Capítulo 54
Saio disparada da sala. Ouço o Salvador a gritar o meu nome, mas não abrando e, muito menos, paro.
Adentro na escuridão dos corredores do piso inferior. Tenho medo de cair ou de me perder aqui e ninguém nunca mais me encontrar. Mas o medo que tenho de ficar para trás e enfrentar o peso duro da realidade é muito maior. Só me resta fugir.
Corro. A velocidade dos meus movimentos exige do meu corpo recursos que não tenho a certeza ter disponíveis. Porém, a adrenalina invade-me a corrente sanguínea e entorpece o meu cérebro. E isso é exatamente do que preciso, neste momento.
O som de pesados passos apressados ecoa atrás de mim.
Ele está quase a alcançar-me. Foi mais rápido do que imaginei que pudesse ser a colocar a sala em ordem, tal como ela estava antes de lá entrarmos e descobrirmos a verdade mais aterradora de todo o sempre.
− Espera, Aurora! Espera!
O desespero na voz do meu namorado faz-me sentir remorsos. Ele não tem culpa. Não deveria estar a fugir dele.
Estaco.
Levo as mãos à cabeça e finco os meus dedos trémulos no emaranhado de caracóis. A força que exerço provoca-me uma dor física que não consegue superar o rebuliço de emoções que sinto dentro de mim.
Uma mão forte agarra-me o cotovelo direito e puxa-me na sua direção. O meu corpo não oferece qualquer tipo de resistência. Caio nos braços do Salvador e deixo-me ficar aninhada no peito dele.
Água salgada começa a escorrer, incontrolavelmente, pela minha face.
− Calma – o queixo do Salvador, pousado sobre a minha cabeça, vibra com a simples palavra que profere. Os seus dedos afagam-me os cabelos soltos envolta do pescoço. – Calma, eu estou aqui.
− Ele é pior do que imaginávamos, Salvador. – Soluço. Uso os meus braços para me soltar do seu abraço apertado. – Fez-me acreditar que tinha sido eu a culpada da morte do Sr. Nicolau e afinal... Afinal nada teve a ver com a porcaria dos medicamentos. – Passo a mão de forma agressiva pelas bochechas para retirar parte da humidade que os meus olhos derramam. Afasto as lágrimas do meu rosto como gostaria de afastar o 1º comandante da minha vida, da vida da comunidade. − Ele é um assassino, um verdadeiro monstro!
− Eu sei. – A mão do meu namorado acaricia a minha face molhada. − Eu sei. Eu estou tão magoado e enraivecido quanto tu estás.
− Ele matou a minha bisavó, Salvador − a raiva e a tristeza de que ele fala misturam-se na minha voz. Mostram-se completamente dissociáveis.
O 1º comandante é o culpado de todo o sofrimento por que já passei na vida: ter de ficar afastada do Salvador, ter de negar a mim própria os meus sentimentos por ele; ser privada da companhia da minha bisavó até ao resto dos meus dias; e ter tido de passar pela tortura agoniante de achar que matei um inocente, alguém que nunca me fez mal, que nunca fez mal a viva-alma. Ele é o culpado!
Um ódio crescente começa a ganhar espaço dentro de mim. A minha expressão endurece. Os meus olhos revelam uma obscura determinação.
− Ele vai ter de pagar.
− Não, Aurora. Nós não podemos fazer nada. Existem algumas coisas contra as quais não podemos lutar. E esta é uma delas. Ele é demasiado perigoso.
− Enganas-te. Esta é exatamente uma das coisas contra a qual podemos e devemos lutar. Se continuarmos de braços cruzados, ele vai continuar a fazer estas monstruosidades.
− Então o que sugeres? Que revelemos toda a verdade à comunidade inteira, amanhã, na reunião semanal? – questiona ironicamente.
− Não. – Um sorriso desenha-se no meu rosto por entre a escuridão, mas o Salvador está próximo o suficiente para o ver. − Não "nós". Não "toda a verdade". Eu tenho um plano.
Querido diário,
Não imaginas como me sinto bem sempre que volto para o meu quarto depois de ter estado na sala secreta. Não posso ir lá muitas vezes, como tu bem sabes. Porém, apenas uma hora naquela sala é tão enriquecedora que me enche a alma.
São pessoas reais, sabes? Que vivem uma vida, que eu não definiria propriamente como "vida", como ninguém aqui na comunidade consegue. Sempre com um sorriso no rosto. Cantam, dançam, partilham e inventam histórias... São uma verdadeira família. Suponho que o sofrimento possa fazer isso, unir as pessoas. Citando um grande pintor do século XIX, "a adversidade restitui aos Homens todas as virtudes que a prosperidade lhes tira".
Não quero dizer com isto que mereçam o destino que lhes impingiram. Ninguém merece. Se eu ao menos tivesse sabido de toda a verdade antes. Antes de termos embarcado. Antes de ter deixado o Henrique assumir o lugar do pai na regência desta nave. Agora estão todos do lado dele, um homem com um poder de influência avassalador. Dissesse ele que os humanos eram capazes de voar e, sem sombra de dúvida, daria de caras com praticamente todas as pessoas da comunidade a balançar os braços no ar e a perguntarem-se o que de errado havia com eles.
Tenho passado estes dias a pensar como poderia ajudar os reclusos da sala secreta. O Salvador garante que é melhor manter-me em silêncio. Tenho que acreditar nele. Foi ele que manteve todas aquelas pessoas a salvo depois da morte do avô. Parece-me um jovem atinado, com a cabeça no sítio, defende os valores certos da melhor forma possível. Irá transformar-se num grande homem, um dia. Claro que ninguém permanece incólume depois de ser obrigado a viver duas vidas, por muito forte que se seja. Será que nunca se pergunta qual delas é a real? Qual delas é que verdadeiramente lhe pertence?
A verdade é que não sou do tipo de mulher que se limita a cruzar os braços. Nunca fui. Se o tivesse feito, outrora no passado, não estaríamos aqui hoje. Talvez nem existíssemos de todo. Talvez já nos tivéssemos extinguido. Então, lamento, Salvador, eu tenho de tentar.
Vou seguir os passos que tomei no passado, quando descobri a teoria do meu amado, Elias. Na altura, o resultado não foi propriamente positivo. Mas a NASA era a minha melhor hipótese, a forma mais rápida e eficaz de concretizar o sonho do meu falecido marido. Neste caso, só tenho de falar diretamente com a fonte de todos os nossos problemas. Talvez não apenas falar, persuadir seria uma melhor palavra para a situação. Quem sabe, ameaçá-lo de revelar algumas feias verdades sobre ele, se não abdicar da sua posição. Não tenho nada a perder, já ele... Se ele se recusar, uma sela será o único futuro que o espera.
Deseja-me sorte.
Até à próxima,
Celeste Bacelar
Viro a página do diário e sou obrigada a fitar um branco infinito que me consome a alma. É isto, constato tristemente, este é o último registo da minha bisavó antes de morrer.
Era isto que eu queria, não era? Quando fui buscar o último diário da minha bisavó à sala secreta. Queria ter a certeza. A certeza de que foi o 1º comandante que a assassinou. No que é que eu estava a pensar? É claro que foi ele. Só podia ser ele.
"Não tenho nada a perder", as palavras desafiam-me corajosamente. É claro que tinhas, bisavó. Perdeste-nos a nós, à tua família que tanto te amava. Perdeste a tua vida. E para quê? Continuou tudo na mesma. Nada mudou nestes dois anos. Desta vez, a tua coragem não nos conseguiu salvar a todos.
Não posso contar isto ao Salvador, se o fizer, ele nunca me deixará seguir em frente com o plano. Afinal de contas, o que vou tentar fazer não é muito diferente daquilo que a minha bisavó tentou. Irei estar a arriscar tanto, ou até mais.
Oh, ele vai tentar matar-me! Disso tenho a certeza. Mas ele vai demorar tempo até tomar essa decisão, para que ninguém suspeite. E é com esse tempo que eu estou a contar. Nada pode dar errado. Eu tenho de conseguir fazer aquilo que a minha bisavó morreu a tentar.
Chegou!
Ele chegou. É agora.
Respiro fundo. O ar parece queimar-me os pulmões.
− O que se passa contigo hoje, Aurora? – questiona a Analu num tom de voz sussurrado. – Estás estranha...
− Aconteça o que acontecer hoje, − agarro a mão dela, que descansa estendida sobre a sua perna esquerda, − não te esqueças que te adoro.
− Reitero aquilo que disse. Tu não estás estranha, estás louca!
− Daqui a alguns minutos, és capaz de acreditar realmente nisso.
A Analu fita-me de forma desconfiada. Está a tentar perceber uma história inteira, quando só leu palavras soltas. É claro que ela não compreende. Por muito bem que ela me conheça, o que estou prestes a fazer vai certamente deixá-la boquiaberta.
Levanto-me do meu lugar e encaminho-me para o palco. Não olho para trás para ver a expressão da minha melhor amiga. Mas consigo imaginá-la. Os seus grandes olhos castanhos arregalados, o espaço da sua testa entre as sobrancelhas com pequenas ondas de estupefação e a sua pequena boca, involuntariamente, entreaberta.
O 1º comandante já começou o seu discurso, tão sonoro e cativante como sempre. É quase como se estivesse a falar de uma grande descoberta, quando, na verdade, não passam de pequenas trivialidades adornadas pelas suas belas e meticulosas palavras.
As pessoas por que passo soltam pequenos suspiros exasperados. As suas cabeças tentam esquivar-se ao meu corpo que lhes impede de ver o palco. Como se estivessem a perder grande coisa!
Olho para os guardas. Estão completamente absortos nas palavras do 1º comandante. Os homens fardados de negro estão do lado lateral direito perto do palco, juntamente com o 2º comandante que, como eles, tem os olhos completamente vidrados no nosso líder.
Sem nenhuma dificuldade, subo os pequenos e estreitos degraus do lado esquerdo do palco.
− Tenho um anúncio a fazer − declaro a plenos pulmões, interrompendo a voz soberana de Henrique Serrano. O meu olhar percorre a multidão que me encara, a maioria de sobrolho franzido. O 1º comandante volta-se para trás confuso. Não esperava ouvir uma outra voz que não a sua, muito menos que esta viesse de tão perto. – Este homem, − começo, num tom de voz confiante, à medida que cubro a distância que me separa da fronteira entre o palco e a multidão, − que diz ser nosso líder, não passa de uma fraude. – Sussurros conturbados substituem o silêncio respeitoso da audiência. − Mentiu acerca da minha bisavó, − o meu tom de voz aumenta de volume, demarcando-se dos sons agitados que me chegam aos ouvidos, − insinuou que era louca, quando, na verdade, a ideia de construir esta nave foi dela. Foi ela quem nos quis dar esta nova oportunidade de vida.
− Achas mesmo que vão acreditar em ti? – pergunta o 1º Comandante, a voz repleta de arrogância. Vejo-o estender a mão na direção dos guardas como que a dizer que não precisa deles, que a situação está totalmente sobre controlo. − Tu és da família dela. Aposto que queres o meu lugar, já que a tua bisavó não o conseguiu. És ridícula!
As expressões que nos cercam transfiguram-se. O espanto dá lugar a uma confiança desdenhosa. É impressionante a facilidade com que acreditam nas palavras dele.
− Oh! Mas há mais − assevero. Os meus olhos desafiam os do 1º comandante para uma luta, que sei que vou perder. Ainda assim, mantenho-os bem abertos. Eu não vou recuar agora. – Henrique Serrano, − pronuncio o nome de forma exagerada, − quando nada mais era do que assessor de seu pai, e tratava das inscrições das pessoas que haveriam de embarcar nesta nave, recusou a entrada de sessenta pessoas só porque eram sem-abrigos. – Os terríficos olhos negros do homem que se encontra à minha frente vacilam. Uma pequena vitória, mas a guerra está muito longe de terminar. − Pessoas que não tinham bens, emprego, casa própria. Pessoas que não tinham onde dormir ou o que comer.
− Eu nunca seria capaz de fazer uma coisa dessas! Como é que me podes acusar desse absurdo? Eu sou um herói. Eu luto por estas pessoas todos os dias. Fui eu que tornei a comunidade no que ela é hoje. Ou vais negar isso também?
− Eu... − hesito. É claro que não o vou negar. Ele, de facto, moldou a comunidade à sua imagem e semelhança. As estúpidas regras que nos regem são os valores dele! Valores que não fazem sentido algum! Mas a forma como ele o diz, faz parecer que isso foi uma coisa boa. E não foi.
− Deixei-te sem palavras, pequena Aurora? – escarneia. – Como veem, − levanta os braços no ar e dirige-se novamente para a plateia muda que nos fita atentamente, − nem ela própria acredita nas suas palavras. Está confusa, a pobrezinha.
− Eu estou muito lúcida − cuspo as palavras de forma agressiva. O meu corpo aproxima-se do dele e ficamos com os rostos praticamente colados. – Eles estão aqui, sabe? As pessoas que queria ver mortas, as pessoas que achou que não mereciam esta vida. Estão dentro da nave, vivem debaixo do mesmo teto que você.
Sou puxada para trás de forma violenta. Cada um dos meus braços é agarrado fortemente por um guarda. Agito-me. Executo movimentos desesperados para voltar a recuperar a liberdade que me é devida. À minha frente, a uns dois metros de distância, o 1º comandante mantém a sua cabeça erguida, o corpo transpira altivez. Não obstante, o negro do seu olhar reflete um desespero crescente.
Sorrio.
Isso mesmo, o seu tempo está a acabar, penso vitoriosa, apesar de ser eu a prisioneira.
− Oh! O caso é mais grave do que eu suponha – a fingida preocupação provoca-me arrepios. Olha para mim como se eu fosse uma criatura profundamente ferida que precisa de ser travada, não curada. − Herdou a loucura da bisavó, coitadinha. – Deixo cair o rosto para a multidão e dou comigo a procurar pelos meus avós maternos. Eles devem estar muito felizes com a insinuação. A teoria deles comprovada pelo grande líder da nossa comunidade. − Já tinha desconfiado, por causa dos rumores que se ouvem a teu respeito. Agora, confirma-se. Até já vê pessoas que não existem, pessoas que mais ninguém vê. – Desata a rir descontroladamente.
As gargalhadas contagiam-se pela sala inteira. Mas o que mais me dói é encontrar a deceção, talvez vergonha, na expressão fechada dos meus pais.
Os meus olhos caiem para a primeira fila e aflijo-me ao perceber a determinação na expressão da Sra. Prazeres. Antes mesmo de ela se levantar, agito a cabeça em sinal de negação. Vejo as mãos dela largarem, de forma relutante, os braços da cadeira, depois de alguma hesitação. Os cotovelos deixam de apontar como armas mortíferas prontas a disparar e caem placidamente sobre o seu colo.
A minha respiração volta a normalizar.
Sei o que significaria para ela ajudar-me neste momento. Ela poderia fazer por mim aquilo que se mostrou incapaz de fazer pela minha bisavó. Mas eu não posso deixar que ela se sacrifique por minha causa.
− Elas são reais e eu posso provar − grito por cima dos risos trocistas. Tento soltar-me mais uma vez, mas os dedos dos guardas apenas pressionam com mais força a carne dos meus braços. – Eu vou provar! Soltem-me! – Finco as minhas unhas na carne da mão de um dos guardas. Ele protesta furioso e dobra-me o braço atrás das costas, mantendo-o nessa posição. − Soltem-me!
Ergo os meus olhos ao detetar a existência de movimento por detrás do 1º comandante. Nuno Torres avança pesadamente sobre o palco. Os ombros salientes, os seus braços fortes a ladear o corpo, as mãos... O que é aquilo na sua mão direita? Parece uma seringa. É uma seringa! Ele traz o objeto envolta da mão fechada e apenas a agulha é visível, do ponto de vista em que me encontro.
Eles não me podem tentar matar aqui e agora, à frente de toda esta gente, ou podem? Recordo-me que, segundo a minha teoria, o efeito do soro que injetaram na minha bisavó e no Sr. Nicolau não é imediato. Se o usarem em mim neste momento, ninguém vai sequer perceber a gravidade da situação.
− Por favor, não − suplico ao homem determinado que marcha na minha direção.
− Parem! – ouço o grito desesperado do Salvador. Volto o rosto e vejo-o a correr para o palco. – Ela está a dizer a verdade!
Não! Não estragues tudo.
O plano era perfeito. Ele só precisava de ficar quietinho no lugar dele, esperar que eu fosse levada e que me diagnosticassem como louca, depois ele traria alguém da sala secreta e diria que tudo aquilo que eu disse era verdade. O 1º comandante ficaria desacreditado. A comunidade inteira não teria outra opção senão, finalmente, enxergar a verdade. Ele não teria como mentir, ficaria completamente encurralado. Todos veriam como os diagnósticos de loucura são uma conveniente mentira. Tudo seria trazido à tona. Mas eu devia ter calculado que a perfeição é coisa que não existe.
O Salvador apoia-se na parte da frente do palco, que não tem mais do que um metro de altura, e iça o seu corpo para cima. Assim que os seus pés voltam a pousar no chão, Torres coloca-se entre mim e o meu namorado.
− Ela está a dizer a verdade − repete com a voz mais controlada. − As pessoas a que o 1º Comandante recusou a entrada na nave foram salvas e mantidas numa sala secreta durante todos estes anos. – Espreito por cima do ombro de Torres. Reparo nas costas e ombros largos do meu namorado. O seu cabelo desalinhado faz-me pensar em quantas vezes não terá ele passado a mão nervosamente pelos fios castanhos, enquanto eu estava aqui sozinha, neste palco, com um assassino. – Eu sei onde elas estão.
Um silêncio demolidor preenche a sala. Coloco-me em bicos dos pés para tentar conseguir ver as expressões da plateia. O guarda que me prende o braço atrás das costas empurra impacientemente o meu corpo para baixo. Ouço-o suspirar de exasperação como se eu não passasse de uma criança irrequieta.
Sentindo-me frustrada, mantenho os meus olhos presos no Salvador, que se vira para mim.
− Que caso invulgar − ouço, por fim, o 1º comandante dizer. – Foram os dois assolados pela mesma loucura. Talvez seja contagioso – o alarme na voz do nosso líder arranca suspiros assustados da multidão. O Salvador encolhe os ombros. Um sorriso culpado ocupa o seu rosto desanimado. Limito-me a acenar tristemente com a cabeça. Não estou desiludida com ele. É com a situação injusta e ridícula em que nos encontramos que estou dececionada. Falhámos os dois. – Jovem, que tipo de envolvimento vocês têm?
Oh, ele é bom! O que raios quer ele insinuar agora? Que a loucura se transmite através da saliva?! Que ridículo!
− Eles são namorados − responde uma voz distante em alto e bom som. Eu reconheço esta voz esganiçada... − A Aurora dorme no meu quarto e há três noites atrás eu vi-os a saírem os dois juntos. Ela só voltou horas depois, − acrescenta a Olívia num tom acusatório.
Oh! Como é que ela me pode fazer uma coisas destas! Nós tínhamos um trato! Suponho que ele se tenha dissolvido no momento em que fui acusada de louca. Mesmo que eu confessasse agora que, nessa mesma noite, a vi enrolada com um homem casado, ninguém iria acreditar em mim. É claro que ela não tem nada a perder. E como se deve estar a regozijar com a situação!
Deixo o meu rosto cair. Os meus olhos presos ao chão.
Ela está a mentir, mas também está a dizer a verdade. Se eu falar agora, vou ser obrigada a reconhecer que estive, de facto, com o Salvador nessa noite. Não importa que ela não me tenha visto a sair do quarto com ele. Isso é apenas um pormenor. A verdade, é que não posso acusar alguém de mentir num segundo e no outro usar essa mesma artimanha para me defender.
− Eu confirmo. Também os vi muito próximos um dia destes – fala o Leandro ao levantar-se a duas cadeiras da Olívia.
Os três homens que me viram abraçada ao Salvador em frente da porta do quarto dos meus pais, há menos de 24 horas atrás, erguem-se à vez e assentem convictamente com a cabeça.
Porque é que eu sinto que estou a lutar por uma causa perdida? Não quis ouvir o Salvador e, por isso, pagarei pela minha teimosia (ou será de novo a minha ingenuidade?).
− Isso explica tudo, não é verdade? – a segurança que o 1º comandante transmite demonstra o quão vitorioso ele se sente neste momento. Não admira, parece que está tudo a correr a favor dele. Como é que um homem que já provocou um desmedido sofrimento a tanta gente pode ser tão abençoado? Se Deus existe, porque é que se mantém teimosamente do lado dele? – Se, de facto, é contagioso, e não restam grandes dúvidas nesse quesito, vão ter de ficar isolados. Lastimo − pronuncia a última palavra de forma arrastada e enfática. Quase que eu própria me convenço da sua falsa piedade. A sua mestria com as palavras é invejável. – Levem-nos para o centro médico.
Os dois guardas que me agarram, levantam-me no ar. Esperneio. Contorço-me. Se formos diagnosticados com um distúrbio mental contagioso, nunca mais vamos poder voltar a ocupar o nosso lugar na comunidade. Seremos trancados num quarto, sem ver viva-alma. Isso não pode acontecer! Não consigo imaginar pior desfecho do que este!
Sinto uma dor aguda no antebraço esquerdo. Uma picada dolorosa.
Pelo canto do olho, do meu lado esquerdo, avisto Torres, de sorriso rasgado, a acenar-me, com a seringa de um lado para o outro. Fito-o absorta. Ele não foi capaz! Oh, mas foi, constato ao reparar no espaço vazio da seringa onde deveria de estar a substância injetável. O guarda que me sustém o braço no ar, deixou a minha pele exposta para a investida. Mais uma marca que o Torres consegue deixar na minha pele, que já estava suficientemente arroxeada. Começo a detestar este homem.
Pestanejo.
Volto a pestanejar.
O meu corpo deixa de lutar, apesar de não ser essa a ordem que recebe do meu cérebro enraivecido. Do meu lado direito, vejo o Salvador a contorcer-se com uma fúria inebriante. Os três guardas que o prendem e cercam cambaleiam com cada movimento dele. Vejo-o a conseguir soltar o seu braço direito e a desferir, de seguida, um golpe certeiro no queixo de um dos guardas.
Uma nebulosa esbranquiçada tolda-me a visão. Penso ver a silhueta deformada de um homem vestido de negro cair para trás, mas não posso ter a certeza.
As pálpebras pesam-me. Confio todo o peso do meu corpo nos braços dos homens que me afastam do palco.
Eu não quero ir, apetece-me gritar, porém as palavras não têm força suficiente para serem sequer pronunciadas.
A escuridão invade-me.
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