomunal preenche todos os meus sentidos.

Olho ao meu redor. Máquinas que me são familiares ladeiam a cama onde me encontro deitada. Uma delas apita, ocasionalmente, ao ritmo do meu batimento cardíaco. Mesmo sem ver, sei que estou ligada a ela por vários eléctrodos que repousam sobre o meu peito. 

− Qual é a sensação? – inquieto-me ao ouvir uma voz de barítono perguntar. Varro toda a área do quarto com o olhar e encontro um homem de meia idade recostado descontraidamente na pequena poltrona que se encontra junto à porta. Reconheço-o de imediato. É o Dr. César, diretor do centro onde nos encontramos. – De voltares a estar aqui, num quarto onde já estiveste meia dúzia de vezes, mas agora como paciente?

− Desconfortável e desnecessária − respondo asperamente ao estender o meu pulso perfurado que me liga a uma bolsa suspensa sobre a cama. – Eu não estou doente.

− Eu sou médico, lembras-te? Eu sei perfeitamente que não estás doente, – o homem de bata branca levanta-se e começa a avançar na minha direção, − não preciso que mo digas.

− Não percebo... − Levo a mão à minha testa pulsante. A minha cabeça parece prestes a explodir.

− Dói-te, não é? – constata ao chegar perto de mim. – É normal depois do que te injetaram na corrente sanguínea.

− O que...? – Tento levantar-me, mas sinto-me zonza e volto à minha posição inicial.

− Se fosse a ti não fazia movimentos bruscos, só vai intensificar os efeitos secundários do tranquilizante.

− Tranquilizante?!

− Claro. Um tranquilizante um pouco forte demais para o teu organismo. Para o organismo de qualquer ser humano, para ser franco. O que é que pensavas que te tinham dado? – Os seus olhos castanhos-esverdeados caem desconfiados sobre mim. Porque é que algo me diz que este homem sabe muito bem o que motivou o meu receio?

− Onde está a minha mãe? – interrogo numa voz desgastada.

− Quando foste trazida para aqui, ela quis entrar. Foi... digamos que, um pouco insistente demais para o meu gosto. Ela sabe perfeitamente que sou eu quem assume casos como o teu. Não é por seres filha dela que isso vai mudar alguma coisa.

− O que é que lhe fez?

− Porque é que denoto uma certa acusação nessa pergunta? Eu não lhe fiz nada. Só pedi aos guardas que a levassem para fora do centro médico. Com jeitinho, − acrescenta, − não queria que se magoasse. – O seu olhar concentra-se no meu antebraço. Sei o que vê: os hematomas recentes.

− E o Salvador? Onde está ele?

− Está sedado no quarto ao lado. Ele demonstrou ser... demasiado forte, demasiado perigoso. – A imagem do meu namorado a esmurrar um dos guardas que o tentava conter desenha-se de forma clara na minha memória. Não consigo evitar um pequeno sorriso. − Acordará quando eu assim o determinar.

− O que é que nos vai acontecer?

− Eu... Suponho que nada de bom − responde num tom gélido que me faz estremecer. – Vocês passaram um limite que poucos ousaram atravessar e nenhum sobreviveu para contar.

Engulo em seco.

Ele está a falar da minha bisavó e do Sr. Nicolau. Ele sabe que foram assassinados. Mas é mais do que isso, não é? Ele foi o médico responsável por ambos os casos. Foi ele que decretou o óbito. Então, ele não só sabe qual foi a causa da morte, como ainda injetou o soro que os levou a ela.

− Porque é que o fez? Porque é que os matou? – Lágrimas escorregam-me pela face.

− Eu não matei ninguém! − brama de forma defensiva. A cor verde intempestiva dos seus olhos parece ganhar força e sobrepor-se ao tom castanho. – Eu só fiz o que me mandaram.

− E o senhor limitou-se a obedecer cegamente?

− Não tive propriamente escolha... − O castanho volta a misturar-se com o verde do seu olhar. Quase parecem conviver num equilíbrio perfeito.

− Ele ameaçou-o, não foi? – Recordo-me do que o Salvador me disse sobre o seu avô, que ao tentar enfrentar o 1º comandante foi ameaçado de morte.

− Sim, a mim e à minha família − admite cabisbaixo. – Não penses que o faço de ânimo leve. Custa-me, mas custar-me-ia muito mais se os corpos sem vida fossem os dos meus filhos ou o da minha esposa − a voz treme-lhe e eu consigo ver o sofrimento sulcado no seu rosto. – Sou assombrado por eles, todas as noites. Tenho um sono pesado o suficiente para não acordar, mas mais valia que o conseguisse. Que conseguisse retomar a consciência durante os terríveis e intermináveis pesadelos. É a pior parte do dia, quando sou obrigado a enfrentar os demónios que habitam o meu inconsciente. E temo que... − o Dr. César coloca a mão no bolso da bata, – temo que tu sejas a próxima a assombrar-me.

Quando retira a mão do bolso, percebo que segura uma seringa com um líquido vermelho. A cor faz-me lembrar o sangue, apesar de não ser tão vivo e intenso.

− Dr. César, − um pânico crescente cola-se à minha voz, − o senhor pode parar isto. Podemos enfrentá-lo, juntos. Se o senhor admitir para toda a comunidade aquilo que fez e a mando de quem, todos ficarão a saber a verdade. O 1º comandante será afastado do poder e o senhor nunca mais vai ter de fazer mal a ninguém. É médico, o seu dever é ajudar as pessoas, não deveria ser obrigado a fazer estas coisas.

− E como é que achas que os meus filhos me olhariam depois de saberem do que fui capaz de fazer? – questiona encolerizado. – Ver-me-iam como o monstro que sou. Eu não posso deixar que isso aconteça − confessa ao apertar o meu pulso esquerdo contra a cama. O seu corpo debruça-se sobre o meu.

− Engana-se, eles iriam perceber que não teve outra opção. − Permaneço quieta no meu lugar. Não movo um músculo do pescoço para baixo. Não me debato fisicamente para mostrar que confio nele. – Eles vão acabar por compreender que só fez o que fez para os salvar.

− Eu não sou o herói desta história − admite de sobrolho franzido. O castanho brilhante que me fitava intensamente é novamente substituído, quase na totalidade, por um verde hipnotizante. – Mas receio que tu também não sejas. Lamento.

Uma agulha perfura-me uma das veias do meu antebraço estendido e imóvel, de forma ingénua, sobre a cama. O êmbolo é pressionado. Sinto o líquido a embrenhar-se no meu sangue, como se fizesse parte dele. Imagino-o a enrolar-se de forma letal a cada uma das células do meu corpo, proibindo-as de respirar. Sufocando-as até à morte.


Uma gota cai sobre a cana do meu nariz. Mantenho os olhos fechados enquanto a humidade refrescante desliza pela minha face. O movimento lento provoca-me um leve formigueiro no rosto.

Ouço soluços abafados.

Uma respiração quente e pesada adorna-me os lábios, uma respiração que vem de fora para dentro e não de dentro para fora.

− Por favor, Aurora... Volta para mim − suplica alguém com a voz entrecortada. Sinto uma leve pressão sobre os meus lábios fechados. Um beijo, concluo.

As minhas pálpebras afastam-se. Encontro o enorme rosto choroso do Salvador a milímetros do meu.

− Graças a Deus! − exclama. As suas mãos ladeiam-me a cabeça, enquanto a sua boca avança sobre a minha. Mantenho os lábios firmemente fechados. Os seus olhos abrem-se enormemente sobre os meus. – Passa-se alguma coisa de errado?

− Não.

− Não estás desiludida comigo?

− Não.

− Então talvez fiques quando perceberes onde nos encontramos.

O Salvador afasta-se e eu consigo finalmente ver o teto do espaço onde me encontro. É de um tom negro baço... Simples, morto. O pequeno candeeiro suspenso no ar encadeia-me os olhos.

Levanto o meu tronco e deixo-me ficar sentada, com as pernas estendidas sobre o chão frio. A parede à minha frente está revestida, de alto a baixo, com um material translúcido, que permite ver o escuro corredor que se encontra para lá dela.

Olho à minha volta. Tenho a sensação de estar enclausurada num cubo com não mais do que três metros de aresta. As restantes paredes estão pintadas com o mesmo tom enegrecido do teto e chão deste espaço vazio. Um espaço que é ocupado por dois corpos apenas.

Sinto os músculos doloridos, mas não vejo nenhuma cama...

− Porque é que continuas assim? Quieta e calada? Estamos presos, Aurora.

− É uma sala diferente − comento ao analisar pela segunda vez o espaço.

− Uma sala diferente?! É uma prisão, suponho que não tenham tido tempo para a embelezar.

− Podem vir agora. Já estou acordada. Preciso de uma cama.

− De uma cama?! – O Salvador ajoelha-se do meu lado. A mão ergue-se no ar, mas não se chega a encostar ao meu rosto, fecha-se num punho cerrado, ao invés. – O que é que sentes por mim, Aurora?

− És o Salvador. És corajoso, bondoso, introvertido...

− Eu não te pedi para fazeres uma lista daquilo que sabes sobre mim. Sentimentos, Aurora, diz-me que ainda os tens... − a voz decresce e torna-se apenas num murmúrio.

− Ainda os tenho.

− Não fales como ele. Não uses essa voz mecânica que o... que o Nico usava. Não digas uma coisa só porque eu te peço para o dizeres. – Faz uma pausa. Perscruta-me atentamente. − Lembras-te do que aconteceu na reunião semanal?

− Qual delas?

− Aquela que se deu apenas há umas horas atrás.

− Hum... − A minha memória... Algo parece passar-se com a minha memória... Não sei bem o quê. − Foi igual a todas as outras, não foi?

Vejo o Salvador a negar efusivamente com a cabeça. As suas mãos passam pelo seu cabelo castanho. Para trás e para a frente. Para trás e para a frente. Para trás e para a frente. O movimento parece hipnótico.

− Celeste Bacelar, conheces? – pergunta-me. As mãos pousadas sobre a cabeça, que está inclinada para o chão.

− Claro. É a minha bisavó. Ela é muito especial para mim.

− Ela morreu... Está morta − profere com uns enormes olhos azuis carregados de eletricidade. – Não te lembras disso?

− Do quê? – interrogo, sem perceber ao que se refere. Ele perguntou-me se eu conhecia a minha bisavó e eu disse-lhe como ela era importante para mim. Ele disse alguma coisa depois disso? – Talvez ela ainda aqui venha hoje e poderás ver como ela é uma pessoa fantástica.

− Eu... − suspira. – Eu já a conheci. Eu falei-te sobre isso, mas tu não te lembras. Não te lembras, porque isso está relacionado com a sala secreta. Não te lembras da sala secreta, pois não? – Faz uma longa pausa. Eu limito-me a olhar para ele. A voz dele é bonita, quero ouvi-la mais um pouco. Porque é que ele não continua? – Não te lembras de nada... Não achas isso estranho? Somos próximos, não somos? Mas como é que nos aproximámos? O que é que pensaste de mim quando me viste na enfermaria pela primeira vez? Quando é que demos o nosso primeiro beijo? Lembras-te da noite que passámos nos braços um do outro? − Levo as mãos à cabeça. Não sei o que ele está a dizer, mas quero que pare. A dor é insuportável. A voz bonita faz doer. Dói muito! − Conheceste as pessoas da sala secreta, lembras-te delas? Lembras-te do Gabriel? Lembras-te como o salvaste? – A mão dele toca no meu braço dobrado. Acaricia os hematomas que me coloram o antebraço. Uma energia contagiante parece avivar as células pisadas. − Lembras-te como me salvaste a mim? Como me salvas todos os dias de mim mesmo?

− Bravo! Que espetáculo magnifico! – uma voz forte e ribombante invade o nosso espaço. Espreito para trás do Salvador. O 1º comandante observa-nos atentamente através da parede invisível. – Como eu queria que ela pudesse responder a todas essas questões. Bom, talvez não a todas. Não estou lá muito interessado em saber os vossos detalhes íntimos. Não leves a mal rapaz, mas acho que os beijos são sobrevalorizados. – A expressão do Salvador endurece. Os dentes arreganhados, a testa franzida, os olhos semifechados. – Agora, estou muito interessado em saber quem é esse tal de Gabriel.

O Salvador levanta-se num movimento impetuoso e corre na direção da parede que o separa do 1º comandante.

− Como foi capaz de fazer isto à Aurora?

− Fazer o quê? Ela está ótima. – O olhar do 1º comandante fixa-se em mim. Sinto-me um pouco desconfortável e retenho a minha atenção sobre os meus próprios dedos. Estico-os, encolho-os. Estico-os, encolho-os. – Acho que até gosto mais desta nova versão dela.

− Ela não precisa de medicação nenhuma! Não está doente!

− O médico não acha o mesmo.

− Claro que não. Ele está do seu lado, não é?

− Digamos que eu sei escolher os meus aliados. E é por isso que estou aqui. Para te fazer uma proposta.

A minha pele é tao suave, concluo ao afagar a palma da mão.

Um som forte faz-me olhar novamente para os dois homens que conversam entre si. Reparo que a mão do Salvador está fechada em punho sobre a fina parede.

− Não te exaltes, jovem. E não negues à partida algo que desconheces. Ouve-me primeiro. Só amanhã é que vou fazer o comunicado do vosso estado, até lá as coisas podem mudar. Para isso, só preciso que colabores.

− Não vejo como posso estar interessado em alguma espécie de colaboração com o senhor.

− Eu não teria assim tanta certeza. A proposta é simples. Dizes-me onde é essa tal sala secreta, levas-me às pessoas que estão escondidas algures nesta nave, e eu não faço nada contra ti ou contra a tua família. Esqueço que alguma vez me enfrentaste e tu também esqueces tudo o que descobriste de pior sobre mim.

− E o que faria a essas pessoas?

− Escondê-las-ia como é óbvio. Não posso arriscar que alguém as encontre, prefiro que elas estejam sobre minha supervisão. E quando chegarmos ao novo planeta, serão libertadas e poderão viver a vida delas como bem lhes apetecer.

− Desde que fiquem longe...

− Claro. Não creio que seja um tão grande sacrifício assim. Terão a mesma oportunidade do que nós. Poderão recomeçar do zero.

É tão estranho. Ouço-os perfeitamente bem, mas é como se o meu cérebro não conseguisse processar o que estão a dizer.

− E a Aurora? – O Salvador volta-se para mim. – Também está incluída nesse acordo?

− Tens que entender que essa tua namoradinha é demasiado intempestiva. Não me parece tão sensata quanto tu. Achas mesmo que ela conseguiria guardar a história toda só para ela. À primeira oportunidade, denunciar-me-ia. Além do mais, como é que eu explicava o ataque que ela teve durante a reunião semanal?

O punho do Salvador bate com força na parede, que nem estremece com o impacto.

− Ela não teve nenhum ataque − as palavras adquirem um som ríspido.

− Chama-lhe o que quiseres. A verdade é que, para todos os efeitos, a rapariga está louca. Essa é a verdade mais conveniente para mim.

− Eu defendi-a à frente de toda a gente, disse-lhes que ela falava a verdade. Você insinuou que eu estava tão louco quanto ela.

− Sim, mas isso é fácil de resolver. Uma paixão ardente de um jovem tolo pode promover as maiores loucuras. Todos vão facilmente acreditar que só a defendeste porque estavas apaixonado por ela. Desse modo, a doença passava a não ser contagiosa e a Aurora não teria de passar o resto da sua longa vida aqui fechada, isolada da humanidade. Poderia sair para o ar puro e admirar as belas paisagens do nosso novo planeta. Teria é claro de continuar com a medicação que o Dr. César lhe receitou, por causa da sua esquizofrenia.

Um novo embate na parede.

− Nunca mais repita uma coisa dessas! ELA-NÃO-ESTÁ-DOENTE – pronuncia as palavras de uma forma estranha como se não pertencessem à mesma frase. – Se dependesse de mim, eu nunca deixaria a Aurora neste estado, − aponta na minha direção, − nem por um dia sequer. Quanto mais condená-la a esse triste destino infindável.

− Pensa bem, rapaz. Tu podes resolver todos os problemas de uma só vez. É uma oportunidade única! Nem tu, nem a Aurora, nem as pessoas que vocês mantêm escondidas, teriam de ficar presos durante uma eternidade de tempo... Como é que lhe chamaste? Infindável. E se mais ninguém souber do esconderijo dessa tal sala, adivinha qual será o destino das pobres pessoas que a habitam. Isso mesmo! Vejo que já começas a compreender. Coitadinhas, elas morrerão de fome e sede. Só quero evitar mais sofrimento desnecessário. Desfazer todo o mal que causei. Não queres mesmo agarrar esta oportunidade?

Um silêncio preenche o espaço sem móveis. Nenhuma das duas vozes incessantes me chega aos ouvidos. O vazio é agradável. A minha cabeça parece ficar mais leve.

− Vou ensinar-lhe uma coisa. O passado nunca se desfaz. O sofrimento que se inflige nos outros marca-os para todo o sempre. Nada é capaz de o apagar. Eu até me comovo com esta sua preocupação tão repentina. Esta oferta tão generosa, tão... humanitária. Corre até o risco de ir parar ao Céu no juízo final. Mas não, obrigado. Eu não vou cometer o mesmo erro do meu avô. O senhor pode tê-lo convencido com uma simples ameaça, mas eu, definitivamente, não sou o meu avô.

− Não sejas idiota, rapaz. Ela vai continuar a ser medicada mesmo que não aceites a minha proposta. O cenário que te proponho é mil vezes melhor.

− Muito obrigado. A sério! Sinto-me lisonjeado pela consideração. Porém, cresci a acreditar que não posso confiar nas pessoas, que só dependo de mim mesmo. Acho que tenho que lhe agradecer a si por isso. Lamento, não consigo evitar desconfiar quando as coisas me são oferecidas de bandeja. Eu prefiro construir a minha própria saída deste inferno.

− Ainda te vais arrepender dessa decisão.

O 1º comandante desaparece por entre a escuridão do corredor.

− Ele foi buscar a cama? – questiono ao homem que continua de costas para mim e com a mão pousada sobre a parede translúcida.

− Não. – O Salvador dá uma volta de 180º. – Nós não precisamos de nada do que aquele homem tem para nos oferecer. Eu vou tirar-nos daqui, prometo.

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